Lívia Alcântara | Asacom
Rose: a caatingueira que conhece a solução para salvar a Caatinga e enfrentar as mudanças climáticas
“A gente precisa não só estar falando do problema, mas fazer com que o problema seja, pelo menos, minimizado”, defende Rosecleide Coelho.

SÉRIE – PESSOAS QUE CUIDAM
Rosecleide Ferreira Coelho (Rose) é uma mulher de 37 anos que viu sua comunidade se transformar e, junto com ela, sua vida ganhou outros sentidos. Caatinga de Porco é uma comunidade tradicional de Fundo e Fecho de Pasto, que fica no município de Jaguari, no norte da Bahia. Em 2020, as 20 famílias que vivem ali iniciaram um projeto de Recaatingamento, buscando restaurar o bioma degradado, mas também adaptar a comunidade ao clima do Semiárido e aos efeitos das mudanças climáticas.
“A gente sabe que a Caatinga vem sofrendo bastante com desmatamento, com as mudanças climáticas, nosso bioma está muito devastado, está pedindo socorro”, lamenta Rose ao descrever seu entorno.

na comunidade Caatinga de Porco – BA.
Segundo o Relatório Anual do Desmatamento no Brasil, publicado pelo Map Biomas, em 2024, a Caatinga foi o terceiro bioma mais desmatado no Brasil, com uma perda de 14% de área (174.511ha). E pela primeira vez, desde 2019, o maior evento de desmatamento (13.628 ha) registrado no Brasil está na Caatinga, nos municípios de Canto do Buriti e Pavussu, no Piauí.
A comunidade Caatinga de Porco, mesmo nome de uma planta nativa do bioma, também conhecida como caatingueira, faz parte deste triste panorama de degradação. Assim como outras comunidades de Fundo e Fecho de Pasto, seus moradores se sustentam a partir da criação de caprinos, que se não forem bem dimensionados e manejados, podem contribuir para redução da mata nativa e a geração de voçorocas (grandes buracos na terra). Além disso, as comunidades de Fundo e Fecho de Pasto possuem tradicionalmente áreas coletivas de terra para criação de animais, o que dificulta o controle da área necessária para cada animal. No caso da Caatinga de Porco, além dos animais criados ali, nos períodos de seca, parte do território é invadido por animais de outras áreas em busca de alimento.
Em 2020, Rose e sua comunidade entraram no Pró Semiárido, um projeto executado em parceria pelo Governo da Bahia, via a Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), e pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA). A iniciativa expandiu as ações de Recaatingamento para 20 comunidades e mais de 600 famílias. Durante este período, Rose se tornou Agente Comunitária Rural e iniciou um curso de Técnico em Meio Ambiente.
“Eu ainda não tinha me achado no mundo. E quando eu comecei a trabalhar com Recaatingamento, com aquele cuidado com a Caatinga, a ver que as áreas degradadas estão sendo recuperadas, eu fiquei buscando um curso voltado para o meio ambiente. Quando eu vi Técnica em Meio Ambiente, eu me identifiquei!”, conta animada.
Hoje Rose também faz uma graduação em Saneamento Ambiental no Centro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi) e quer continuar trabalhando com a recuperação da Caatinga.
O Recaatingamento
“O Recaatingamento veio para nos dar aquela luz no fim do túnel. De que a gente pode fazer alguma coisa para melhorar a nossa Caatinga, para cuidar e para conscientizar as pessoas da importância de ter a Caatinga em pé”, afirma Rose entusiasmada.
O Recaatingamento é uma metodologia de Convivência com o Semiárido difundida pelo IRPAA e que inclui três eixos: o social, que trata da dimensão da participação e da organização social local; o ambiental, que implica em discutir e planejar a gestão do território a partir da Convivência com o Semiárido e recuperar áreas degradadas de Caatinga; e o produtivo, que inclui a implementação de tecnologias sociais que permitem adaptações climáticas e a diversificação da produção e geração de renda de forma sustentável com a Caatinga.
Para que o Recaatingamento acontecesse, Rose tornou-se Agente Comunitária Rural e assumiu a função de facilitar a comunicação entre a equipe técnica do IRPAA e a comunidade, assim como articular reuniões, verificar a instalação das tecnologias sociais e acompanhar o desenvolvimento das demais atividades. Ela conta que o primeiro passo de Recaatingamento foi a construção de um Plano de Manejo Sustentável para a comunidade.
“Foi feito todo o processo de diagnóstico, de conversa com a comunidade, como seria o Plano de Manejo, a escolha da área [a ser recuperada], georreferenciamento”, relembra.
O Plano de Manejo Sustentável é uma etapa fundamental do Recaatingamento e busca “alinhar o uso sustentável da Caatinga às práticas tradicionais, principalmente à criação dos pequenos ruminantes”, explicam Luís Almeida Santos e Danilo Souza, em um artigo sobre os resultados do projeto. Para escrever o acordo coletivo, as comunidades realizam debates para discutir sobre a ideia da Caatinga em pé; sobre relações culturais, sociais e econômicas que permeiam o território e as ameaças à Caatinga.
Do mapeamento participativo à regeneração da Caatinga

Ainda durante este momento inicial de diagnóstico, a comunidade realiza o mapeamento participativo para reconhecer e avaliar de forma coletiva seus recursos e as ameaças ao território.
“A comunidade faz um desenho do território tradicional, onde estão as casas, onde estão as aguadas, recursos hídricos, onde está a Caatinga no território e nas unidades familiares e, nesse processo, a comunidade identifica qual a área mais degradada”, explica Vanderlei Leite da Silva, animador de campo da equipe do IRPAA e que acompanhou o processo de Recaatingamento na comunidade Caatinga de Porco, lado a lado com Rose.
Uma vez definida e acordada qual área será regenerada, a comunidade realiza mutirões para cercamento da mesma e inicia um processo de monitoramento. Uma área de 25 hectares (equivalente a 25 campos de futebol) da Caatinga de Porco foi fechada para recuperação em 2022 e, em breve, passará pela primeira avaliação. De dois em dois anos, Rose, juntamente à equipe do IRPAA, analisarão um pequeno pedaço desta área (10m2) para identificar o número e o tamanho de plantas e animais presentes ali.
Esses mutirões são centrais para o fortalecimento social da comunidade e das famílias no processo de Recaatingamento, pois incentivam as dinâmicas coletivas de cuidado com o território.
“Os mutirões foram uma parte que eu achei muito bacana, de resgatar um pouco essa cultura, de fazer as atividades no coletivo, da comunidade se juntar para fazer alguma coisa para benefício de todos”, conta Rose.

Ainda que a experiência da Caatinga de Porco esteja em um estado inicia, se comparada com outras comunidade que já possuem mais de 10 anos em Recaatingamento, já é possível ver transformações:
“É algo assim que a gente fica de encher os olhos de ver. Você olha para dentro da área e olha para fora da área e é notável a diferença, da quantidade de plantas que você vê que já nasceram ali dentro, das plantas que estavam ali pequenininhas e que hoje já estão grandes”, relata Rose ao comparar o antes e o depois.
Embora a regeneração de pequenas áreas sejam apenas uma parte do
Recaatingamento e cumpram um objetivo demonstrativo para as comunidades, os efeitos positivos podem ser muitos.
Em Sento Sé, na Bahia, a comunidade de Fartura começou a recuperar áreas em avançado estado de degradação em 2011. A experiência foi tão positiva que eles aumentaram a área e o tempo de preservação. A comunidade de Fartura decidiu manter a área cercada por tempo indeterminado. O que inicialmente seria uma experiência de 10 anos, tornou-se permanente. Atualmente, possuem uma área de 138 hectares isolada, onde prevalece a preservação da Caatinga e ali conseguem colher mel e extrair frutos e plantas.
Além das áreas em recuperação, as comunidades selecionam também áreas em bom estado que querem preservar. Mais de mil hectares estão em conservação na Caatinga de Porco.
SAF, abelhas e tecnologias sociais: a Convivência com o Semiárido e a diversificação da produção
Parte central do Recaatingamento é a diversificação das atividades produtivas para que as famílias não dependam apenas da criação de animais ruminantes e possam encontrar formas de geração de renda que estimulem a preservação da Caatinga em pé, como o agroextrativismo e a apicultura.
A comunidade Caatinga de Porco está experimentando um Sistema Agroflorestal (SAF) com plantas forrageiras, aquelas destinadas para alimentação animal, e frutíferas. “A gente pensa em, no futuro, ter uma mini-fábrica de doce ali ou de polpa para gerar renda para a comunidade”, planeja Rose.
No entanto, ainda enfrentam alguns desafios. Como não possuem um reservatório de água capaz de redistribuir a água captada pelas tecnologias hídricas, as frutíferas não nativas não conseguiram sobreviver.
Outro desejo da comunidade é trabalhar com as melíponas, abelhas nativas que produzem um mel que possui alto valor de mercado. Enquanto isso, algumas famílias têm feito experiências com as abelhas com ferrão.
“A ideia é resgatar essas abelhas nativas a partir do Recaatingamento, mas temos muita dificuldade, porque não existem mais abelhas nativas no território”, explica Vanderlei da Silva, animador de campo do IRPAA.
Para apoiar as atividades de geração de renda e avançar na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, foram instaladas na comunidade 86 cisternas que captam água da chuva para consumo humano, 48 cisternas e 25 barreiros trincheiras que armazenam água para a produção e para os animais. Além disso, foram construídas tecnologias de saneamento rural, sendo 38 reatores UASB (que na tradução o inglês significa reator anaeróbio de manta de lodo e fluxo ascendente) e 65 Bacias de evapotranspiração (conhecidas como BET ou Bioágua Familiar).


Recaatingamento: por uma política pública que salve a Caatinga
Rose não tem dúvida em afirmar que o Recaatingamento é uma solução palpável para reverter o quadro de degradação da Caatinga e uma forma potente de enfrentamento aos efeitos das mudanças climáticas.
“O Recaatingamento é um trabalho que a gente sabe que dá certo. Não é que ninguém está dizendo que dá certo, é comprovado que dá certo, que recupera a Caatinga, que fazer essa mitigação das mudanças climáticas melhora o clima, melhora o solo”, aponta Rose.
Ela se queixa de ouvir falar apenas sobre os problemas, sem que nunca se apresente solução. Para Rose, o Recaatingamento é um caminho de saída para a atual crise ambiental que vivemos e por isso deve ser tratado pelo Estado, deve se tornar uma política pública.
“A gente espera que esse programa vire uma política pública e que isso possa ser implementado não só em comunidades tradicionais, mas em todas as comunidades do nosso Semiárido. Porque a gente vê aí todo dia, toda hora falando das mudanças climáticas, do problema que é gerado, mas a gente não vê ações, soluções”, defende Rose.
O IRPAA, organização responsável por desenvolver a metodologia desde 2009, acumula muitos resultados positivos. A organização já assessorou mais de 900 famílias e 40 comunidades do Semiárido a realizar ações de Recaatingamento em seus territórios tradicionais. Nessas comunidades, hoje, são mais de 33 mil hectares em uso sustentável. Durante estes anos, aproximadamente 2 mil hectares foram isolados para a recuperação e ou regeneração.
Outros estados do Semiárido também já estão fazendo suas próprias experiências de Recaatingamento. Uma publicação do Ministério do Meio Ambiente de 2019 mapeou 10 experiências nos estados da de Pernambuco, Paraíba e Bahia.
A própria participação do governo do estado da Bahia no projeto Pró-Semiárido é um avanço importante para experimentações que podem balizar uma política pública. Em junho de 2024, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, esteve na Bahia para conhecer as experiências de Recaatingamento. Na ocasião, ela destacou a importância da perspectiva de Convivência com o Semiárido para uma vida digna.
Série: Pessoas que Cuidam
Esse perfil faz parte da série de matérias Pessoas que Cuidam, que será publicada em junho, no mês do Meio Ambiente buscando trazer reflexões sobre a preservação e a sociobiodiversidade do Semiárido brasileiro e do nosso planeta. A série “Pessoas que Cuidam” destaca ações de cuidado e proteção desenvolvidas por famílias agricultoras, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.