Miguel Cela e Sara Brito | ASACom
Guardar sementes, cultivar a terra e colher a fartura
No Semiárido, o estoque de sementes é importante para o combate à fome e enfrentamento às mudanças climáticas, além de preservar um patrimônio genético valioso.

Anualmente, depois do plantio e colheita, algumas sementes são guardadas nas casas de agricultoras e agricultores, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais; ou em bancos comunitários de sementes. As guardiãs e os guardiões de sementes escolhem, limpam e armazenam as mais adaptadas à região para o próximo plantio. As sementes crioulas são fartura e o hábito de estocá-las é cultura no Semiárido.
Na Casa de Sementes da Fartura Lauro Chaves dos Santos, no Assentamento Pedra Branca, em Pedro II (PI), as crianças também contribuem no cuidado com esse patrimônio genético. São os Guardiões Mirins, do grupo Crianças Ativas em Ação. Chamadas de sementes crioulas, são variedades antigas, não modificadas geneticamente em laboratório, cultivadas sem agrotóxicos, adaptadas ao clima e carregadas de saberes que ajudam na preservação da biodiversidade e no fortalecimento da agricultura familiar.
O grupo nasceu durante a pandemia, quando a agricultora Solange Chaves decidiu ensinar e estimular os filhos e outras crianças da comunidade a ler, escrever e conhecer a agroecologia fora das telas dos celulares e mais próximos da natureza. A Casa reúne doze famílias em torno das atividades e da escola de agroecologia, voltada para as crianças. Zaqueu Paulino tem 10 anos, é filho de Solange e um dos Guardiões Mirins da comunidade. Entre as aulas na escola, reuniões, feiras e dias de trabalho no quintal agroecológico, ele aprende e ensina a importância da diversidade e da conservação das sementes crioulas. “Eu gosto muito da Casa de Semente porque cultivar sementes é uma forma de salvar o meio ambiente, a natureza, diversas outras coisas que eu gosto”, conta.
“Zaqueu com sete anos já dizia que queria ser professor”, lembra Solange. “Eu me juntei com as 12 famílias e fiz uma reunião perguntando para eles se eles queriam que as crianças estudassem comigo: ‘eu vou ser professora voluntária dois dias na semana’.” Com o tempo, as aulas se multiplicaram: dos dois encontros semanais que havia proposto inicialmente, hoje também tem encontros dedicados às artes, “eles estão aprendendo a desenhar, estão aprendendo a se identificar como pessoa, como criança, se respeitando”.

A troca de sementes entre agricultoras e agricultores acontece como uma “forma de multiplicar e melhorar a qualidade delas”, explica Zaqueu. Guardar sementes é cultivar um legado de continuidade e renovação, garantindo que valores e experiências passem para as próximas gerações. “Eu já sou professor, na escola de agroecologia, ajudo a minha mãe duas vezes na semana e sou articulador da casa de sementes da fatura.”
Mesmo com pouca idade, Zaqueu e os guardiões mirins já sabem da importância de preservar as sementes crioulas e vem aprendendo práticas de agroecologia. Junto da mãe e das outras crianças, aprenderam a reciclar, não queimar, e a fazer cobertura do solo aproveitando resíduos. Para o jovem, as sementes “são importantes para o combate à fome e às mudanças climáticas” e a mais preciosa é a de feijão.
“Cultivar sementes é uma forma de salvar o meio ambiente, a natureza, diversas outras coisas que eu gosto”, Zaqueu Paulino
Solange conta que muitos eram envergonhados e que percebe o desenvolvimento de cada um. “Antes, muitos tinham vergonha de falar ou aparecer em fotos. Agora fazem postagens, dão explicações para visitantes e apresentam trabalhos com segurança”, conta e Zaqueu completa: “quando eu levo esses assuntos para minha escola [sementes, agroecologia, mudanças climáticas], meus amigos ficam muito curiosos. Eu acho isso muito bom, porque eu já tô aprendendo a não ter mais vergonha. Eu aprendi aqui na comunidade que não devemos ter vergonha de falar nada. Que é muito importante a gente falar para não ficar só entre a gente, a gente multiplicar o que a gente já tem”, explica Zaqueu.
A Casa de Sementes leva o nome do irmão de Solange, que sonhava com um espaço de fartura, diversidade e prosperidade no assentamento. Legado continuado e transmitido pela irmã e pelo grupo de crianças do assentamento. Afinal, o conhecimento precisa ser compartilhado. “Com a agricultura familiar de hoje, os jovens estão aprendendo a cultivar, a cultivar melhor. Então, o que eu quero passar para os guardiões e guardiãs mirins sobre a biodiversidade é isso: o conhecimento dos antepassados de geração para geração, que quando a essa geração daqui, eu, você, outros mais se forem, vai ficar essa geração nova.”
Hoje, o grupo reúne 12 crianças que cuidam, trocam e multiplicam sementes como feijão, fava, milho e arroz, além de aprenderam a reciclar, não queimar, e a fazer cobertura do solo aproveitando resíduos. Para Zaqueu, as sementes “são importantes para o combate à fome e às mudanças climáticas” e a mais preciosa é a de feijão.

Milho Jaboatão: memória, resistência e futuro

Mais que alimento, as sementes são memória, resistência e futuro. No Semiárido paraibano, na comunidade Junco, localizada em Remígio, o agricultor José da Silva Cordeiro, conhecido como Zé do Junco, guarda uma semente de milho adaptada ao território. Há 10 anos, ele, junto com sua família e outras pessoas da comunidade cuidam da semente do milho jaboatão. “A gente vê que ele [o milho] começou a aprender com a gente e desde que a gente começou a plantar ele, a gente tá com esse milho aqui. Já era da família da gente que plantava. Eu acredito que há muitos anos pra trás, ele vinha passando por dificuldades de seca também… por isso que hoje ele tá aqui”, diz Zé do Junco.
Mesmo com as chuvas irregulares deste ano, o milho jaboatão plantado pelo agricultor vingou. “Aquelas culturas mais frágeis, do ciclo mais curto, elas não aguentaram. Esse tem um ciclo de 90 dias, mas ele atrasou por causa da seca. É um milho que se adaptou a essa região aqui”, explica seu José. Segundo ele, o milho jaboatão atrasou porque esperou a chuva chegar para só aí botar a “boneca” (espiga).
“É sabedoria, do jeito que a pessoa vai aprendendo, a cultura também vai aprendendo. Ele tá aprendendo que nem a gente, a conviver aqui”, afirma seu José.
Essa adaptação à região é uma característica das sementes crioulas, que na Paraíba são chamadas de sementes da paixão. A preservação e multiplicação dessas espécies resistentes são possibilitadas pelos bancos de sementes, mantidos e geridos pelas famílias agricultoras. Zé do Junco e sua família são guardiões de um dos 859 bancos de sementes implementados pelo Programa Sementes do Semiárido, da ASA.
“A tendência é a gente colher aqui e guardar no banco. A gente tá vendo que é uma semente que está bem adaptada à região. A gente guarda para distribuir com o pessoal para quem quiser plantar dele. É guardar para no próximo ano, se Deus quiser, a gente plantar ele de volta de novo”, diz seu José.


As agricultoras e agricultores guardiões selecionam as melhores sementes, mais adaptadas e resistentes, antes de guardá-las nos bancos. Eles e elas cuidam da sociobiodiversidade do Semiárido, além de manter a riqueza alimentar da região.
Seu José fala do milho jaboatão com o carinho e amor de quem entende a importância de ser um guardião de sementes. “Bem amarelinho, bem doce e dá uma comida tão gostosa no mundo que até o flocão que faz com ele é gostoso demais. O flocão da paixão. É um milho muito bom”, ele diz.
Sementes do Semiárido
Em cada estado do Semiárido as sementes crioulas têm um nome popular que simboliza a relação de afeto das pessoas pelas sementes que preservam há gerações: Sementes da Paixão na Paraíba, Sementes da Resistência em Alagoas, Sementes da Gente em Minas Gerais, Sementes da Fartura no Piauí, Sementes da Vida no Ceará, Sementes da Independência no Maranhão, Sementes da Liberdade em Sergipe, Sementes da Partilha em Pernambuco, Sementes da Terra na Bahia, Sementes da Tradição no Rio Grande do Norte.
Por compreender a importância do estoque de sementes crioulas para a garantia de segurança alimentar de famílias do Semiárido, em 2015, a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) lançou o Programa Sementes do Semiárido.
Ao longo de cinco anos, foram 859 bancos de sementes implementados em diversas comunidades e distribuídos por nove estados do Semiárido brasileiro. Além da construção da casa, aquisição de equipamentos e base genética, as pessoas envolvidas participaram de capacitações e intercâmbios para fortalecimento das atividades. Cada comunidade tinha autonomia para definir o que armazenar e o que adquirir com o recurso do Programa, podendo variar entre alimentares, forrageiras, adubadoras, nativas, florestais e medicinais.
Dez anos depois do início do Programa, o levantamento “Diagnóstico Avaliativo das Casas e Bancos Comunitários de Sementes do Semiárido”, realizado pela ASA, revelou que esses espaços coletivos são responsáveis pela preservação de 38 espécies e 522 variedades crioulas.
Seja no Semiárido piauiense, paraibano ou cearense, a rede de casas e bancos de sementes são importantes para a continuidade e fortalecimento de ações que contribuem para o bem viver, além de garantir a conservação de um patrimônio genético valioso. Maria Clara, guardiã mirim na Casa de Sementes da Fartura Lauro Chaves dos Santos (PI) diz que “as sementes não só armazenam nutrientes, mas traços culturais e usos culinários das comunidades”. E as pessoas que cuidam, guardiões e guardiãs, têm papel fundamental na resistência das sementes crioulas. “Quem cultiva a terra, cultiva a fartura”, finaliza.
As guardiãs e guardiões mirins da Casa de Sementes da Fartura Lauro Chaves dos Santos:

- Ana Caroline de Sousa Silva
- Artur Rodrigues Alves
- Caik dos Santos Vieira
- Elisiane de Oliveira Rodrigues
- Jéssica Rodrigues de Araújo
- Kayson dos Santos Vieira
- Kemilly dos Santos Vieira
- Kyara dos Santos Vieira
- Lucas de Oliveira Santos
- Luis Davi Sousa de Oliveira
- Maria Aparecida Alves de Oliveira
- Maria Clara dos Santos Sousa
- Maria Heloisa dos Santos Chaves
- Pablo Alves de Oliveira
- Ruim Guilherme dos Santos Sousa
- Zaqueu Chaves Paulino
Solange Chaves dos Santos é guardiã, agricultora, monitora e professora voluntária, coordenadora da casa e defensora da agrobiodiversidade.
Série: Pessoas que Cuidam – Esta matéria faz parte da série “Pessoas que Cuidam”, que busca trazer reflexões sobre a preservação e a sociobiodiversidade do Semiárido brasileiro e do nosso planeta. A série destaca ações de cuidado e proteção desenvolvidas por famílias agricultoras, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.