Entrevista
14.06.2021
“Agroecologia é alternativa hoje e para o futuro”, diz integrante da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), Maria Emília Pacheco

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Por Adriana Amâncio - Asacom

A pesquisadora Maria Emília Pacheco defende a retomada das políticas de convivência com o Semiárido para assegurar qualidade vida aos povos da região - Foto: Agnaldo Rocha

Junho é o Mês do Meio Ambiente. Em meio à maior crise sanitária deste século, a data traz para o centro do debate a relação entre a promoção da saúde, da vida e o meio ambiente. Neste espectro, a pesquisadora e integrante da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), Maria Emília Pacheco, é categórica: “a agroecologia é a alternativa hoje e para o futuro”. Ao longo desta entrevista, ela reflete sobre a relação entre os impactos do agronegócio, destinado à produção de alimentos, e o surgimento de pandemias; destaca a forma como, por outro lado, a agroecologia, uma das bases para a convivência com o Semiárido, atua na promoção da saúde e da qualidade de vida, por meio da preservação ambiental, da diversificação das paisagens e do respeito aos modos de vida; e, por fim, faz uma leitura sobre o papel da agroecologia na Década da Restauração dos Ecossistemas iniciada este mês. 


Asacom - A pandemia da Covid-19, uma das crises sanitárias mais graves deste século, tornou a questão da promoção da saúde e da qualidade de vida ainda mais urgente. Neste cenário, pano de fundo deste mês do Meio Ambiente, o que é importante refletir na relação saúde e sustentabilidade? 

Maria Emília - O contexto da pandemia da Covid-19 aprofunda e amplia o alerta feito pelo movimento agroecológico e pelas organizações que lutam pela soberania alimentar sobre os impactos do sistema alimentar agroindustrial. A criação massiva de animais geneticamente uniformes em confinamento, a destruição de habitats naturais, a degradação e perda da biodiversidade, que formam barreiras de contenção de vírus, os desmatamentos e expansão da fronteira agrícola com o aumento dos monocultivos e da contaminação têm gerado nas últimas décadas várias epidemias.


Asacom – Diante desta realidade, o que deve ser evidenciado neste Mês do Meio Ambiente?

 Maria Emília - Na semana do meio ambiente, não temos o que comemorar! É tempo de protestar e de propor a reconstrução do que [políticas públicas] tem sido destruído! Os números da fome são uma indignidade. Suas causas são de ordem política, econômica e social em um país com um dos maiores índices de desigualdade no mundo. Mas têm forte relação com a questão fundiária e ambiental.  No contexto social da escalada autoritária e das políticas da morte na crise sanitária, vão se avolumando as decisões de agravamento da questão ambiental e fundiária, que desmontam o sistema de fiscalização e controle ambiental, normativas que legitimam a grilagem de terras, criminalização dos movimentos sociais e outros. 

 

Asacom – Quais os exemplos de ações que têm levado ao desmonte das políticas de fiscalização ambiental?

 Maria Emília -  A “Lei da não licença e do autolicenciamento” dá bem a dimensão do impacto da proposta recentemente votada no Congresso Nacional sobre Licenciamento Ambiental. Dentre outras medidas, ficam expressamente dispensados de licença: o cultivo de espécies de interesse agrícola, temporárias, semiperenes e perenes; a pecuária extensiva e semi-intensiva.  Além das inaceitáveis dispensas de licenciamento, o projeto ainda prevê que a licença autodeclaratória (licença por adesão e compromisso), emitida automaticamente sem qualquer análise prévia pelo órgão ambiental, passe a ser a regra do licenciamento. Retrocessos como esse impactam negativamente os direitos das populações. 

 

Asacom – Como a agroecologia se apresenta frente à iminência do surgimento de novas pandemias e à resiliência das populações diante das que estamos enfrentando com a Covid-19, que impactam a saúde, mas também a economia, o modo de vida das populações rurais da região semiárida, que, inclusive, desenvolvem um forte movimento agroecológico?


Maria Emília – A agroecologia apresenta-se como alternativa hoje e para o futuro. Incorpora a perspectiva da soberania alimentar e a efetivação do direito humano à alimentação adequada e saudável prevista no Artigo 6º da nossa Constituição-, com o respeito às culturas alimentares e o reconhecimento da comida como patrimônio e não como mercadoria. Articula-se também com o direito “ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, inscrito no Artigo 225 da Constituição. É fundamental uma agricultura baseada na diversificação da produção e na variedade das paisagens agrícolas, estimulando as interações entre as espécies, ou seja, sistemas agroecológicos adaptados aos ecossistemas de nossos biomas, respeitando os modos de vida e a relação com a natureza dos agricultores e agricultoras familiares, dos povos indígenas, povos tradicionais de matriz africana, quilombolas e comunidades tradicionais. Eles [os povos tradicionais] conservam historicamente a biodiversidade, realizam coleta, cultivam sem veneno e oferecem uma dieta alimentar diversa, que contribui para a saúde da população. Os princípios ecológicos da diversidade, precaução, estão indissociados do princípio da igualdade de gênero e étnico-racial, afirmando o caráter emancipatório da Agroecologia. 

 

Asacom – As ações de convivência com o Semiárido, disseminadas pelas organizações que compõem a ASA Brasil, dialogam com esses princípios? Na sua opinião, como elas se apresentam para o futuro dos povos da região?

Maria Emília - As propostas da Convivência com o Semiárido, com os saberes de práticas baseadas nos estoques de água, de forragem, das sementes manejadas com a ativa participação das mulheres, dialogam com esses princípios e nos mostram o que podemos chamar de uma agroecologia “do lugar”, com as especificidades do rico bioma Caatinga e a pujança das organizações e movimentos sociais. 

 

Asacom – Mesmo com todos esses benefícios elencados, essas políticas vêm sofrendo, desde 2016, um desmonte. Com a chegada da pandemia, problemas como a fome se intensificaram no Semiárido, que, hoje, possui ao menos 3,5 milhões, ou seja, quase um quarto do total de 19 milhões de pessoas que passam fome em todo o Brasil. Como você avalia este cenário?

 Maria Emília - É tempo de protestar e reconstruir. Políticas e programas para o Semiárido como Programa de Sementes Crioulas, Um Milhão de Cisternas, Uma Terra e Duas Águas, assim como Programa de Aquisição de Alimentos e Programa Nacional de Alimentação Escolar, programas de incentivo ao fomento à produção com proposta diferenciada para as mulheres precisam ser reativados ou criados. Um auxílio emergencial digno, a Renda Básica associada aos direitos de proteção social, são imperativos para a retomada econômica e reprodução social dos camponeses e camponesas. As iniciativas de políticas públicas municipais, que estão no levantamento realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia, assim como políticas estaduais, mostram um bom caminho. E o movimento agroecológico segue tecendo as redes que estão na base da construção dos “territórios da agroecologia”. 

 

Asacom – Teve início, neste mês do Meio Ambiente, a Década da Restauração dos Ecossistemas declarada pela Assembleia Geral da ONU. Qual a importância desta data para a promoção da agroecologia? 

Maria Emília - Precisamos de um olhar crítico sobre a proposta da Década da Restauração de Ecossistemas. Ela se apresenta com o discurso de intensificar a restauração de ecossistemas degradados como uma medida para combater as mudanças climáticas e melhorar problemas como segurança alimentar, fornecimento de água e conservação da biodiversidade. Mas inspira-se em processos que estão em curso, a exemplo da “A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade” de 2010, [relatório] com ênfase nos benefícios econômicos globais da diversidade biológica, que atendem aos interesses dos tomadores de decisão na proposição de instrumentos de mercado. Crescem as propostas como soluções de mercado para enfrentar os problemas ambientais, atendendo aos interesses do agronegócio, assim como de empresas de outros negócios. Nesse caminho, vicejam propostas como Pagamento por Serviços Ambientais, fundos e commodities ambientais que compõem uma teia financeira e política do mercado e da financeirização da natureza. Temos o desafio de aprofundar alternativas no cenário de disputa contra a mercantilização da natureza. Precisamos reafirmar nossa convicção de que a proteção ao meio ambiente está intimamente relacionada à proteção dos direitos difusos e coletivos e que envolve a proteção dos modos de vida e dos Comuns e a busca da justiça socioambiental.