Lívia Alcântara
Programa Cisternas e Fomento Rural: a junção de duas políticas públicas que vêm fortalecendo a produção de alimentos no Semiárido
Mais de 7 mil famílias já receberam o Fomento Rural, um recurso que as permite alavancar a produção de alimentos saudáveis no Semiárido brasileiro.


Desde 2018, 7.178 famílias do Semiárido brasileiro, além de serem beneficiadas com tecnologias de armazenamento de água pelo Programa Cisternas do Governo Federal, receberam um investimento para estruturarem e ampliarem a produção de alimentos. O Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais (ou Programa Fomento Rural) é uma política pública criada pela Lei n° 12.512/2011 e regulamentada pelo Decreto n° 9.221/2017 e inclui, além da transferência financeira não reembolsável, o acompanhamento social e produtivo das famílias por organizações parceiras.
A junção dessas duas políticas públicas têm garantido a autonomia das famílias na construção dos seus projetos produtivos, além de fortalecer a soberania e segurança alimentar e a geração de renda. Para abordar esse panorama, damos início a série Água e fomento rural: caminhos de transformação no Semiárido, que mergulha nas histórias de famílias e grupos que, com o apoio de tecnologias como as cisternas e o fomento à produção de alimentos, estão rompendo o ciclo da pobreza e cultivando autonomia, renda e dignidade.
São ações desenvolvidas pelo Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), no âmbito do Programa Cisternas, com investimentos do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), da Fundação Banco do Brasil, e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Ampliação da produção de alimentos e combate à fome
Na zona rural do município de São Caetano, no Semiárido pernambucano, vive Maria Cristiane Bezerra. Contemplada com o recurso do fomento, a agricultora conta que estruturou sua criação de galinhas. Antes, as aves ficavam soltas, sem um galinheiro adequado para se protegerem e expostas ao tempo e a outros animais, como raposas. “Eu fui beneficiada com uma cisterna enxurrada e veio também o fomento, que foi uma ajuda muito grande. Através desse dinheiro, eu consegui fazer meu galinheiro. Hoje em dia, graças a Deus, eu já tenho bastante galinha, já dá para o meu consumo e, às vezes, eu até vendo os ovinhos”, conta orgulhosa.

O Fomento Rural é destinado a famílias inscritas no Cadastro Único e com renda mensal per capita de até meio salário mínimo, com prioridade para aquelas que se encontram em situação de pobreza e extrema pobreza e de mulheres chefes de família. Com o recurso, espera-se que as famílias possam estruturar e ampliar a produção de alimentos e as atividades de geração de renda.
“Do ponto de vista da segurança alimentar e nutricional essa é uma política estruturante. Você poderia chegar e dar o alimento. Isso é fundamental para quem está com fome e a gente está trabalhando com pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. Mas essa política é para ensinar a pescar”, explica Madalena Medeiros, integrante do Centrac, organização que já assessorou 126 famílias paraibanas a acessarem o Fomento Rural e atualmente acompanha outras 60.
O desafio da articulação das políticas públicas no Semiárido
A junção do Programa Fomento ao Programa Cisternas é uma experiência emblemática de articulação de políticas públicas para o enfrentamento da pobreza e promoção da segurança alimentar e nutricional. É o que defende Camile Sahb, diretora do Departamento de Promoção da Inclusão Produtiva Rural e Acesso à Água do MDS.
“Para a gente realmente ter efetividade, temos que chegar com muitas políticas juntas ao mesmo tempo. A gente tem que chegar com Bolsa Família, com a cisternas, o Fomento, o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] e a gente tem que ter capacidade de todas essas pessoas receberem isso junto, tudo ao mesmo tempo e agora”, aponta Camile Sahb.
A chegada do Fomento Rural, por exemplo, tem aberto novos horizontes para a comercialização e demandado políticas públicas que as apoiem neste sentido. É o que aponta Jandira Lopes, da Associação Comunitária da Escola Família Agrícola de Correntina e Arredores (ACEFARCA), que já assessorou 141 famílias na Bahia a estruturarem a produção de alimentos.
“Muitas famílias não estão organizadas a ponto delas venderem o excedente. Elas podem até vender ali, mas não estão organizadas para uma comercialização maior. Eu acho que é um grande desafio do Fomento em si”, avalia Jandira Lopes.
Mais autonomia produtiva para as famílias
De 2018 a 2019, a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) incluiu dentro da execução de seu Programa Uma Água e Duas Terras (P1+2) o Fomento Rural. Naquele momento, 30% das famílias (2.361) receberam tecnologias de estocagem de água para produção e o investimento de R$ 3 mil para estruturarem suas atividades produtivas.
A partir de 2023, todas as famílias que recebem a tecnologia de segunda água são contempladas com o fomento, que agora tem o valor de R$ 4,6 mil. Até o momento, 4.197 famílias já acessaram o recurso, e até 2026 outras ainda serão contempladas.
O investimento recebido pelas agricultoras e agricultores deve ser utilizado em atividades com a finalidade de gerar renda. O projeto produtivo, como é chamado o planejamento destas ações, pode ter caráter agrícola (criação de pequenos animais, horta) ou não agrícolas (artesanato, pesca), e pode ser individual ou coletivo. Duas das principais atividades estruturadas pelas famílias beneficiadas foram a criação de aves e as hortas em seus quintais.
Até a chegada do Programa Fomento, as famílias atendidas pela ASA recebiam a tecnologia de estocagem de água para produção, sonhavam e planejavam o que e como produzir, mas o recurso para realizar este sonho era pequeno e ficava sob gerência das organizações que as assessoravam. Muitas vezes, a solução para viabilizar a produção de alimentos saudáveis era ofertar às famílias alguns modelos de projetos produtivos pré-definidos.
“A gente sempre dizia: produção de alimento tem que ser a la carte, ou seja, para cada família uma solução. E a gente chegou numa solução que era fazer um projeto comum porque a gente tinha que comprar, tinha que cotar, tinha que entregar, pegar recibos e era difícil”, lembra Antônio Barbosa, coordenador do P1+2, ao comparar o que era possível no passado, com o atual formato, onde as famílias têm mais autonomia.
Com o Fomento Rural, mediante a elaboração do projeto produtivo, o recurso é transferido diretamente para a conta da pessoa beneficiada em duas parcelas, e ela pode realizar diretamente as compras e as contratações de serviços para sua execução. Além disso, as famílias podem fazer compras de muda, esterco e outros itens dentro da própria comunidade, incrementando a economia local.



Esse é o caso de Dona Maria Nilda Silva, da comunidade Curvina, no município Brejolândia, na Bahia. Após ser contemplada com uma cisterna-calçadão, ela recebeu o fomento, fez as compras e começou a estruturar sua horta. “Logo saiu a cisterna, eu já comecei a construir. A gente comprou as telas e cercou o quintal todo, agora eu estou fazendo os canteiros. Comprei os materiais que eu queria, foi um carrinho de mão, pá, kit de canteiro, essas coisas que a gente precisa”, conta orgulhosa.
Em um vídeo que fez de seu quintal para compartilhar com outros agricultores e agricultoras, é possível ver alguns plantios já avançados, mas seus planos são maiores.
“Tem bastante coisinha já plantada, mas eu ainda quero fazer um lugarzinho para plantar batata doce, quero plantar banana. Assim, tudo coisa de servir para a família, para não precisar comprar. E se sobrar, até vender, para comprar outras coisas que a gente precisa. Graças a Deus, o meu dinheiro aqui foi bem aplicado”, conta Maria Nilda.
Método educativo e transformador
Para José Rego Neto do Centro de Educação Popular e Formação Social (CEPFS), organização que já assessorou 131 famílias a receberem o fomento e atualmente acompanham outras 55 na Paraíba, o sucesso do P1+2 está também no processo de formação e preparação das famílias:
“Não só a aplicação do recurso em si, dos R$ 4.600, mas todo o processo que o P1+2 trabalha, desde os processos de seleção e cadastramento [das famílias], das atividades educativas até as visitas de intercâmbio, são instrumentos que fazem com que as famílias se condicionem, para quando for a hora da elaboração do projeto produtivo, elas possam ter a certeza no que vão investir”, explica.
Para Antônio Barbosa, a ASA deu um salto na promoção da produção de alimentos saudáveis com a chegada do Fomento Rural: “a gente saiu da perspectiva do caráter produtivo e construímos o componente de produção agroecológica. Então nesse componente trabalhamos o diagnóstico do agroecossistema, a construção do projeto produtivo, o assessoramento a família na implantação da primeira parcela e da segunda parcela, a atualização do próprio diagnóstico para verificar como é que a família estava e como é que ela está agora, inclusive avaliando questões específicas como segurança alimentar”.