Gleiceani Nogueira | Asacom
Levantamento inédito quantifica o valor da produção de alimentos agroecológicos das mulheres rurais no Semiárido
Os dados são das Cadernetas Agroecológicas e apontam uma produção de alimentos saudáveis que ultrapassa a média econômica de outras regiões do país.

Um levantamento inédito revela que o Semiárido brasileiro é um dos grandes produtores de alimentos do país e boa parte dessa produção vem das mãos das mulheres. O estudo analisou a produção proveniente dos quintais produtivos de 416 agricultoras dos nove estados do Nordeste e comprovou que, em apenas oito meses, esses espaços movimentaram R$ 1,2 milhão, considerando o que é consumido, doado, trocado e comercializado pelas próprias mulheres.
Os dados são fruto das Cadernetas Agroecológicas, uma metodologia feminista criada pelo Centro de Agricultura Alternativa da Zona da Mata (CTA-ZM) para visibilizar o trabalho realizado pelas mulheres em seus quintais. O levantamento foi conduzido pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), por meio do projeto Quintais das Margaridas, em parceria com a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), via projeto Baraúnas/Núcleo Jurema.

O Projeto Quintais das Margaridas nasceu da reivindicação das mulheres rurais que mobilizam a Marcha das Margaridas. A iniciativa faz parte do Programa Quintais Produtivos das Mulheres Rurais do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), e foi executado no Nordeste por 14 organizações sociais da ASA com apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
“Com o projeto das margaridas a minha visão mudou porque eu dizia que não tinha nada. Com o diagnóstico eu vi que eu tenho fruteiras, tenho plantas medicinais, tenho galinhas e aprendi também nas reuniões como cuidar do solo porque até então eu queimava, varria embaixo das plantas e nessas formações a gente aprender que não é certo. A gente precisa colocar o adubo para que a planta se fortaleça”, destaca Maxsandra dos Santos, de Juazeirinho, no Cariri paraibano.
O quintal produtivo é um espaço vivo e a produção que acontece no entorno das casas é de fluxo contínuo. A cada dia há algo diferente sendo colhido, trocado ou vendido: um molho de coentro, uma alface, uma galinha, alguns ovos. São pequenos valores que parecem pequenos isoladamente — R$5, R$10, R$20 — mas, somados ao longo do tempo, revelam um volume expressivo de riqueza muitas vezes invisível para as próprias mulheres.
“A caderneta me mostrou uma riqueza que eu nem sabia. O quanto é rica e diversa a nossa terra, um detalhamento de informações. Aquilo que eu troco, dou. O que eu não compro, eu economizo”, conta a agricultora Elisabete Alves, do assentamento Maceió, em Itapipoca (CE).
Para Maitê Maronhas, assessora da coordenação do Programa P1+2/ASA, que esteve à frente da ação, a caderneta funciona como um espelho.
“Assim como qualquer um de nós, se as mulheres agricultoras não fizerem esse exercício de anotar quanto deu isso em um mês, em seis meses, em um ano, elas não têm noção de qual é o volume de riqueza que estão movimentando em seus quintais. A caderneta revela o que está oculto, reúne o que é distribuído no tempo e mostra para as agricultoras o quanto realmente produzem”.
Em alguns casos, os quintais geram mais valor do que os roçados, que são espaços historicamente ocupados pelos homens e socialmente mais valorizados. Isso rompe um paradigma e reforça o papel das mulheres na produção e geração de riqueza e de alimentos.

Produção acima da média
Nos 416 quintais do Nordeste, a média mensal por mulher foi de R$ 700, um valor superior ao registrado em outras regiões onde a mesma metodologia foi aplicada. Isso é significativo em um território marcado por desafios climáticos e histórico de invisibilidade. Ainda assim, essas mulheres produzem mais do que imaginam.

“Isso é muito significativo porque estamos falando de uma região muitas vezes vista pelos seus limites, pelas suas impossibilidades, porque tem seca, porque é difícil produzir. Mas os dados comprovam que não é nada disso. Essas mulheres estão produzindo e produzindo mais do que em outras regiões. Isso chama muito a atenção”, destaca Maitê Maronhas.
Esse valor considera os quatro fluxos: venda, troca, doação e consumo. Isso amplia a leitura de que mesmo o que não se converte em dinheiro é riqueza. Como explica Maitê Maronhas: “Muitas vezes a gente considera só o que é produzido no roçado e na comercialização. Parece que só entra dinheiro a partir desses lugares. Mas tudo aquilo que elas não compram, mas produzem em casa, é uma forma de gerar renda e garantir o sustento da família”.
Comida de verdade em bases sustentáveis
Mais do que prover sustento, essas mulheres produzem comida de verdade. São alimentos de origem vegetal e animal, comercializados in natura ou minimamente processados, que garantem diversidade, qualidade e saúde. Um exemplo é a própria Elisabete. Em seus dois hectares, ela produz uma variedade de frutas e hortaliças.
“Aqui eu tenho limão, coco verde, caju, manga, acerola, hortaliças como cheiro verde, batata doce, galinha caipira, ovos”. Ela também planta milho e feijão e cria peixes. “Acho que 75% do que eu consumo vem do meu quintal. Tudo é natural produzido sem veneno”, afirma orgulhosa.
O milho e a mandioca também são usados para fazer bolos, pamonhas e canjicas que ela vende nas feiras agroecológicas de Itapipoca e Fortaleza. Além disso, prepara o que chama de “comida feita”, que são pratos prontos de peixe e camarão que encantam a clientela.
E esse trabalho só tende a crescer, pois Elisabete recebeu um kit irrigação composto de aspersores e uma bomba pelo Projeto Quintais das Margaridas. Isso vai possibilitar que ela plante o ano todo. Antes, o plantio ficava restrito ao período das chuvas, de janeiro a maio.
“Como eu trabalho com alimentação, não vai faltar milho para fazer a canjica, a pamonha, o bolo de milho, o feijão verde”, comemora. Esse projeto me trouxe muita esperança, mais qualidade de vida e fartura na mesa”, celebra.

Essas vivências demonstram que soluções territoriais, concebidas coletivamente e embasadas na agroecologia, são o caminho para um território mais saudável e que cultiva o bem viver. Na semana em que se celebra o Dia Mundial da Alimentação (16/10) e o 13º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), que ocorre em Juazeiro (BA), no coração do Semiárido, essa pauta ganha visibilidade e urgência.
“A natureza está dizendo que não suporta mais o modelo do veneno e do transgênico. É preciso que a gente deixe isso claro para quem faz a pesquisa e para os governos. Nosso compromisso é fortalecer os sistemas agroalimentares sustentáveis, a partir da convivência com o Semiárido e da agroecologia e deixar um mundo saudável para as próximas gerações”, afirma Roselita Victor, da coordenação executiva da ASA.