Cozinheiras escolares revelam desafios e sobrecarga na tarefa diária de alimentar estudantes de todo o Brasil

Número de cozinheiras é insuficiente segundo 7 em cada 10 profissionais, 80% apontam a temperatura nas cozinhas como principal problema de infraestrutura e 26% já precisou se afastar por acidentes de trabalho.

Compartilhe!

Yuri Simeon | Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ)

Essenciais para a garantia do direito à alimentação escolar, as cozinheiras escolares são, em sua maioria, mulheres, negras, com 35 anos ou mais e estão sobrecarregadas. É o que revela a publicação “Levanta Dados Cozinheiras: o que relatam sobre a realidade do trabalho nas cozinhas escolares”, um retrato inédito das condições de trabalho destas profissionais, produzido pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ).

A pesquisa ouviu 1.270 cozinheiras escolares atuantes no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com respostas coletadas entre fevereiro e março de 2025. Os dados revelam que 94,8% das respondentes são mulheres, e 66,2% se autodeclaram negras (pretas e pardas), confirmando o perfil predominantemente feminino e racializado do trabalho nas cozinhas escolares.

A maioria tem entre 35 e 54 anos (71,6%), atua na rede municipal (55,3%) ou estadual (41,2%), e está vinculada ao poder público (86,2%), sendo 75,1% servidoras públicas. O levantamento mostra que 58% está há cinco anos ou mais no PNAE, com 37% do total com mais de dez anos de experiência na alimentação escolar.

Para Débora Olimpio, assessora Executiva e de Pesquisa do ÓAÊ, o estudo traz luz à uma categoria ainda muito invisibilizada. “É motivo de grande felicidade, mas também de preocupação, pensar que esse é o primeiro mapeamento nacional das condições de trabalho das cozinheiras escolares, em que elas são porta-vozes de suas próprias realidades. Esperamos que este estudo possa contribuir com o avanço da valorização e por melhores condições de trabalho para essa categoria tão determinante para a execução do PNAE”.

Precariedade e adoecimento nas cozinhas escolares

As carências estruturais são marcantes. O número de cozinheiras é insuficiente para atender às demandas da alimentação escolar, segundo 69,5% das entrevistadas. No país, existem 272.777 cozinheiras escolares, de acordo com o Censo Escolar (2022), uma média de menos de duas cozinheiras por escola.

As condições físicas das cozinhas também preocupam: 38,1% classificam o espaço como “regular”, 19,5% como “ruim” e 13,3% como “péssimo”. Entre os problemas mais citados estão a temperatura desagradável (80,2%), falta de utensílios (56%) e espaço insuficiente (45,2%).

“Já tivemos casos de cozinheiras serem retiradas desmaiadas da cozinha por excesso de calor. A grande maioria das cozinhas no Amazonas não tem janela e nem exaustor. A gente tem que deixar a porta aberta para ter ventilação. Nossas cozinhas estão sucateadas. Tem cozinha que nem faca tem, a gente tem que comprar a faca”, relata Helen Melo, cozinheira escolar em Manaus e convidada do debate de lançamento da publicação.

Ela aponta o adoecimento pela sobrecarga como principal razão para o afastamento dessas profissionais. “Nós estamos adoecendo pelo excesso de peso que carregamos e por essa sobrecarga de trabalho. Precisamos cozinhar várias refeições por dia sem estrutura adequada. Conheço casos onde há uma cozinheira para mais de 500 estudantes”.

De acordo com os dados do estudo, os riscos à saúde são constantes e 26% das cozinheiras já precisaram se afastar do trabalho por acidente ou lesão nos últimos cinco anos; 60,2% sofreram queimaduras, 55,6% lesões musculares e 39,5% cortes e lacerações. Somam-se a isso a falta de ergonomia, sobrecarga e ausência de parâmetros nacionais de segurança no trabalho.

Defesa da nomenclatura e valorização da categoria

Apenas 35,4% das profissionais possuem vínculo de trabalho como cozinheiras escolares, 32,8% são contratadas como merendeiras, 20,6% como manipuladoras de alimentos, 8,5% como ajudantes de serviços gerais, 1,2% como auxiliares de limpeza e 1,6% não souberam dizer.

A defesa da unificação da nomenclatura para cozinheiras escolares, junto à estruturação de um plano de carreira, menores jornadas de trabalho e melhores condições de trabalho, foram apresentadas como principais demandas pelas cozinheiras escolares que participaram do lançamento do estudo.

“O merendeiro soa como se fizéssemos só uma merenda, um lanche. Não, a gente não faz só merenda. Cozinhamos mesmo, temos todo o cuidado com a manipulação. Então, temos que passar por cima dessa nomenclatura de merendeira. E cobrar a mudança para cozinheira escolar”, defende Lyllian da Silva, cozinheira escolar em Paço do Lumiar, Maranhão, e representante da Associação de Merendeiros de Paço do Lumiar (AMPA).

“A maioria das cozinheiras hoje são formadas, gastrônomas, administradoras, professoras, que vieram para essa profissão por amor à alimentação escolar. E querem oferecer uma boa alimentação”, explica Helen. “Termos pressa de resolver isso para que sejamos vistas. Em muitos lugares ainda somos menosprezadas e desvalorizadas. Precisamos ter um reconhecimento maior”, pontua a cozinheira de Manaus.

Mesmo na literatura, é pouco documentada a história das cozinheiras escolares, “A profissão de merendeira, quando vamos procurar na história, a gente não acha. Para achar, temos que estudar sobre alimentação”, relata Kerley Arruda, cozinheira escolar e diretora do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEPE), em Niterói (RJ).

“Conforme a alimentação escolar foi melhorando, as mesmas mulheres da comunidade que ganhavam alguma renda para servir os lanches, passaram a ter a necessidade de qualificação. Deixaram de abrir um pacote de biscoito e passaram a produzir uma refeição completa, com comida de verdade no prato dos alunos”, detalha.

Para Kerley, “ao não se entender a importância de nossa função, nos chamam de merendeiras. Reconhecer nosso papel de cozinheiras escolares nos dá dignidade”, pontua.

Junto ao SEPE, as cozinheiras escolares de Niterói estão em campanha de reivindicação pela mudança de nomenclatura, contratação via concurso público, melhores condições de trabalho e a redução de jornada para 30 horas semanais.

De acordo com dados do estudo do ÓAÊ, metade (50%) das profissionais trabalha seis horas por dia, mas a outra metade trabalha sete horas ou mais, com 11,9% relatando jornadas superiores a oito horas.

Segundo Arruda, “esses dados são importantíssimos para dar subsídios para que políticas públicas possam acontecer à favor da dignidade das cozinheiras escolares. Que as cozinhas onde trabalhamos sejam cozinhas industriais. O que nós temos hoje são adaptações. E a gente acaba adoecendo muito pela falta de estrutura”, ressalta a cozinheira de Niterói.

Compromisso com a alimentação escolar

Apesar dos desafios, os resultados do estudo evidenciam o compromisso com a qualidade da alimentação escolar, com forte adesão das cozinheiras às diretrizes do PNAE. 93,5% das profissionais concordam totalmente ou parcialmente com a restrição de ultraprocessados na alimentação escolar.

Refeições completas, com alimentos como arroz, feijão, legumes, verduras e carnes, são servidas todos os dias nas escolas de 65% das respondentes, conforme o cardápio elaborado por nutricionistas. Porém, 30,1% relatam falta de fornecimento dessas refeições todos os dias.

Para 74,8% a quantidade de alimento fornecido é suficiente, mas 18,5% consideram a quantidade pouca ou muito pouca. E 14,9% relatam que já houve dias em que os estudantes ficaram sem alimentação por falta de fornecimento, o que configura grave violação ao direito humano à alimentação.

Segundo 82,6%, suas escolas recebem alimentos da agricultura familiar, sendo que 66,1% relatam entregas semanais de produtos frescos. E 11,4% denunciam a existência de cantinas com a venda de ultraprocessados.

A formação continuada ainda é insuficiente: 15% dizem não receber nenhuma capacitação e 48,3% consideram inadequadas as formações existentes. Apenas 30,4% participam de atividades de Educação Alimentar e Nutricional nas escolas, o que reforça a necessidade de integrar essas profissionais aos processos pedagógicos.

Embora 64,1% reconheçam a importância, para orientar o trabalho, do Guia Alimentar para a População Brasileira e do Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos, 33,8% afirmam não conhecê-los.

Em suas conclusões, o relatório analisa que “sem as cozinheiras escolares, não há PNAE. São elas que transformam diretrizes e recursos em comida de verdade, que garantem diariamente a efetivação do direito humano à alimentação e nutrição adequadas (Dhana) e que dão vida à política pública mais longeva e estruturante de segurança alimentar e nutricional do Brasil”.

Para Lyllian, cozinheira escolar do Maranhão, “estamos prestando o serviço para os estudantes, o ponto final do nosso trabalho é garantir o direito à alimentação escolar para eles”, conclui.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *