Relatos da Fome
09.08.2018
“Antes, não existia política para pobre!”

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Por Elka Macedo - ASACom

Evanuzia participou da Caravana Semiárido contra a Fome | Foto: Arquivo Pessoal

No Semiárido, quando o assunto é fome, é corriqueiro se ouvir falar das mortes dos “anjinhos”, crianças recém-nascidas que morriam por conta da desnutrição, afinal do peito das mães subnutridas não se produzia o leite forte para alimentar os/as pequenos/as. As que conseguiam aprender a andar, posteriormente eram vítimas da cólera e de outras doenças causadas pela má qualidade da água consumida e pela desnutrição.  Para Evanuzia Araújo, filha de pai, vaqueiro e agricultor, e de mãe, dona de casa e agricultora como ela frisa, nas décadas de 70 e 80 e inicio dos anos 90, a morte de crianças era tão comum quanto o retrato da fome esculpido nos corpos magros e rostos sofridos das muitas pessoas que sem esperança, esvaziavam os sonhos assim como seus organismos esvaziavam-se de nutrientes essenciais à vida.

“Uma das imagens que me vêm na memória é de caixão. Morria muita criança! Às vezes elas nem nasciam, porque morriam ainda na barriga da mãe por causa da fome ou da desnutrição. Então, eu me lembro bem de famílias, parentes meus, inclusive, que morriam ainda criança. Era muito grande a mortalidade infantil e também a morte de mulheres de parto, porque elas fracas e desnutridas era difícil a gestação, por que não tinham os cuidados necessários e um dos principais fatores era a fome mesmo”, conta emocionada, Evanuzia.

Na pequena Macajuba, cidade baiana com cerca de onze mil habitantes, a agente comunitária viu a realidade mudar devagarinho, década após década.   “Não existia política para pobre! As pessoas ou comiam aquilo que produziam na roça ou não comiam porque não tinha cisternas, não tinham políticas; não havia a dignidade conquistada nos últimos governos de Lula e Dilma. As pessoas hoje moram e vivem bem na zona rural”.

Dentre as ações, programas e políticas que contribuíram para que milhares de brasileiros saíssem da situação de extrema pobreza, Evanuzia destaca o bolsa-família. “O bolsa-família veio para fazer uma transformação social. E eu falo com propriedade porque trabalhei quatro anos como secretária de assistência social, e as famílias por mais pobres, por mais humilde que fossem passaram a ter o mínimo de dignidade. Na época, antes do bolsa-família, lembro que eram as filas para pegar as cestas básicas. O que vinha nestas cestas? Era o feijão preto, velho, cheio de gorgulho; o fubá que ninguém conseguia comer porque era muito ruim e um arroz com casaca e as pessoas tinham que pilar pra comer”.   

Ela acrescenta: “Depois veio o bolsa-família e a mãe pôde ter o cartão e receber o seu dinheiro com dignidade. Porque naquela época pobre na frente de banco já era suspeito, principalmente se fosse pobre e negro, já era visto como ladrão. Hoje, o mesmo alimento que as pessoas de classe média têm acesso, os humildes, pobres e empregados deles também têm. É uma mudança radical!”. Evanuzia é uma das cerca de 100 pessoas que percorreram 06 estados brasileiros denunciando a volta da fome, na Caravana Semiárido contra a Fome. Ela atribui a situação de miséria aos retrocessos nas políticas públicas sociais para as pessoas carentes.

“A fome não é mais de alimento, é de política de transformação porque a gente está vivendo um momento de retrocesso. E a gente está aqui denunciando a fome, nesta caravana, porque a gente já percebe que a fome está voltando. A gente já vê lá no meu município, gente de porta em porta pedindo. Nós estamos aqui pra dizer que não queremos mais isso, não queremos mais voltar à situação do nosso passado. A gente quer politica de transformação social e estamos perdendo tudo que conquistamos a duras penas. Quem é jovem e adolescente nunca viu essa realidade. A fome está voltando e as pessoas estão perdendo sua dignidade. É muito forte a gente perceber essa realidade, na nossa comunidade na nossa rua, às vezes na nossa porta”.

Se um dia, os povos do Semiárido baixaram a cabeça, hoje empoderados sobre o seu valor e de queixo erguido, eles e elas sabem que a luta é perene e que é preciso se fortalecer para garantir que os direitos conquistados não sejam destruídos. Evanuzia sabe que tem que persistir e ela sabe porquê luta. “O que me motiva a lutar é exatamente olhar para o meu neto de dois anos. Ele é uma das razões, porque eu não quero que meu neto presencie o que eu vi no passado. Além disso, sou humana, e independente de classe, cor ou religião sei que nós somos todos irmãos. Não dá pra ver alguém passando necessidade e ficar na minha zona de conforto!”, afirma.