
SÉRIE NENHUM DIREITO A MENOS | A comunicação é um direito humano fundamental. E como tal, deve estar a serviço e disposição da sociedade para garantir aos cidadãos e cidadãs, aos camponeses e camponesas além da liberdade de informação e de imprensa, o poder de comunicar e se reconhecer na comunicação social eletrônica, além de assegurar à participação, em condições de igualdade formal e material, na esfera pública, como salientado em dezembro de 2003 pela Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação da Organização das Nações Unidas (ONU).
Embora seja um direito constitucionalmente reconhecido, a comunicação no Brasil ainda demanda grandes avanços no sentido de democratizar e pluralizar os meios de comunicação de massa e o acesso real desses meios às populações. São poucas as conquistas nesse campo, mas a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), em meados de 2008, foi um grande passo para a garantia de uma informação mais plural num país marcado pela unilateralidade de uma mídia comandada por pessoas cujo perfil é quase sempre representado pela figura de um homem, com pele branca que pertencente à classe econômica alta.
A comunicação e o poder andam juntos e são “a menina dos olhos” de empresários e políticos brasileiros. Assim, conseguir a outorga de concessões públicas de rádio e TV e possibilitar o enfraquecimento da comunicação pública no país são metas estratégicas, que hoje estão mais latentes com a gestão do Governo interino de Michel Temer. Entre as medidas “impopulares” do seu mandato podemos destacar a tentativa de desmonte da EBC com a demissão arbitrária do presidente da Empresa Brasil de Comunicação, Ricardo Melo, no final de maio, para colocar um aliado político do presidente afastado da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha.
Quinze dias depois da decisão, o cargo foi restituído por decisão do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, os poucos dias foram suficientes para que o interventor nomeado por Temer, Laerte Rimoli, demitisse jornalistas que há anos estavam na empresa e tinham um trabalho reconhecido pela sociedade, bem como proibisse o termo “presidenta” nos programas da emissora.
Sobre o assunto a jornalista Ana Veloso, uma das representantes da sociedade civil no Conselho Curador da EBC, afirma que os membros do Conselho repudiam estas medidas. “Nós do Conselho consideramos que isso foi uma afronta à comunicação pública porque estas pessoas estavam exercendo um papel fundamental dentro da Empresa no sentido do trabalho que vinham desenvolvendo”, afirma.
Ela destaca ainda, que estão trabalhando para manter a idoneidade e autonomia da comunicação pública do país. “O que a gente tem discutido no Conselho é que nenhum Governo seja ele de A, B ou C, direita, esquerda ou centro pode e deve macular os interesses públicos da EBC. Repudiamos qualquer tipo de medida que venha enfraquecer a programação, perseguir profissionais que tem uma história de vida em defesa do interesse público. O Conselho já entrou na justiça e articulou uma audiência com a procuradoria da defesa dos cidadãos. Então, todos os mecanismos possíveis e legais serão acionados obviamente que o Conselho não pode entrar com ações, mas a sociedade civil pode”, afirma.
O fato repercutiu internacionalmente e a ONU por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou nota alertando para os riscos dessas medidas para a liberdade de expressão. “Tomamos nota das preocupações expressadas pelo Governo sobre a situação econômica da EBC. Entretanto, essas preocupações não justificam interferências na administração de uma emissora pública nacional e, em particular, no seu trabalho jornalístico. Portanto, felicitamos a decisão do Ministro do STF Dias Toffoli, por reconduzir o diretor da EBC ao seu cargo”, afirma o comunicado assinado pelo relator das Nações Unidas sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão, David Kaye, e pelo relator Interamericano para a Liberdade de Expressão, Edison Lanza.

Os relatores destacaram ainda que, “pelas normas internacionais, os Estados devem assegurar que os serviços públicos de radiodifusão tenham um funcionamento independente. Isso significa, fundamentalmente, garantir a sua autonomia administrativa e liberdade editorial. O Brasil está passando por um período crítico e precisa garantir a preservação dos avanços que alcançou na promoção da liberdade de expressão e do acesso à informação pública ao longo das duas ultimas décadas”.
Já a jornalista do Centro de Cultura Luiz Freire e militante do Fórum Pernambucano de Comunicação (Fopecom), Rosa Sampaio, aponta essa tentativa de enfraquecimento da comunicação pública no país como uma das grandes perdas que o Brasil teve nas últimas semanas. “Hoje o que o governo tenta quebrar é este caráter público, a TV Brasil e as rádios incomodaram muito por mostrar uma outra realidade que as emissoras privadas não veiculam. Por dar outra narrativa ao processo de impeachment. Isso incomodou, e claro quando chega no poder, Michel Temer, quer sim tirar esta característica pública da empresa, e isso é o que a gente mais perde nesses últimos três meses”, diz.
Antes mesmo de interferir na EBC, Temer, horas depois de assumir a presidência interina, extinguiu o Ministério das Comunicações e o anexou à pasta de Ciência e Tecnologia por meio da Medida Provisória 726, de 12 de maio de 2016. Para assumir a pasta convidou o ex-Ministro das Cidades, Gilberto Kassab (PSD), que por sua vez, nomeou a advogada Vanda Nogueira, responsável por uma dezena de processos envolvendo afiliadas da TV Globo e outros veículos, para cuidar da regulamentação e outorgas de rádios e TV´s. Ao assumir a função caberá à advogada supervisionar a regulamentação da outorga para exploração dos diversos serviços de radiodifusão e ainda acompanhar a exploração dos serviços.
Além disso, no Governo do Pmdebista, 7 dos 23 ministros nomeados possuem ou controlam emissoras de rádio e TV no país. Ricardo Barros (PP), Sarney Filho (PV), Helder Barbalho (PMDB) e Henrique Eduardo Alves (PMDB) são donos de emissoras, já os ministros do Planejamento, Educação e Minas e Energia, Romero Jucá, Mendonça Filho e Fernando Coelho, respectivamente, têm TV´s e rádios em nome de parentes próximos.
Conselho Curador da EBC
Criado por meio da Lei 11.652/2008, o Conselho Curador da EBC tem o objetivo de zelar para que a Empresa Brasil de Comunicação seja autônoma e não sofra interferência do governo e do mercado na sua programação e gestão. Composto por 22 membros: 15 representantes da sociedade civil; quatro do Governo Federal; um da Câmara dos Deputados; um do Senado Federal; e um representante dos trabalhadores da EBC, o Conselho também tem o papel de representar os anseios da sociedade, em sua diversidade, na aprovação das diretrizes de conteúdo e do plano de trabalho da empresa.
Neste sentido, com maior parte dos membros representando a sociedade civil, a instância está com consulta pública aberta para eleger cinco membros para o seu colegiado. O edital publicado no dia 17 de junho deste ano é aberto à população e visa assegurar a participação de pessoas que militem no campo dos direitos da infância, LGBT, meio ambiente e cultura.
Mídia e Poder
Um grande gargalo da comunicação no Brasil ainda está ligado à autorização de concessões públicas de rádio e TV. Baseado no Código Brasileiro de Telecomunicações, instituído na década de 1960, as regulações da mídia eletrônica além de ultrapassadas continuam conferindo poder a grandes empresários e políticos, o que gera o chamado “oligopólio” da mídia. Para se ter uma ideia, 70% dos canais de TV, rádios, jornais impressos e eletrônicos do país estão nas mãos de seis famílias, segundo Julian Assange, do site Wikileaks (responsável pela divulgação na internet de documentos secretos de governos e empresas ao redor do mundo).

E esta é uma realidade que tem sido perpetuada desde o período de ditadura militar, e não se vê o interesse dos governos de regulamentar a comunicação e mudar essa realidade, como ressalta Rosa Sampaio. “A falta da regulamentação das concessões públicas da radiodifusão é o grande câncer da democratização da comunicação no Brasil. São o rádio e a televisão que chegam à maior parte da população, portanto ter esses veículos na mão é ter poder. E o problema não é ter poder, mas sim usá-lo para manipular as pessoas e aumentar o lucro de uma pessoa ou determinado grupo”, salienta.
A Constituição Federal, em seu artigo 54, proíbe que deputados e senadores sejam proprietários ou diretores de empresas concessionárias de serviço público ou exerçam cargo ou emprego remunerado nesses espaços privados. No entanto, a medida que busca resguardar a democracia brasileira impedindo que políticos controlem os serviços públicos, como a radiodifusão, não é respeitada e cumprida.
Antes coronéis da terra, hoje coronéis da mídia, homens brancos e de famílias burguesas controlam a mídia brasileira em muitas regiões do país, como os Magalhães na Bahia, os Sarney no Maranhão, e os Collor de Mello em Alagoas. No Sistema de Acompanhamento de Controle Societário – Siacco, um dos bancos de dados disponibilizados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), 40 deputados federais e senadores aparecem como sócios de empresas prestadoras de serviços de radiodifusão. Isso implica dizer que estas pessoas públicas podem utilizar-se de sua influência junto a veículos de comunicação de massa para atender aos seus interesses políticos e partidários.
“A terra dá poder econômico, mas a comunicação dá o poder de sempre ter o poder econômico. Hoje a gente percebe que os coronéis da mídia são políticos do interior que estão com as concessões comunitárias, onde devia estar a rádio ligada a algum movimento ou sindicato. Da mesma forma, os blogs também estão nas mãos de políticos e suas famílias e esta é uma característica de todas as cidades do interior do país. Quando a gente chega no interior de Pernambuco, por exemplo, a gente tem grupos como os de Patriota e Inocêncio de Oliveira que há anos tem renovação de concessões comunitárias e educativas. Se a gente pegar o mapa dos coronéis da mídia vemos que fica mais no nordeste, no interior do nordeste” revela Rosa Sampaio.
Esta condição ressalta o fato de as populações rurais estarem mais vulneráveis à manipulação das notícias, e aos chamados “votos de cabresto” ainda hoje utilizados por políticos que mantêm candidaturas por anos, através de troca de favores. Por todas essas razões, movimentos e fóruns defendem a urgência da democratização dos meios de comunicação por meio da aprovação da Lei da Mídia Democrática. A lei que visa garantir o direito à comunicação, começou a ser debatido em 2009, durante a I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). No evento mais de 600 propostas foram aprovadas e estudadas ainda no governo Lula, porém hoje encontram-se engavetadas.
De acordo com Ana Veloso, o debate sobre esse tema já é um grande avanço no campo da comunicação no país. “No campo da comunicação mais ampla um avanço foi o debate da lei de mídia democrática que é o projeto de lei de iniciativa popular para discutir a democratização dos meios de comunicação no Brasil, a regulação democrática e cidadã desses meios. Pra mim a discussão já é uma vitória, mas a gente precisa levar adiante para evitar que mudanças de governo possam de alguma forma interferir nos rumos do direito humano à comunicação no nosso país”, sugere.
Concessões públicas: altares ou palanques?
As concessões públicas de rádio e TV no Brasil, historicamente, são distribuídas por políticos e para política. Segundo levantamento publicado no Observatório da Imprensa, no período entre 1978 e 1985 (Governo do general João Baptista Figueiredo) houve uma distribuição de 634 concessões. Já nos anos seguintes, Sarney então presidente do país, concedeu 958 autorizações para funcionamento de emissoras de rádio e TV. Nestes anos muitos políticos construíram patrimônios de radiodifusão em nome de ‘laranjas’.
De lá pra cá não aconteceram significativas mudanças nos processos de concessão, e nos últimos governos de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003 – 2011) houve a reprodução da prática de entregar as concessões a políticos e também a igrejas. FHC autorizou 239 rádios FM e 118 TVs educativas em oito anos. Já Lula, aprovou 110 emissoras educativas, sendo 29 televisões e 81 rádios. E, ainda de acordo com a publicação “levando em conta somente as concessões a políticos, significa que ao menos uma em cada três rádios foi parar, diretamente ou indiretamente, nas mãos deles [políticos]”.
Com o afastamento da presidente Dilma, os editais previstos para concessões de rádios comunitárias destinadas, em sua maioria, para povos tradicionais, índios e quilombolas ficou ameaçada. Antes estavam previstos editais para serem publicados no mês de junho, que contemplariam concessão em 155 municípios ou localidades pequenas, sendo um edital específico para povos tradicionais e outro para interesse geral.
Enquanto isso, comunidades, sindicatos e movimentos passam anos e até mesmo décadas para conseguir a autorização de funcionamento de um veiculo de comunicação. Um exemplo claro é o da emissora pública municipal Rádio Frei Caneca, na capital pernambucana, que só entrou no ar 56 anos depois de aprovada. Iniciativa do ex-vereador Liberato Costa Junior (in memoriam), a rádio que iniciou a fase de testes no dia primeiro deste mês, tem o objetivo de divulgar o trabalho dos músicos e artistas pernambucanos.
Mesmo saindo do papel, para que a Rádio Frei Caneca FM seja de fato um veículo público é necessário ultrapassar mais alguns desafios, como enfatiza Rosa Sampaio. “A rádio foi colocada no ar em fase experimental. Então ainda falta destinar orçamento, planejar e implementar a gestão, o financiamento e a programação, em cima das diretrizes da sociedade civil, sistematizadas de nos grupos de trabalho, convocados pela administração municipal, nos meses de abril e maio de 2014. Não é uma rádio que vai tocar só musica, não é essa a proposta. A proposta é ter jornalismo também, e realmente ser uma rádio pública”, revela.