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PL da Devastação é aprovado: o que muda para o Semiárido e o meio ambiente no Brasil?
Com flexibilização de licenças e desmonte de normas, PL coloca populações e territórios em risco. A ASA entrevistou especialista em justiça climática para entender quais os riscos para o Semiárido.

Na madrugada de 17 de julho de 2025, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 2.159/2021, conhecido como PL da Devastação. A proposta altera profundamente as regras do licenciamento ambiental no Brasil, enfraquecendo as exigências para diversos tipos de empreendimentos e abrindo brechas para o desmatamento e violações de direitos de povos e comunidades tradicionais.
Para entender o que está em risco com a nova legislação, a ASA entrevistou Jéssica Siviero, especialista em Justiça Climática na ActionAid Brasil. Confira:
O que muda com esse projeto?
Jessica Siviero: O chamado PL da Devastação representa um retrocesso em mais de 40 anos de luta por regulamentação socioambiental no Brasil. Embora se apresente como uma proposta para resolver a fragmentação e a insegurança jurídica dos processos de licenciamento ambiental, ele na verdade aprofunda a confusão e enfraquece ainda mais os mecanismos de controle e proteção ambiental, o que pode ser prejudicial até mesmo para os próprios empreendedores que o apoiam. A legislação atual já enfrenta críticas de diversos setores, da sociedade civil, da academia, do Ministério Público e até de setores econômicos, mas o PL não resolve essas falhas. Em vez disso, institucionaliza práticas problemáticas e amplia brechas para a degradação ambiental.
O projeto ignora a necessidade de critérios claros e específicos para diferentes tipos de empreendimentos. Ele limita os estudos de impacto ambiental (EIA/RIMA) aos casos classificados como de grande impacto, mas não define com precisão o que são empreendimentos de pequeno, médio ou grande porte, o que abre margem para que projetos potencialmente muito danosos escapem de análises mais rigorosas. Isso é particularmente grave no caso das fazendas de energia eólica e solar, que hoje são uma das maiores ameaças ao bioma da Caatinga, segundo o próprio IBAMA, o MapBiomas e redes de pesquisa. Esses empreendimentos têm causado desmatamento, alteração nos modos de vida de comunidades tradicionais e impactos à saúde que não são devidamente avaliados nos estudos simplificados.
Uma prática recorrente, chamada licenciamento fragmentado, já é usada para burlar as exigências legais: grandes empreendimentos são divididos em “parques” menores para obter licenças simplificadas e escapar de uma avaliação robusta. O PL legaliza essa prática, que atualmente ainda pode ser contestada judicialmente. Com a nova lei, licenças podem ser concedidas por adesão e compromisso, mesmo em áreas onde já há empreendimentos impactando o território, o que agrava ainda mais a situação e legitima o acúmulo de danos.
Além disso, o projeto traz um ponto gravíssimo ao permitir que empreendimentos funcionando irregularmente possam simplesmente se declarar em processo de regularização, sem sofrer sanções, esvaziando o caráter imprescritível dos crimes ambientais. Esse tipo de autodeclaração sem avaliação pública, técnica e transparente, compromete profundamente a eficácia do controle ambiental. A consequência direta é a normalização da ilegalidade, criando um precedente perigoso para o desmonte de outros marcos regulatórios.
Quem se beneficia com as mudanças?
Jessica Siviero: Todos os setores econômicos que operam com alto impacto ambiental tendem a se beneficiar do PL: energia, mineração, agronegócio e infraestrutura. No entanto, essa aparente vantagem é contraditória. Algumas entidades empresariais e até representantes do setor financeiro já se posicionaram contra o projeto, por entenderem que ele aumentará a insegurança jurídica, abrindo espaço para judicializações e para conflitos socioambientais que afetam a imagem e a operação de negócios no Brasil e no exterior.
O projeto ainda compromete a imagem do Brasil no cenário internacional, especialmente às vésperas da COP 30, da qual o país será anfitrião. Em vez de avançar no aprimoramento da legislação ambiental frente à crise climática, o PL aposta num modelo de autorregulação que enfraquece os instrumentos de proteção. O que está em jogo, portanto, é a própria possibilidade de um desenvolvimento sustentável no Brasil, com justiça ambiental e respeito aos territórios e seus povos.

Riscos concretos desse PL para o Semiárido e seus povos
Jessica Siviero: Facilita a expansão de grandes empreendimentos na região, como fazendas de energia e projetos de mineração, sem levar em conta os impactos sociais e ambientais.
Essas iniciativas, embora apresentadas como parte de uma transição energética, têm alto potencial poluidor e já causam prejuízos diretos, como o desmatamento, o esgotamento de fontes hídricas e a rachadura de cisternas — uma conquista histórica das populações do Semiárido. Ao permitir a instalação de empreendimentos por meio do simples preenchimento de um formulário online, o PL também abre espaço para a regularização de atividades que já causaram degradação sem a devida compensação.
Impactos na participação social
Jessica Siviero: O projeto desmonta os poucos instrumentos de controle social existentes, como audiências públicas e conselhos de meio ambiente, que já operam sob forte influência de empresas e do próprio Estado.
A exclusão das populações locais das decisões sobre o futuro de seus territórios compromete diretamente o princípio de justiça socioambiental. A ausência de escuta e de envolvimento dos povos do campo, das florestas e do Semiárido inviabiliza qualquer ideia de transição justa, especialmente em um contexto de emergência climática.
Relação com os acordos internacionais de enfrentamento da emergência climática
Jessica Saviero: As flexibilizações propostas pelo PL vão na contramão do que os acordos internacionais apontam como caminho para o enfrentamento da crise climática. Em vez de fortalecer o planejamento ambiental e investir em modelos sustentáveis, como a geração descentralizada de energia ou a agroecologia, que além de produzir alimentos também recupera áreas degradadas, o projeto aposta na continuidade de um modelo extrativista que ignora as vocações produtivas e culturais do Semiárido.
Isso não apenas ameaça os modos de vida da população local, como também coloca o Brasil em risco frente a mercados internacionais que já impõem restrições a produtos ligados ao desmatamento e à degradação ambiental.
Desmonte das políticas socioambientais no Brasil
Jessica Siviero: O projeto de lei se insere num cenário já marcado por um processo sistemático de enfraquecimento das políticas socioambientais no Brasil, em curso desde 2016.
Em vez de investir no fortalecimento institucional, como a contratação de mais técnicos e analistas ambientais, o Estado tem utilizado a justificativa da falta de pessoal nos órgãos ambientais para flexibilizar ainda mais as regras. Isso tem permitido que empreendedores realizem por conta própria etapas importantes dos processos de licenciamento, o que compromete seriamente a fiscalização e o controle de danos ambientais.
Essa lógica faz parte de um modelo de “passar a boiada”, que tem se manifestado por meio de diversas legislações e medidas que, gradualmente, reduzem a exigência de avaliação técnica, eliminam a participação popular e aceleram o licenciamento de empreendimentos, mesmo aqueles com alto potencial de impacto.
Os órgãos ambientais, como o IBAMA e seus equivalentes estaduais, estão hoje fragilizados, com equipes reduzidas e sem condições de analisar estudos complexos e consistentes que envolvem não apenas dados técnicos sobre poluição ou degradação, mas também questões socioeconômicas e culturais dos territórios afetados.
Ao mesmo tempo, há uma pressão, que parte não só das empresas, mas também do próprio Estado, para que tudo aconteça com mais rapidez, em nome de um suposto desenvolvimento.
Isso revela uma visão de produção voltada para a quantidade, e não para a qualidade, que desconsidera os impactos de longo prazo e os direitos das populações atingidas.
O projeto, portanto, não é um caso isolado, mas sim um reflexo de uma política mais ampla que prioriza os interesses do mercado e enfraquece os instrumentos de controle social e proteção ambiental.
Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC)
Jessica Siviero: É a criação da Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC), conhecida como autolicenciamento. Essa modalidade permite que os próprios empreendedores declarem, por conta própria, que cumprem os requisitos ambientais, sem uma análise técnica prévia pelos órgãos ambientais.
Com definições vagas e pouco delimitadas, a LAC pode acabar abrangendo quase todos os empreendimentos, inclusive aqueles com significativo impacto ambiental. O argumento de que essa medida traz segurança jurídica é ilusório — na prática, ela pode gerar mais caos e judicializações, ao abrir mão da análise técnica que daria legitimidade e segurança ao processo.
Na prática, o significado do licenciamento ambiental especial
Jessica Siviero: Outro ponto extremamente grave é a previsão de um licenciamento ambiental especial para atividades ou empreendimentos considerados “estratégicos”.
A definição do que é estratégico fica inteiramente nas mãos do governo, podendo ser usada conforme interesses políticos ou econômicos momentâneos. Durante o governo Bolsonaro, por exemplo, todos os minerais já conhecidos no subsolo brasileiro foram classificados como estratégicos, o que mostra o risco de generalização dessa categoria.
Na prática, essa medida abre caminho para acelerar empreendimentos de grande porte e impacto, muitas vezes contrariando a posição técnica de órgãos como o IBAMA.
O combo das licenças prévia, de instalação e operação
Jessica Siviero: O projeto também propõe a emissão conjunta das três licenças — prévia, de instalação e de operação — em um único ato, eliminando o modelo atual que exige o cumprimento de obrigações específicas antes de cada nova etapa.
Isso compromete a avaliação do cumprimento de condicionantes ambientais, fundamentais para garantir que o empreendedor atue de forma responsável em cada fase do projeto. Ao concentrar todas as etapas em uma única licença, o projeto esvazia o papel fiscalizador do licenciamento ambiental.

A liberação de empreendimentos considerados “Culturas de interesse”
Jessica Siviero: Outro ponto alarmante é o Artigo 9º, que libera empreendimentos agrícolas do licenciamento ambiental, desde que sejam considerados “culturas de interesse”.
A medida é inconstitucional, segundo decisões do próprio STF [Supremo Tribunal Federal], e representa uma anistia ambiental para setores como a pecuária intensiva, especialmente bovina, suína, avícola e de piscicultura, sem definir critérios claros de porte e impacto.
Ainda mais grave é o fato de essa liberação incluir imóveis que estão em processo de regularização ambiental, bastando que tenham um registro no CAR [Cadastro Ambiental Rural], mesmo que pendente de homologação — uma brecha enorme, já que menos de 1% dos registros estão de fato homologados.
Bancos, investidores institucionais e financiadores
Jessica Siviero: O Artigo 54 representa um retrocesso ao desresponsabilizar bancos, investidores institucionais e financiadores por danos ambientais causados por projetos que eles apoiam.
Isso enfraquece ainda mais os instrumentos de controle, indo na contramão do que é necessário para combater a crise climática. Ao isentar empreendimentos de energia — que já operam sem estudos rigorosos — de qualquer responsabilização efetiva, o projeto desmonta os poucos mecanismos de proteção ambiental que ainda restam.
Caminhos políticos e populares para a resistência
Jessica Siviero: A resistência a esse projeto de retrocesso passa por caminhos políticos e populares já em curso, como as marchas organizadas pelos movimentos sociais, que ocupam as ruas em defesa do meio ambiente e dos territórios.
Também há uma atuação crescente no campo digital, com o uso de estratégias como o envio de e-mails automáticos a parlamentares, os chamados new lists, que ajudam a pressionar os deputados e senadores contra a aprovação do projeto. Essas ações pontuais são importantes, mas é principalmente por meio de processos de formação política e popular que se constrói uma resistência mais sólida.
É fundamental engajar a sociedade na compreensão dos riscos não apenas do projeto de lei em si, mas de um modelo econômico mais amplo que está sendo imposto ao país, baseado em exploração intensiva e desmonte de direitos.
O papel da comunicação para dentro e fora do país
Jessica Siviero: A disputa não é fácil pois quem defende o meio ambiente e os povos do campo frequentemente é taxado de inimigo do progresso. Por isso, o trabalho de base, de conversa direta com as pessoas, produção de materiais formativos e difusão de informações é central.
Além da mobilização local, há também o caminho da incidência internacional. Denunciar o que está acontecendo no Brasil em fóruns e plataformas globais, como as conferências do clima, é uma estratégia importante.
O país tenta construir uma imagem de liderança climática, mas é preciso mostrar ao mundo que essa imagem não condiz com a realidade interna. Trazer essas contradições à tona e dar visibilidade ao que se passa nos territórios também ajuda a gerar pressão política e diplomática.
Por fim, fortalecer a justiça ambiental exige traduzir os termos técnicos, facilitar o entendimento das comunidades sobre seus direitos e articular ações em rede. É o que movimentos como a ASA já vêm fazendo: formar, mobilizar, denunciar e construir alternativas com os povos dos territórios.