Lívia Alcântara | Asacom
A Convivência com o Semiárido foi fundamental para sairmos do Mapa da Fome, defendem integrantes da ASA
Relatório, publicado durante a 2ª Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, aponta que o Brasil reduziu a quantidade de pessoas em situação de insegurança alimentar severa para menos de 2,5% da população.


“Com a chegada da cisterna está muito melhor porque agora tem água. Eu consigo plantar as coisas, consigo me alimentar. Eu planto verduras, pimentão, quiabo, macaxeira, porque agora eu tenho água para poder regar”, comemora Karoline do Nascimento, agricultora que vive com seu marido em um quartinho, no terreno de sua mãe, no assentamento Marcoalhado II, município de Ielmo Marinho (RN).
Quem escuta Karoline descrever com entusiasmo e otimismo a sua rotina de cuidado com a plantação e com os animais, não imagina as dificuldades enfrentadas pela família. Antes de receber a cisterna-calçadão, reservatório que armazena 52 mil litros de água da chuva para a plantação e dessedentação animal, a situação da família era outra. A alimentação acontecia com o recurso do Bolsa Família, alguns bicos feitos pelo marido e a venda de uma galinha ou outra. Karoline não conseguia plantar, porque não tinha como aguar o cultivo.
Hoje, aos 25 anos, ela acaba de ser beneficiada com uma cisterna-calçadão, Além de receber a tecnologia , Karoline teve acesso ao recurso do Programa Fomento Rural no valor de R$ 4,6 mil reais. Com esse valor, estruturou seu galinheiro e colocou telas no canteiro de verduras e frutas. O Fomento Rural é uma política que busca incentivar a geração de renda, mas no caso da família de Karoline, permitiu o acesso a alimentos.

“Hoje não estou comprando ovos porque já tenho minha minha produçãozinha aqui, não é grande, mas dá para me alimentar, tem galinha também quando precisa para comer”, comemora.
Karolina não é a única. No Semiárido brasileiro são 117.799 mil tecnologias de produção construídas pela ASA, incluindo diferentes tipos de sistemas de captação e armazenamento de água, além de casas de sementes e quintais produtivos.
E é por meio de políticas públicas como o Programa Cisternas, o Fomento Rural e outras ações de incentivo à agricultura familiar e geração de renda, que o Brasil saiu do Mapa da Fome, pela segunda vez. Isso significa que milhões de brasileiros passaram a ter comida no prato três vezes ao dia.
Segundo o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2025, lançado durante a 2ª Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, em Adis Abeba, na Etiópia, o Brasil reduziu a quantidade de pessoas em situação de insegurança alimentar severa, ou seja, aquelas que não têm acesso a alimentação suficiente. Em 2022, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontaram que 15,5% da população estava com fome, hoje menos de 2,5% está nesta situação.
O que explica esta vitória em apenas dois anos, período menor do que o previsto pelo governo Lula é a reativação de diferentes políticas públicas comprometidas em reduzir a pobreza e a fome no Brasil.
“Esse resultado vem da recomposição de um conjunto de políticas e programas voltados para a agricultura familiar e para os mais pobres que tinham sido jogadas no lixo”, aponta Naidison Quintella, coordenador executivo da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) pelo estado da Bahia.
O Brasil havia saído do Mapa da Fome pela primeira vez em 2014, após 11 anos de políticas sociais contra a fome e miséria. Porém, voltou para esse patamar em 2018 com o desmonte das políticas públicas, que foi agravado pela pandemia da Covid-19.
A Convivência com o Semiárido no combate à fome
As cisternas, mas também outras tecnologias e estratégias de adaptação climática estão no centro do que a ASA chama de “Convivência com o Semiárido”. Essa proposta está ancorada na cultura sertaneja, que tem como princípio a estocagem de água, sementes e alimentação para os animais e tem permitido a milhares de famílias saírem da extrema pobreza e da insegurança alimentar nas últimas duas décadas.
“A Convivência com o Semiárido foi fundamental para termos saído do Mapa da Fome”, defende Naidison Quintella.
“Eu não tenho dúvidas que a ação da ASA no Semiárido brasileiro tem contribuído para a redução da fome no país. Nós fazemos parte desse processo, com essa articulação entre governo e sociedade civil”, afirma Roselita Victor, representante da ASA no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
No CONSEA, instância participativa que tem papel relevante na proposição de políticas de combate à fome, a ASA tem participação ativa, justamente levando essa perspectiva.
“Entendemos que políticas de soberania e segurança alimentar e nutricional devem ser integradas. Essa é uma estratégia importante do Conselho, que é levar ao governo brasileiro políticas que nascem, muitas vezes, nos territórios, e precisam ser articuladas para ter resultados na ponta, nos territórios, nas cidades onde estão as pessoas”, comenta Roselita Victor.
Sair do mapa da fome é só o começo
No mundo, 673 milhões de pessoas ainda estão em insegurança alimentar, o que representa 8,2% da população. Embora tenhamos que comemorar que este percentual seja melhor que o de 2022, quando 8,7% da população não tinha o que comer, a situação ainda é muito ruim. Ainda temos 35 milhões de brasileiros sem comida no prato.
Para Naidison Quintella, embora o momento seja de comemoração, ainda há muito trabalho pela frente: “Nossa celebração deve ser o compromisso da gente continuar no caminho, continuar na luta, continuar na briga, buscando políticas que tragam para essas populações mais marginalizadas o respeito aos seus direitos”, defende.
Foi a partir deste compromisso que, em 2024, a ASA passou a integrar a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, que tem o objetivo de levar políticas públicas já testadas no Brasil, como o Programa Cisternas, para outros países. Desde o início da sua trajetória, a ASA aposta em ações de cooperação Sul-Sul para fortalecer a segurança alimentar junto a outras regiões áridas e semiáridas do mundo,
“A ASA tem assumindo a Campanha Global Contra a Fome e a Pobreza, porque entendemos que a alimentação é um direito humano de todas as pessoas. Nós temos levado a experiência de Convivência com o Semiárido, a estocagem de água a partir da chuva para outras outras regiões”, conta Roselita Victor.

Para além de zerar o número de pessoas em situação de fome, outra questão apontada por especialistas é que o Mapa da Fome analisa apenas a ingestão de calorias mínimas necessárias, mas não leva em consideração a qualidade dos alimentos. É preciso garantir alimentos saudáveis para todas as pessoas.