O Bem Virá: documentário que o Brasil precisa ver

Em entrevista para a ASA, Uilma Queiroz, diretora do filme, fala sobre sua experiência com a Convivência com o Semiárido, suas escolhas estéticas e políticas para retratar o Semiárido, além de comentar sobre a importância do cinema brasileiro.

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Lívia Alcântara e Sara Brito

Uilma Queiroz nasceu no Sertão do Pajeú (PE), conheceu a Convivência com o Semiárido desde pequena. Faz parte de uma geração que cresceu com as transformações provocadas pela chegada das cisternas e de outras tecnologias e estratégias de adaptação climática às estiagens, típicas do Semiárido brasileiro. 

Ela pôde viver onde nasceu, fazer faculdade, pós graduação e ter a ousadia de fazer cinema, como ela mesma conta. Em 2025, lançou seu primeiro longa-metragem: O Bem Virá, que traz a perspectiva da convivência com o Semiárido para o cinema a partir da busca e dos depoimentos de 13 mulheres que trabalharam nas Frentes de Combate às Secas, enquanto estavam grávidas, em 1983. 

Em entrevista para a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Uilma Queiroz conta sobre seu processo de produção do documentário, fala sobre seu encontro com o paradigma da Convivência com o Semiárido e defende políticas públicas para que mais pessoas, de diferentes lugares e origens do Brasil, possam contar suas próprias histórias a partir do audiovisual. 

Cena do documentário O Bem Virá. Foto: acervo O Bem Virá.

ASA – O Bem Virá é um filme que conta histórias de lutas e vitórias que se cruzam com a própria história da ASA. Foi o que disseram representantes da ASA durante a exibição do documentário na Jornada da Terra em julho deste ano. Como esta história da ASA se encontra com sua própria história e com a concepção deste filme?

Uilma Queiroz – Na faculdade de história daqui, eu tinha amigas que participavam do sindicato rural. Então, eu encontro esse discurso da ASA através da agricultura familiar e dos trabalhadores rurais. Mas tinha uma amiga chamada Silmara Marques, que é também pesquisadora do filme, e que trabalhou muito tempo no CONDRU, que era um órgão ligado ao sindicato aqui em Afogados. E com Silmara eu comecei a ouvir as primeiras coisas sobre Convivência com Semiárido.

Em 2013, a nossa barragem, que tinha mais de 30 anos, abençoada por Frei Damião, secou. Então eu costumo dizer que ser do Semiárido, já interpela a gente a pensar com o clima.

E aí a gente cria aqui em Afogados um movimento chamado Pela Água, Pela a Vida.  Nesse momento, eu já era professora de história nessa mesma faculdade que eu estudei. E a gente transformou esse movimento em um projeto pedagógico, com educação contextualizada. Os seminários de história que eu ia já falavam em educação contextualizada a partir da convivência com o Semiárido.

A partir de 2013, 2014, eu encontro a fotografia [fotografia com 13 mulheres na Frente de Luta Contra a Seca, que faz parte do filme], o grupo Mulher Maravilha e a Casa da Mulher do Nordeste. Em 2010, eu fui voluntária na casa da Mulher do Nordeste para ser monitora da Escola Feminista. E nas formações, eu já falava de Convivência com Semiárido e da ASA. Então, eu encontro nesse caminho enquanto professora, enquanto estudante de história e depois como militante do movimento de mulheres. E aí faz muito sentido. 

A Convivência com o Semiárido era uma quebra de paradigma no meu juízo. A colonização faz com que a gente, que é sertanejo, acredite que nasceu no pior lugar do mundo. A Convivência com o Semiárido desloca esse paradigma. Ele diz: ‘Não, aqui o lugar não é atrasado por causa do clima, é por política’,  que são os discursos que eu vou trazer no filme. 

ASA – Como é para você, que não viveu as Frentes de Emergência, poder conhecer e contar essa história com a participação dessas mulheres?

Uilma Queiroz – Ao mesmo tempo que eu não participei como pessoa, eu cresci ouvindo falar das Frentes de Emergência Contra a Seca, que tinha um documento [canhoto de alistamento nas frentes] muito importante para a aposentadoria rural. Eu cresci com minha mãe dizendo “a prova da emergência” como um documento que foi importante para ela acessar a aposentadoria rural. Então, esse tema não era uma novidade. Quando eu achei a foto, eu não tive que aprender o que eram as Frentes. Eu tive que me aprofundar. 

Tem uma coisa que eu digo que, de algum jeito, a gente, muitas famílias sertanejas, nos alimentamos das frentes, e daí porque eu fui entendendo a complexidade que eram as frentes de emergência. Naquele momento, por vezes, era a única forma de mitigar a fome, só que uma forma completamente desumana e escravocrata. Mas havia um pouco esse entendimento de que eu me alimentei das frentes e se eu estou viva, tem a ver também com as Frentes terem existido de alguma uma maneira.

Embora para mim não fosse uma novidade, para a maioria do Brasil seria. Durante o processo de montagem foi ficando muito evidente que a gente precisaria explicar do zero o que eram as Frentes. 

Gravações do documentário O Bem Virá. Foto: acervo O Bem Virá.

ASA – As mulheres entrevistadas parecem muito à vontade para contar suas histórias. Houve uma produção prévia ou as primeiras conversas aconteceram mesmo no momento das gravações? Como você construiu relações com elas?

Uilma Queiroz – [O filme] Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, sempre foi uma referência muito importante. Tanto porque tem a luta pela terra, quanto porque tem esse dispositivo de ele pegar filmagens de 1964 e ir em busca das pessoas em 1980.

Então tinha uma referência direta, eu ia pegar uma foto e iria atrás das mulheres. E Eduardo Coutinho tinha o método de que ele não conhecia as personagens antes. Ele enviava uma equipe, essa equipe conhecia os personagens, criavam uma relação com elas e quando ele chegava [para as gravações] era novidade. E a gente seguiu esse método. Silmara e Rogério, são dois professores da faculdade de história daqui, que foram os pesquisadores do filme. 

Inicialmente, a gente defendeu um método que seria um filme de busca. A ideia era eu pegar a câmera e já ir filmando, procurando as pessoas. Só que quando foi chegando perto das gravações, eu fui voltando ao desejo que era de fato encontrar essas mulheres. 

O que a gente registrou dessa pesquisa foi a rádio, que foi um elemento muito importante para a busca. A cidade se envolveu de forma incrível na pesquisa, como aparece no filme, virou aquele clima tanto na rádio, quanto em cartazes na cidade, Facebook. Decidimos fazer um mês de pesquisa e, no meu juízo, era para garantir que essas mulheres fossem encontradas. 

E eu não encontrei com elas antes das filmagens. Quando eu as conheci, já foi no dia da gravação. 

Então, eu acho interessante também o quanto elas se abriram comigo, porque eu não as conhecia, eu não desenvolvi uma relação anterior. Algumas delas, o que elas falam de mais íntimo, elas não tinham revelado na pesquisa.

Eu já trabalhei com pesquisa com mulheres anteriormente, com método da história de vida. Eu tinha certa confiança de que ia rolar. Porque quando tem alguém que nos escuta, a gente quer contar a nossa história. E foi isso que aconteceu. E aí era simplesmente: conte sua vida! 

Eu acho que esse encontro com essas mulheres é um reflexo de outros encontros que eu tinha tido com outras mulheres, de escutas com trabalhadoras rurais, como a minha mãe também.

ASA – Para quem conhece os estereótipos sobre o Sertão veiculados no cinema e na mídia, é nítido como você faz escolhas estéticas para construir uma imagem de um Sertão Vivo e potente, como gravar no período de chuvas. Que outras escolhas você fez e como foi o processo de fazer estas escolhas? 

Uilma Queiroz – Acho que a principal delas, de fato, é filmar o Sertão verde. Outras foram se dando de maneira orgânica. Quando a gente chegava na casa delas, sentíamos que era uma casa que pudesse expressar pobreza, a gente procurava estratégias: “vamos botar a cadeira na calçada”. Olhava para essa casa com carinho. É como se eu tivesse entrevistando minha mãe, tivesse chegando lá em casa. Então eu queria uma luz bonita, que pegasse aquela planta no final. A gente mudava a ordem dos móveis para criar um ambiente que pudesse gerar uma profundidade, gerar um respeito dentro das casas. 

Não é maquiar a pobreza, é exatamente encontrar dignidade e beleza nesse lugar. É não destacá-las como pobres, ao contrário, é olhá-las como gente. 

Quando reunimos essas mulheres no Barreiro [cena do filme], a gente marcou salão de beleza, tinha uma preocupação de que elas próprias se sentissem à vontade.

teve esse olhar para o Sertão de forma ampla, mas também um olhar de cuidado para cada casa, para cada pessoa. Os jornais, a grande mídia, vem aqui e se tem 10 paredes pintadas e uma descascada, eles filmam nessa descascada. 

ASA – Uma das coisas que emocionam a gente ao ver o filme são as imagens de arquivos. Como foi trabalhar com estes arquivos e como você os encontrou? 

Uilma Queiroz – Esse encontro com os arquivos mudou muito minha vida. É falar de como o Sertão é representado no audiovisual, mas para além do estereótipo, dizer: “tem outras imagens que estão aí, que a gente precisa fuçar para encontrar elas e elas sempre existiram desde que se faz audiovisual no Brasil, desde, pelo menos, a década de 60”. Então, existe outra forma de olhar pro Sertão. Podemos usar esses recursos, nos inspirar neles. 

Quando fui fazer O Bem Virá, o que me fez ir para as imagens de arquivo foi uma vinda do Geraldo Pinho, que era o programador do Cinema São Luiz, no Recife, para a Mostra Pajeú de Cinema. E ele disse: “Eu vim aqui em 1983 filmar uma passeata de trabalhadores”. Aí eu disse: “O quê!”? 1983 era o ano da foto. Fiquei pensando “que passeata?” E, perseguindo essa imagem, a gente encontrou aquelas que estão no filme, a de Geraldo Pinho a gente não encontrou.

Soubemos que Geraldo Sarno, que é outro cineasta brasileiro, inclusive do Cinema Novo, também veio para Afogados filmar essa passeata. Porque em 1983 foi notícia nos jornais estaduais que os trabalhadores iriam se reunir em Afogados e lutar por um melhor salário nas frentes de emergência. E perseguindo essa imagem a gente encontrou tantas outras, a do saque em Serra Talhada, de outras passeatas no sertão da Bahia.

Nas primeiras etapas de montagem, quando a gente estava montando as entrevistas, eu me lembro de um dia que eu cheguei para a montadora e disse: “Olha, tá massa o filme, mas sabe o que eu quero falar? Eu quero falar de Convivência com o Semiárido. Elas não trouxeram isso na palavra delas. Como é que vamos encontrar um jeito de falar disso?”. E essas imagens de arquivo traziam essa quebra de paradigma. 

Além de pensar o Sertão como o lugar seco que só tem fome e miséria, faz parte desse estereótipo pensar nós sertanejos como pessoas que não temos agência, como pessoas que não são sujeitos políticos, como pessoas que não construímos a história do Brasil. Esse momento que a gente estava se organizando politicamente, que a gente estava exigindo os nossos direitos, eu trouxe pro filme, eu quis valorizar isso.

É essa a importância da ASA também, que ao invés de ser alguém de Brasília que chega e cria Sudene e diz que vai resolver tudo, são de fato as pessoas daqui que inventam tecnologias, que inventam formas de se mobilizar para conviver com o próprio lugar. O filme é uma busca por esse exercício. O olhar todo que se busca construir é daqui. 

ASA – O Bem Virá é financiado com recursos públicos destinados à cultura e ao cinema brasileiros. Qual é a importância destas políticas de investimento público para que mais histórias sobre o Semiárido e sobre as mulheres sejam contadas pelos seus povos?

Uilma Queiroz – Tal como nós estamos hoje, a gente só vai conseguir construir histórias que ecoem de forma complexa através do financiamento público. Pode ser que em algum momento a gente não precise dele, mas tal como estamos agora, é fundamental que a gente tenha o financiamento público para o Brasil se conhecer, para que haja essa diversidade de vozes na construção do audiovisual brasileiro.

Porque embora o povo brasileiro esteja construindo cultura há séculos, muito antes inclusive de ser Brasil, o audiovisual é uma linguagem que especialmente carece de um suporte que ainda é caro. Embora seja uma arte cara, que não é acessível a todo mundo de forma completa, é uma expressão artística que tem um potencial de comunicação surreal.

Nós nunca assistimos tanto! Nós nunca tivemos tanto acesso a conteúdo audiovisual. E a gente precisa fazer ele com elaboração também. Tem o vídeo do TikTok que a gente faz em um dia, mas precisamos também fazer obras cinematográficas que vão durar dois anos sendo feitas, mas que vão ter uma elaboração sobre o que é o Brasil e o que somos nós e o que é o Semiárido, que, às vezes, nesse vídeo de um minuto não é possível.

Garantir esse recurso público para financiar o audiovisual é um exercício para o Brasil conhecer a si mesmo. 

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