Sobre a vida no Semiárido
08.08.2018 BA
“Hoje a gente celebra, a Reforma Agrária mudou a minha vida”
Com uma infância vivida em função do alimento, Marenise de Jesus Oliveira, 42 anos, conta da superação da fome pela família a partir do acesso a direitos básicos

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Por Camila Oliveira - comunicadora da Fatres/ASA-BA

Marenise de Jesus Oliveira nasceu em uma fazenda chamada Marruás, no município de Santaluz, região semiárida da Bahia. Filha de família camponesa farta em filhos, 19 contando com ela, Marenise viveu bem de perto a dura realidade de uma infância dedicada ao trabalho e, quase sempre, sem ter o que comer. Sua irmã mais velha foi mais uma que entrou para a taxa da mortalidade infantil da década de 50 – 60, vítima da desnutrição.

“Segundo minha mãe foi por diarreia, minha mãe par nenhum dos 18 filhos conseguiu amamentar, então hoje a gente analisando e entendendo a situação, a gente sabe que é fruto de uma má alimentação que as mulheres camponesas tinham, pariam muito e não tinham condição de se alimentar. A gente sabe que toda mulher é capaz de dar leite para os filhos, mas nós fomos criados com muitas dificuldades e como consequência, teve essa fatalidade para a gente”, relata Marenise.

Seu Pai, seu Djalma, tinha pouca terra. Desde a infância, ela e os irmãos trabalhavam nas lavouras de Sisal e nos serviços oferecidos pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) nas limpezas de aguadas. “Não recordo bem o ano, eu deveria ter uns 12 anos e era o governo de Valdir Pires e a gente recebia as cestas de arroz para pisar e descascar. Foi uma infância muito difícil, vivíamos também da colheita do licuri e maracujá.”

Da infância até a juventude, outro cenário que Marenise recorda é de gente caminhando com latas d’água na cabeça. O único açude estava a 12 km da comunidade. Nessa distância, a saída era utilizar o jegue com carotes. “O jegue era tanto para ir buscar água, como servia de meio de transporte para a gente ir lavar roupa e buscar lenha”, recorda ela.

Nos períodos de chuva, os pais de Marenise, seu Djalma e dona Almerinda, plantavam junto aos filhos e estocavam o pouco que conseguiam colher do feijão, da mandioca que virava farinha e do milho que eles pisavam para fazer o cuscuz. Difícil mesmo, era quando o alimento acabava e a chuva não vinha.

“A gente chegou a passar fome, chegava dias de não ter o café para tomar, eu e minha família conhecemos o que é não ter três refeições ao dia. Tomávamos café preto com farinha, quando tinha. Quando chovia e a vaquinha não morria com a seca, tínhamos café com leite”.

Apesar das dificuldades, os pais de Marenize sabiam que a educação dos filhos era a única herança que poderiam oferecer. Sem escola próxima, a solução era o ensino informal, seu Djalma ia buscar a professora no lombo de jumento todos os dias de manhã e levava à tarde. A professora Iolanda ensinou Marinise e aos irmãos/ãs mais velhos/as a escrever o nome.

“Os que vieram depois já foram aprendendo com a minha irmã mais velha”. Só depois de um tempo é que passaram a ter transporte para ir estudar na comunidade do Pereira, distante 12 km de casa, onde tinha escola regular e onde Marenise passou a estudar regularmente aos 16 anos de idade. Depois que Marenise deu sequência aos estudos começou um outro tempo. Ela terminou o ensino médio em 2001.

"Não posso aceitar que a fome volte a afetar as famílias do Brasil, que a gente perca outras crianças."

Marenise sempre seguiu os passos do pai vendo sua militância nas causas sociais, sobretudo da classe trabalhadora, dentro do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santaluz. Foi catequista, militante de grupos de jovens, sindicalista. “Na minha juventude fui muito envolvida na igreja católica, criamos a pastoral da juventude. Depois me tornei catequista, militante do sindicato de Santaluz. Meu pai nos ensinou que tudo que a gente teria direito na vida teria de ser conquistado com muita luta. As Irmãs Ancilas do Menino Jesus que também acompanhava a nossa comunidade ajudou muito a gente nessa formação. Passei ainda sete anos estudando achando que eu ficaria da congregação. Mas foi um período de formação intensa e eu preferi dar continuidade na comunidade e contribuir com a formação de outros jovens”.

Foi nesse período que os irmãos de Marenise já crescidos/as, sem ter terra para trabalhar e sobreviver, fizeram junto a ela a opção de ocupar uma área sem uso. Dos 18 irmãos, 13 são assentados (as) da Reforma Agrária pelo Movimento dos Trabalhadores Acampados, Assentados e Quilombolas da Bahia (SETA) e estão espalhados na região em assentamentos nos municípios de Cansanção, Itiúba, Senhor do Bonfim, Pindobaçu e Santaluz.

“A dor é cheia de Gratidão”, diz Marenise quanto termina de recordar os desafios que viveu com a família. Dos 18 irmãos, quatro concluíram o ensino superior pelo Programa Nacional e Educação na Reforma Agrária (Pronera). Marenise é licenciada em Educação do Campo com Habilitação em Linguagens e Códigos. Suas irmãs são professoras e um de seus sobrinhos acabou de passar na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “Graças à Reforma Agrária”, comemora.

“Hoje a gente celebra. Digo para os meus 58 sobrinhos que a luta não pode parar, que eles (as) precisam honrar. Meu pai, com 83 anos, minha mãe, com 74, dizem que a gente está no caminho certo. Sofreram quando todos se espalharam de casa. Tinham medo, mas sempre deram forças para os filhos encararem a luta. Hoje temos acesso a outras políticas que mudaram a nossa vida, mesmo numa região seca, a gente tem essa vida em plenitude com o acesso a água através das cisternas”.

E foi a gratidão que a motivou a participar da Caravana Semiárido Contra a Fome. “Eu vim e vim carregada de muita gratidão, na certeza de que eu não posso aceitar que a fome volte a afetar as famílias do Brasil, que a gente perca outras crianças, que a gente deixe de ter acesso a educação que é o que dá também a dignidade e que a gente volte a ver pessoas no Semiárido sem direito a ter o prato de comida, não só a comida, o alimento de verdade, a soberania alimentar.”

Estar na caravana pra mim é esse sentimento de gratidão, de luta e a convicção de que o governo Lula, filho do semiárido que deu pra a gente essa dignidade, acho que nenhum outro entenderia e faria o que ele fez porque ele viveu o que eu vivi e a gente compartilha dessa realidade.

“Depois de entender a luta pela sobrevivência que a gente viveu, eu entendi que eu não queria que outas pessoas, crianças, adolescentes e jovens, vivessem o que eu vivi e eu acredito nessa possibilidade”.