“A capacidade do sertanejo, sertaneja, da pessoa do Agreste, dos mais de mil ecossistemas brasileiros que estão no Semiárido, foi construída ao longo da história e que, de alguma maneira permitiu que nós todos aqui estivéssemos. É uma construção, ela [a capacidade de criar] não é de alguém que tem o dom da sabedoria, mas é [resultado] de um acúmulo e de um processo que foi construído e diria assim que, de certa forma, está no DNA de todo mundo. A questão é despertar isso. É fazer isso aparecer, você lembrar de fazer as práticas, é ser provocado”.
Assim Vilmar Lermen, agricultor agroflorestal da Serra dos Paus-Dóias, situada no lado pernambucano da Chapada do Araripe, se refere a uma característica intrínseca, natural, que está gravada no código genético dos povos do Semiárido: a grande capacidade inventiva para criar soluções que respondam aos constantes desafios trazidos na relação com a natureza.
Como Vilmar, vários agricultores e agricultoras familiares já têm bem despertada essa capacidade, que vai sendo aguçada em outras pessoas através de inúmeros momentos de trocas. Grande agricultor experimentador, Vilmar vai participar do V Encontro Nacional de Agricultoras e Agricultores Experimentadores (V ENAE), em Juazeiro do Norte, no Cariri cearense, de 12 a 15 de fevereiro. O evento é realizado pela ASA com o apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES).
Vilmar estará com cerca de 250 pessoas, na sua maioria agricultores e agricultoras experimentadores/as dos 10 estados do Semiárido brasileiro (de Minas Gerais ao Maranhão), e também representantes de instituições de pesquisa e de organizações de fortalecimento da agricultura familiar e parceiros.
“A ASA [Articulação Semiárido] diz que a convivência com o Semiárido se constrói e se inicia a partir da vida dos agricultores e agricultoras. Sendo assim, são as famílias agricultoras que precisam estar no centro das trocas de conhecimento, nas oficinas, nos intercâmbios. Esse é o espírito dos encontros nacionais de agricultores/as experimentadores/as”, assegura Marcos Jacinto, membro da coordenação executiva da ASA pelo estado anfitrião do encontro.
A agricultora Damiana Vicente da Silva, 43, é uma das participantes do Encontro. Moradora da comunidade Lírio, no município de Santana do Cariri (CE), a família dela vai ser uma das visitadas pelos participantes do encontro (conheça aqui a história da família). “A minha expectativa pra esse evento é a melhor possível. Esse tipo de encontro é importante porque a gente tem a oportunidade de apresentar nossas experiências e ver experiências de outros agricultores também. Aprendemos mais sobre as práticas e convivência com o Semiárido. Hoje somos reconhecidos como agricultores e agricultoras. Também estamos conquistando o nosso espaço no mercado com os nossos produtos. Esse é o resultado dos trabalhos realizados e das políticas públicas voltadas para o trabalhador do campo. A ASA tem um grande significado em nossas vidas”, comenta.
Com o tema “Diálogo entre a sabedoria popular e a ciência para a construção dos conhecimentos para a convivência com o Semiárido”, o encontro vai ser mais um momento para reforçar entre os campesinos e campesinas o quão valioso e fundamental são os saberes deles para a agricultura familiar agroecológica e a convivência com a região.
“Esta grande região [o Semiárido] tem mais de 1 milhão de km2 e cerca de 25 milhões de pessoas que aqui moram, trabalham e, de uma forma ou outra, aqui convivem, seja pela sua experiência, pela sua capacidade, seja por alguma política pública, algum tipo de intervenção, mas fundamentalmente pelo acúmulo de técnicas, tecnologias, conhecimentos, ciência, saberes, da soma com a pesquisa. Tudo isto é fundamental”, acrescenta Vilmar.
A soma com a pesquisa que Vilmar se refere é também outro objetivo do encontro. A partir desta aproximação, a ciência valida o saber popular. E os campesinos/as - considerados/as atrasados e incapazes de produzir alimentos para responder à necessidade da crescente população mundial - têm seu saber reconhecido e valorizado.
Um exemplo desta aproximação são as pesquisas que comparam as variedades crioulas, melhoradas há séculos pelas mãos e saberes dos/as campesinos, com as variedades convencionais, melhoradas por instituições de pesquisas.
Estes estudos, realizados na Paraíba, em Sergipe e no Ceará, pela Embrapa em parceria com organizações que fazem parte da ASA, com variedades crioulas de milho e de feijão, têm confirmado o que os agricultores e agricultoras sabem desde sempre: que as sementes crioulas são adaptadas às características ecológicas do Semiárido e respondem a contento a todas as necessidades de quem as planta.
Esse reconhecimento produz argumentos que dão força aos questionamentos feitos aos programas públicos inadequados, como o de distribuição de sementes que doam exemplares não adaptadas à região.
A partir de fevereiro, a ASA em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) inicia um projeto para ampliação das pesquisas sobre as sementes crioulas no Semiárido que são realizadas envolvendo os saberes dos/as agricultores/as. Através desta iniciativa, em sete territórios da região, em quatro estados – Bahia, Pernambuco, Paraíba e Piauí – haverá estudos para averiguar as qualidades de germinação, produção e outras das variedades genéticas de domínio das famílias agricultoras.
Programação do V ENAE – Nos três dias e meio do encontro no Cariri cearense, serão constantes os momentos de trocas entre os participantes, seja de conhecimento, seja de insumos naturais como as sementes crioulas. Haverá plenárias, oficinas, visitas de campo, feiras e exposições (clique aqui para a programação). Na feira de Saberes e Sabores, por exemplo, haverá espaços reservados tanto para as sementes crioulas, quanto para a apresentação das inovações geradas com a experimentação de agricultoras e agricultores.
Na tarde da quinta-feira (14), também está previsto um ato público na colina do Horto de Padre Cícero para celebrar a capacidade e o potencial da agricultura familiar de produzir alimentos sem agrotóxicos e de forma harmônica com a natureza. Haverá um banquete com alimentos agroecológicos trazidos de todos os estados do Semiárido para degustação dos presentes. O cultivo destes alimentos é um ato de resistência ao aumento no uso de agrotóxicos pelo agronegócio no Brasil.
Agrotóxicos – Desde 2008, o país é líder mundial no uso de pesticidas e tem uma legislação permissiva para a aplicação de substâncias altamente tóxicas - como o glifosato, utilizado em quantidade cinco mil vezes maior do que o permitido na União Europeia. Portanto, a produção agroecológica de alimentos é um ato de extrema resistência a favor da saúde pública e a favor da preservação ambiental, que precisa de todo apoio da sociedade para ser, cada vez mais, ampliada.
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