Por Por Verônica Pragana - ASACom

Com esta afirmação de Maria do Céu Silva, pautamos o 8 de março, que, antes de tudo, é dia de luta! Céu é agricultora, sindicalista, uma das coordenadoras do Polo da Borborema.
O Semiárido como um todo é área de expansão desenfreada das indústrias de energia renovável. Propagada como energia verde, mas que, na realidade, de verde não tem nada pelo impacto das usinas e parques eólicos na Caatinga e pela violação dos direitos da população do campo.
E quem está na linha de frente para resistir e denunciar o rastro de dor, injustiça social e impactos ambientais são as mulheres. “Nós somos ousadas mesmo e vamos buscar o que queremos”, afirma Céu, que é uma das lideranças da Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia.
Este ano, a Marcha pauta a defesa dos territórios contra as indústrias de energia renovável pela quarta vez. Na entrevista concedida a Verônica Pragana, da Asacom, Céu fala sobre os vários desafios de quem é mulher e mora no campo. E também conta como a Marcha consegue mobilizar tantas agricultoras num contexto em que o machismo e o patriarcado ainda impedem que as mulheres saiam de casa.
Em 14 anos (em 2021, a mobilização foi virtual), a Marcha levou às ruas quase 43 mil agricultoras não só da Paraíba, mas de todo o Nordeste. É a segunda maior mobilização de mulheres camponesas do Brasil.
“É importante se somar pra gente fazer essa luta juntos por dignidade, por justiça, pela não violência, principalmente, pelo bem viver e pela pauta da agroecologia, que é a nossa base, é o modelo de vida que a gente tanto almeja e tanto quer”, Céu convoca as mulheres.
E uma boa oportunidade para isso acontece em Esperança/PB, na primeira quinta-feira após o dia 8, com a 16ª Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia.
ASACom: Como é viver no campo para uma mulher?
Maria do Céu: Então, eu acho que, pra gente viver no campo, a gente precisa, primeiro, se reconhecer. Porque mesmo sendo mulher, ou trans, ou negra, você tem que se reconhecer como aquela pessoa, agricultora, que tem sua vida toda envolvida com a terra, com as criações, com a organização da comunidade, partindo de uma catequese, dos ensinamentos dos pais.
O campo é muito importante. Porque a gente tem autonomia de poder estar produzindo o alimento, de poder estar diversificando o roçado, de poder estar experimentando o que a gente aprende fora para trazer para dentro, com as plantas medicinais ou com as plantas ornamentais ou com as plantas frutíferas, nativas.
Se você também não se reconhecer como campo, você nunca vai pegar as experiências que aprende e implementar. Aqui, eu nasci e me criei. Então eu tenho muito essa relação com a Mãe Terra. Às vezes, as pessoas falam assim: ‘Ah, tu podia ir morar na cidade, tu só vai pra casa dormir.’ Mas não, quando eu chego aqui, eu sinto a paz, entende? Então pra mim isso já é o suficiente pra me identificar como mulher nesse espaço que eu nasci e me criei.
ASAcom - Para as mulheres, quais são os principais desafios que o campo apresenta?
Maria do Céu: Eu acho que o principal desafio para quem é mulher é, ainda, a falta de participação. Pode ser mulher solteira, mulher companheira, mulher irmã, qualquer mulher. Se ela não sair para participar, entender o que está acontecendo na sua comunidade, no seu campo, na sua organização de base, uma associação ou na igreja, ela fica muito presa.
E também, eu acho que outro desafio é a própria violência, no sentido do poder do homem sobre as mulheres ainda. A gente vai buscando a nossa liberdade, vai buscando a nossa igualdade, mas ainda existe, no campo familiar, muitas mulheres presas a um companheiro. A gente tem ainda a experiência de mulheres que não vão nem na casa da mãe ou na missa porque o marido não quer.
Mas isso vem sendo quebrado aqui a partir do momento que a mulher recebe um convite. E, se ela sair de casa uma primeira vez, vai compreender que não é pra ficar submissa. Quando as mulheres saem, elas podem dialogar com outras pessoas, com outras mulheres, e não vivem mais só naquele mundo do machismo, do homem.
A gente está nesse processo de formação da Marcha [Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia], e a gente tem escutado que o ‘eu não vou’ ou é por conta do esposo ou dos filhos, porque quando as mulheres assumem o relacionamento, seja casal ou não, mas aí já vem os filhos, aí elas também ficam presas.
Aí tem as criações, tem essa dinâmica ainda. Mas a gente tá trabalhando isso naquela campanha Pela Divisão Justa para o Trabalho Doméstico para que elas possam ir compartilhando esse desafio com quem está ali ao redor delas.
ASACom - Como mulher liderança, que conhece e conversa com muitas mulheres não só de Solânea, mas da região do Polo da Borborema, o que você diz para uma mulher que traz essas dificuldades…
Maria do Céu: Primeiro a gente precisa realmente saber o por quê daquilo, o por quê ela dizer não. Eu acho que uma das coisas que tem nos ajudado nesse processo de tirar as mulheres desse isolamento é justamente o acesso às políticas públicas. Se a mulher acessa o Programa 1 Milhão de Cisternas, a primeira água, por exemplo, para adquirir a cisterna, ela precisa participar de formações. Quando elas vêm para cá, para participar de um dia ou dois de formação, elas começam a compreender que ela não está sozinha, que ela não sofre esse isolamento sozinha, sempre tem outras pessoas compartilhando as mesmas coisas.
‘Ah, não posso sair porque eu tenho que fazer almoço, tenho que ajeitar os animais, tenho que deixar meu filho na escola. Então, quando elas vêm, começam a compreender que elas não vão ser as primeiras e nem serão as últimas a passar por esse processo. Mas elas precisam também se valorizar, dizer para si mesmas ‘eu não estou só e eu preciso somar com as outras’.
Outra coisa importante é a própria auto-organização das comunidades. Aí eu trago o Fundo Rotativo Solidário como exemplo disso, que tem sido fundamental e é uma das portas que vai se abrindo para as associações comunitárias, os sindicatos, que tem outras mulheres para ouvi-las e, até mesmo, dar um conselho.
Muitas associações são lideradas por mulheres. Não só é aqui em Solânea. Olhando para o nosso território, tem várias associações que as mulheres são a liderança e que isso ajuda muito a discutir essa temática do não isolamento, do não ficar em casa, do sair, do levar o seu conhecimento, do trocar o seu conhecimento.
Outra coisa que eu acho que tem trazido muito são os intercâmbios, sabe? Intercâmbio de mulheres, mulheres jovens, mulheres mais experientes, mulheres que têm as suas sabedoria. Esses intercâmbios, essa troca do conhecimento é fundamental, no sentido de trazer essas mulheres para, cada vez mais, irem tomando ciência de que são capazes de transformar aquela realidade, de sair desse isolamento.
Apesar de que a gente ainda encontra alguns desafios, mas tem muita coisa positiva sendo construída. E é por isso que a gente tem a Marcha, né? Porque se não fosse essa construção, essas trocas, a auto-organização das comunidades, a gente não teria a Marcha naquela proporção que a gente tem, né?
Asacom - Qual é a estratégia de vocês para convidar as mulheres para a Marcha e elas aceitarem?
Maria do Céu: Um convite, minha filha, um convite entregue em mãos. E uma das estratégias que a gente tem, a partir desse convite, é o processo de formação. É a gente discutir com as mulheres a importância de ir pras ruas no mês de março, fazer esse grande ato, que é um ato público de muita denúncia, mas também de muita sabedoria, muita troca, mas principalmente de denúncia. Às vezes, as outras pessoas, que estão fora, acham que podem iludir as mulheres no campo.
Então, no processo da Marcha, a gente tem feito as reuniões comunitárias, com as mulheres lá na base, lá na comunidade, nos municípios, nos sindicatos, com lideranças de comunidade, com lideranças de associações, de saúde comunitária, de juventude. Então, a gente tem feito esse processo e a gente tem entregado esse convite.
A cada convite que a gente entrega a uma mulher, elas já se sentem valorizadas e reconhecidas. É tanto que a gente elaborou várias estratégias para que esses convites possam chegar nas mulheres. E uma estratégia que a gente adotou e que vem dando certo é que as mulheres, que estão no processo de informação para sair convidando as outras, não podem jamais entregar esse convite ao marido daquela mulher. Jamais.
Se for o marido que participe com a mulher, que venha junto, que lute junto com ela, ele até leva. Mas se for aqueles maridos que não saem e não deixam a esposa sair, a gente precisa fazer com que esse convite chegue na mulher. A gente teve experiência, nas marchas passadas, que o convite que foi dado ao marido, não chegou até as mulheres.
Asacom - Você estava falando que tem várias lideranças mulheres nas associações, em vários lugares do território, que estão organizando a comunidade, organizando o fundo rotativo, estão doando o seu tempo para uma ação coletiva, comunitária. Fala um pouco da trajetória do Polo da Borborema para ter esse nível de mobilização das mulheres agricultoras.
Maria do Céu: O meu primeiro destaque é a gente ter criado uma comissão de mulheres dentro do território. A partir do conhecimento, dessa escuta, desse diálogo, foi fundamental pra gente discutir a questão da não-violência, dos desafios, das ameaças que chegam. A Comissão de Saúde e Alimentação trata de todo conhecimento pra dentro desse território.
E a outra coisa é a ousadia das mulheres de poder estar fazendo parte dessas entidades, né? De estar ali dizendo, não, a gente está participando, a gente quer contribuir, a gente quer participar seja da associação, seja do sindicato.
Porque a gente percebe que, quando tem mulheres nesses espaços, o trabalho flui a partir de diversos olhares. A gente sabe que nós temos, lógico, um grupo de homens dentro do movimento sindical que são abertos ao diálogo, que reconhecem a luta, mas não é a mesma coisa, não faz a luta que a mulher faz. Eles fazem a luta sim, mas não é com os olhares específicos. E as mulheres têm um olhar, para além da especificidade das mulheres, olha mais também para o coletivo.
Mas eu acho que uma das coisas mais importantes é a auto-organização mesmo da base. Porque várias mulheres lideranças estão fazendo de tudo nas comunidades. Elas discutem, elas organizam, elas buscam.
Uma das coisas que a gente tem que estar pautando pra participação e multiplicação dessas mulheres é o espaço que é dado nas comunidades, onde elas podem se reunir, onde elas podem discutir, onde elas podem dialogar.
Eu acho que a ousadia dessas mulheres é quem faz a gente caminhar pra frente, mesmo com alguns desafios, porque nesse movimento sindical ainda tem desafios, né? Homens achando que a gente quer passar por cima, que a gente quer ser mais, mesmo em 30 anos de história do movimento sindical [do Polo da Borborema].
A gente precisa compreender que as mulheres não têm medo, elas são ousadas mesmo e vão buscar, vão buscar o que elas querem. Até porque se a gente não for buscar o que a gente quer, quem é que vai buscar por nós, né? Nenhuma outra pessoa vai buscar pelas mulheres. Elas que têm que se colocar, elas que têm que avançar nesse sentido.
Asacom - Céu, você falou que o olhar das mulheres é diferenciado do olhar dos homens. Diferenciado como?
Maria do Céu: Assim, quando eu falo que os olhares são diferenciados, por exemplo, se a mulher está numa situação de violência, de não poder sair de casa porque a tarefa doméstica está muito pesada para ela, se ela falar isso para um homem, o homem vai dizer assim ‘Mas essa é coisa de mulheres mesmo. Mulher nasceu para isso, mulher tem que fazer isso, mulher casou para isso.’
E as mulheres que estão nessa base, que têm esse conhecimento feminista, elas não vão pensar assim. Elas vão querer discutir a divisão de trabalho para poder sair desse espaço de violência. Sem maltratar, sem brigar com ninguém, sem deixar ninguém mais para baixo do que o outro. Ela vai tendo o jeito dela, com carinho e tudo. Isso até mesmo com os filhos, porque até com os filhos, os homens acham que aquilo tem que ser de menina, aquilo tem que ser de menino. Não pode ensinar dessa forma, a educação não pode ser essa. E a gente vem aprendendo, ao longo desses anos, que a educação dos filhos parte muito do aprendizado sobre a divisão justa do trabalho.
Asacom - 8 de março é dia de luta. E aí eu queria saber qual é a luta mais importante das mulheres do Semiárido hoje.
Maria do Céu: Eu acho que a luta mais forte que a gente está enfrentando nesses últimos anos é a defesa do nosso território. É defender esse espaço da grande ameaça que é esse capital que está chegando, assolando nossas comunidades, desunindo as famílias, tá tirando o bem viver das pessoas, tá deixando o adoecimento.
Já faz quatro anos que a gente defende o nosso território dos grandes empreendimentos de energias renováveis. Desse modo centralizado. É claro que a gente não é contra as energias renováveis, mas a gente é contra o modelo centralizado que vem tirando esse bem-viver da minha comunidade, do meu espaço, da minha terra.
A gente vai fazer essa denúncia na Marcha, que vamos realizar no dia 13 de março, em Esperança. E a gente está falando já nos programas de rádio, nas redes sociais.
Isso também é violência. Uma violência muito forte. E que se a gente não botar um freio nesse modelo de violência, ela vai tirar nossas vidas. Principalmente das mulheres, das crianças, dos idosos, que estão ali nas comunidades. E principalmente da sucessão da própria agricultura familiar, né? Então, se nós estamos na terra, se nós tiramos nosso sustento aqui, como é que vai ficar daqui a alguns anos se nós não defender agora?
Asacom - E como é que vocês estão fazendo essa defesa, além de denunciar na Marcha?
Maria do Céu: A gente está fazendo um processo de formação, discutindo com as mulheres para não assinarem contrato, dizendo o que elas podem perder a partir dos estudos e das análises que estão sendo feitas.
A gente não vai ter mais acessos às políticas públicas, as nossas cisternas, que a gente fez uma luta já há muitos anos, vão acabar rachando, desabando com esses grandes impactos [da construção dos parques eólicos e usinas solares].
Então a gente fica a mercê de uma empresa que não é daqui. A nossa terra está sendo retomada pelos grandes proprietários através das empresas de energia, nesse caso. Então, está tendo uma reconcentração das terras para as grandes empresas. Isso a gente não pode deixar acontecer, porque já sofremos muito.
Não podemos deixar destruir o que a gente construiu com as mãos de muitas pessoas, com suor e sangue derramados. Margarida Maria Alves derramou seu sangue. O João Pedro Teixeira [um dos líderes das Ligas Camponesas da Paraíba] derramou seu sangue e outros companheiros. Elizabeth [Teixeira, esposa de João Pedro], tem 100 anos, tá viva, mas pede para as pessoas continuarem fazendo a luta. Ela diz que enquanto tiver as pessoas mais vulneráveis, as pessoas em situação mais precária, eles não vão desistir desse espaço, desse território, desse chão. E a gente precisa realmente continuar fazendo essa luta.
Asacom - As mulheres do Polo estão nesta defesa do território contra as indústrias de energia desde quando?
Maria do Céu: Nós no território do Polo fazemos a luta a partir de 2018, quando começamos a fazer os estudos dentro do território, quando a gente percebeu algo diferente em algumas comunidades. Fizemos intercâmbios, fomos conhecendo. E, a partir de 2022, a gente trouxe à tona essa pauta das energias renováveis [centralizadas] que estavam no auge, tá ainda em todo o Semiárido. Que é esse modelo de energia que, pra eles, é desenvolvimento, é energia limpa, mas pra quem está no campo, para quem está na comunidade, para quem está fazendo a agricultura, fazendo a agroecologia, não é nada disso que eles falam.
Então a gente vem tratando desse tema desde 2022 na Marcha que teve em Solânea. E agora a gente está dando continuidade. Porque precisamos falar que para morar e viver bem no nosso campo é preciso que as indústrias se afastem desse território. Aliás, que elas não cheguem em território nenhum. Que o governo olhe e reconheça que tem outras formas de gerar energia, energia renovável para todos e todas, mas de uma forma que deixe o povo no seu lugar, o povo no campo.
Asacom - O que você diria para outras mulheres agricultoras e que estão passando por desafios como esses da Borborema?
Maria do Céu: O que eu digo é que saiam de casa, venham pra luta, não assinem contrato, organizem a sua comunidade, busquem as organizações que estão fazendo estudos sobre isso, fiquem atentas, não se enganem. E não tenham medo de lutar, porque a luta, quando ela é coletiva, se torna mais forte. Eu sei que a gente lutar sozinha não é certo, não é o correto, porque não temos força sozinha, né?
Mas se somem a nós, se somem com as organizações e instituições que estão estudando esse modelo de energia, que estão defendendo seus territórios. É importante se somar pra gente fazer essa luta juntos por dignidade, por justiça, pela não violência, principalmente, pelo bem viver e pela pauta da agroecologia, que é a nossa base, é o modelo de vida que a gente tanto almeja e tanto quer.
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