06.08.2018
Por Elka Macedo - Asacom

Por muitos anos, na região Semiárida brasileira, a fome era tão naturalizada que chegava a ser passada como herança de pais para filhos. De norte a sul se ouvem histórias de pessoas que precisaram enfrentar os dias e noites sem ter se quer farinha pra por no “bucho”. “Fome, graças a Deus, eu não passei, mas minha avó teve e minha mãe e meu pai também teve. Na década de 30, na guerra da revolta, em Princesa Isabel, minha vó saiu com uma panela de barro na cabeça, com pirão de mucunã, não era de milho não! Quem morar no Semiárido e disser que ninguém da família passou por situação de fome eu digo que ele não conhece o Semiárido”, lembra com tristeza, o agricultor Audeci Nunes da Silva, que mora na comunidade Lagoa de São João, na cidade de Princesa Isabel, na Paraíba.
Há 16 anos, ele trabalha de forma voluntária na associação da comunidade e conta que, mesmo não tendo passado fome, sentiu na pele as dificuldades das décadas em que só existem as ações de combate à seca. “Frente de emergência era coisa pra louco. Todo mundo humilhado! Arroz naquele tempo era difícil. A gente ajudava os caminhões da Conab e ganhava um arrozinho 30% melhor porque quando eles colocavam o arroz no caminhão sabiam qual era melhor. Três vezes que eu fui trabalhar voluntário, quem tava transportando a carga dizia pra gente: lá na frente tem um arroz 15% melhor que este! Então nós pegava um arroz melhor um pouquinho que os outros mas, se você colocar na mesa de qualquer um hoje, ninguém come”, salienta Audeci.
Ele continua: “Na região da gente, graças a Deus, a gente tinha mandioca, e já criava pequenos animais como a galinha e tinha o ovo. A gente dava graças a Deus quando era convidado pra uma festa de casamento porque a gente sabia que ia comer arroz. E arroz na nossa casa só em semana santa, de ano em ano”. A vida não era fácil, mas o agricultor vai rememorando, como num filme, as mudanças que foram acontecendo década após década no Semiárido.
“Eu trabalhei, em 83, em frente de emergência. A dificuldade era em toda a família. Era um momento que quando chegou de 80 a 90 a gente tinha muitos saques nas feiras livres, de 90 para 2000 ainda teve. A gente vivia disputando água de cacimba com animais, com guará, com [sapo] cururu. Eram pequenas cacimbas e a gente saía às 3h da manhã de casa pra pegar um balde de água pra sobreviver, pra beber e cozinhar, porque a água que tínhamos na comunidade não era suficiente. Até os anos 2000 a gente sofreu e de 2000 em diante foi melhorando nas comunidades das zonas rurais. Mas pelo que a gente tá vendo tudo pode voltar.”
Seu Audeci é uma das pessoas que compõe a delegação de 102 representantes dos movimentos sociais e populares que estão percorrendo mais de quatro mil quilômetros para denunciar a volta da fome, na Caravana Semiárido Contra a Fome. A jornada teve inicio o dia 27 de julho na cidade pernambucana de Caetés e já passou por cidades nos estados da Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Paraná.
Quando o assunto é a conquista de políticas públicas, ele é taxativo: “O que marca pro povo do Semiárido de 2002 pra cá é o acesso à água. De 2012 até 2017, nós passamos por uma seca e, graças a Deus, ninguém viu fome nem sede por conta das políticas públicas que foram acessadas, principalmente a água. O maior recurso que foi descoberto via ASA e Governo foram as políticas públicas que chegaram, principalmente, para as pessoas do campo. Hoje toda casinha tem uma cisterna ao lado”.
Ao falar da situação atual do país, Audeci denuncia os cortes nos recursos para a agricultura familiar e os impactos que isso acarretará para as populações camponesas. “Nós da agricultura familiar tínhamos um recurso de 20 milhões [de reais], mas para este ano, foram cortados 18 milhões. Só temos 2 milhões neste ano e, para o ano que vem não tem nada garantido pra nós que estamos no campo. E isso é uma coisa bem preocupante pra gente. 2019 não tem um centavo garantido. E a gente tem que trabalhar com bastante cuidado. Como denuncia a Caravana, em 2015 nós tínhamos 4 milhões de pessoas passando necessidade e agora estamos com mais de 12 milhões. É um numero muito alarmante porque ninguém nunca viu ser tão rápido desse jeito”.
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