ENTREVISTA
07.02.2025
'Eu não vim de qualquer lugar', diz a pesquisadora indígena Raquel Kariri
Nesta sexta-feira (7), Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, trazemos uma entrevista com uma das atuais pensadoras do Semiárido

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Por Verônica Pragana | Asacom

Raquel é uma mulher indígena e caatingueira que estuda a epistemologia e ontologia dos povos indígenas | Foto: Arquivo pessoal

No Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, celebrado há 17 anos no dia de hoje (7 de fevereiro), trazemos uma entrevista com uma das atuais pensadoras do Semiárido, uma mulher, indígena e caatingueira: Raquel Kariri, que nasceu e vive na porção cearense da Chapada do Araripe, na zona rural do município do Crato.

Doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará, Raquel estuda a epistemologia e ontologia dos povos indígenas que sempre habitaram a Caatinga. Seu estudo pinta de urucum e jenipapo a academia, lugar, por muito tempo, inacessível à diversidade dos povos.

Jornalista, com estágio, no início de sua trajetória profissional, no setor de comunicação da ONG Patac, uma das organizações da ASA Paraíba e Brasil, Raquel fala com voz pausada e ênfase nas palavras. Ela é daquelas pessoas que escolhe cada palavra, porque se nega a repetir as já gastas pelo discurso hegemônico.

Tanto para comentar dados quantitativos, como os do Censo 2022, quanto pra contar sobre os fenômenos invisíveis, como as relações entre os especialistas da Caatinga com os bichos, plantas e clima, Raquel se inspira na sabedoria da sua grande mestra, a própria Caatinga, e em vários pensadores indígenas.

A entrevista me foi concedida, na noite da terça-feira (4), bem no dia em que grande parte do Recife e região metropolitana virou rio por conta de uma intensa chuva, que vem se repetindo e causando tensão na população. Ouvir Raquel, justo neste dia acendeu em mim a chama da esperança diante de uma questão tão dramática e gigante e que tem deixado as pessoas com um novo tipo de ansiedade - a climática.

As palavras escolhidas por esta indígena Kariri apontam as retomadas indígenas, que se dão tanto no ambiente rural, quanto urbano, como um indício de que os povos originários nunca foram vencidos, apesar de serem oprimidos há mais de meio milênio.

“Nós somos povos resistentes, porque desde que a primeira máquina de guerra aportou aqui a nossa resistência iniciou, a nossa luta iniciou há 525 anos. E é inacreditável que eu, que aprendi na escola que o meu povo tinha sido extinto, hoje, me afirmo como mulher indígena. Que hoje, o Cariri tem diversas retomadas indígenas. Então isso é porque a resistência sempre continuou.”

Quem é Raquel e qual a relação que tens com o Semiárido?

Então, eu me chamo Raquel, pertenço ao povo Kariri, aqui da Chapada do Araripe. Sou do Crato (CE), moro no Crato, sou de comunidade rural, sou cria do sítio Campo Alegre, que fica aqui ao sopé da Chapada do Araripe. Eu passei boa parte da minha vida sendo uma mulher indígena em contexto rural, em uma das muitas comunidades florestais. Eu venho chamando assim as comunidades da Chapada do Araripe de comunidades florestais, que são uma salvaguarda pras práticas, pros conhecimentos ancestrais dos povos nativos dessa região. Essas comunidades rurais são tipos de aldeamento, são tipos de aquilombamento. Essas comunidades elas atuam como esse espaço de salvaguarda das práticas e saberes comunitários.

Então, sou desse lugar, sou jornalista de formação. E iniciei minha minha prática de comunicação na ASA Brasil no Patac (ONG da Paraíba), junto com Glória, Tonico, Sandra Raquel. Lá nos idos de 2003, foi logo no primeiro ano, segundo ano do governo Lula, que eu comecei a estagiar. Então, a política de comunicação da Articulação de Semiárido brasileiro ainda estava sendo delineada, estava sendo construída. Peguei essa construção. E aí, depois do Patac, eu trabalhei na ACB, na Associação Cristã de Base aqui do Crato.

Então, essas experiências dentro da ASA ampliaram o meu repertório a respeito do Semiárido. Eu fui aos muitos Semiáridos, rodei essas muitas Caatingas que nós temos e pude me impressionar bastante com tudo que eu vi, com todas as experiências, com todas as epistemologias, com a diversidade. Isso criou uma marca muito profunda na minha alma, né? Aprofundou ainda mais essa marca caatingueira, que eu guardo na minha alma, por ser habitante desse território. E essa experiência da ASA, junto com tantas outras, desembocou na minha pesquisa atual. Eu faço um alinhavo com os boletins, com os Candeeiros. Eu trago os Candeeiros produzidos aqui pelas organizações do Kariri cearense para fazer um diálogo com os conhecimentos e as relações entre humanos, plantas, bichos, clima, que nós temos na Caatinga e a produção de conhecimento que vem das relações sensíveis. E é um desejo muito antigo que eu tenho de falar com a ASA, de dialogar com a ASA a respeito da minha pesquisa. 

Eu queria que você falasse mais sobre a tua pesquisa “Caatingar o pensamento: quando pessoas, plantas e bichos falam”. Quando é que plantas e bichos falam, né? Como é que você escuta?

E o que é que eles dizem? Como é que eles falam e como é que se escuta, né? Então, eles falam o tempo todo, né? Eu aprendi isso aqui na minha comunidade. Plantas, bichos, pessoas, a terra falam o tempo todo. E foi essa uma das bases epistemológicas para a minha pesquisa. Muito mais do que uma experiência, [é] uma vivência, a relação sensível entre os especialistas da Caatinga, que usualmente nós chamamos de agricultores familiares, mas que na minha pesquisa eu chamo de especialistas. Essa relação sensível entre esses especialistas, as plantas, os bichos e o clima é a base da minha discussão epistêmica. Ou seja, eu considero isso um conhecimento válido e tão importante quanto qualquer outro conhecimento epistemológico que nós temos acesso de autores europeus, de autores americanos, de autores que estão dentro da universidade brasileira. Então eu coloco na mesma horizontalidade esses conhecimentos que brotam desse chão.
E aí são esses especialistas que apontam o modo de escuta e de relação. Então, por exemplo, nós sabemos muito bem que o clima é uma grande preocupação para nós, porque ele vai definir o nosso bem viver, o nosso bem estar nos territórios rurais do Semiárido. Então, os especialistas olham pras nuvens, olham pros pássaros, olham pra terra, olham para os insetos e começam a dizer, com propriedade, se vai chover, se não vai chover, quando chove, né?

Então, a interdependência que a gente encontra na Caatinga, ela é extremamente preciosa e valiosa, partindo da compreensão de que não existe Caatinga em nenhum outro lugar do mundo, só existe aqui. Então, se essa floresta só existe aqui e todos os seres que habitam essa floresta só existem aqui, isso quer dizer que os conhecimentos que são produzidos nessa relação também não existem em nenhum outro lugar do mundo.

Então, assim como essa floresta é rara e única, todo manancial de conhecimento que brota da relação entre todos esses seres são raros e únicos, da mesma forma. O que eu pauto na minha pesquisa é essa raridade ontológica, ou seja, da existência desses seres que são únicos. A gente sabe que um terço dos animais só existe na Caatinga, um terço das aves, um terço das plantas só existe aqui. O corpo da Terra não produziu um evento endêmico. Acima de tudo é uma ocorrência ontológica, ou seja, esses seres que habitam esse lugar são únicos e raros. Todas essas relações de vida, de magia, de sonho, e novamente, de conhecimento só existem aqui.

Esse é o deslocamento que eu faço, muito mais do que falar sobre a importância ecológica da Caatinga. E é claro que é fundamental, mas eu também tô preocupada em que a gente possa mirar para esses conhecimentos que são considerados dispensáveis e desprezíveis. Porque é isso, nós somos consideradas pessoas ahistóricas, nós não temos história, nós somos consideradas pessoas ignorantes. Nós habitamos uma floresta incompreensível que nem mesmo é percebida como floresta, como mata, mas a gente sabe que a Caatinga é uma floresta. É a floresta seca mais biodiversa do mundo, localizada no Semiárido mais chuvoso e populoso do mundo. Então, novamente, a gente tem um grande evento ontológico e epistêmico, ou seja, de produção de conhecimento raríssima. É disso que eu falo nessa pesquisa.



E tu faz algum recorte com relação aos povos indígenas dentro da pesquisa?


Eu faço um recorte, eu parto do pressuposto de que esses conhecimentos são conhecimentos nativos, originários da Caatinga. E por que eu faço isso? Porque nós habitamos um território que sofre um apagamento étnico, um apagamento epistêmico brutal. Então nós vamos deixar de ser Kariri, Calabaça, Tupinambá, para sermos sertanejos. Nossos pajés vão se transformar em benzedeiras e rezadeiras. Nossos guerreiros vão se transformar em boiadeiros. Então no final das contas, nós nos transformamos nessa caboclagem, que eu inclusive não tenho problema com isso. Não tenho problema em me afirmar como uma mulher cabocla. Entretanto, é para ser dito que isso é fruto de apagamento étnico.

Então, quando eu olho e digo, eu não estou falando de agricultores familiares, eu estou falando de especialistas da Caatinga. E eu digo que esses especialistas vêm de um lugar ancestral. O que a gente usualmente vai chamar de agricultura, de agroecologia, eu vou dizer: “Isso é roça de aldeia, isso é uma roça indígena, isso é um modo de habitar nativo. Isso não é só agricultura familiar. Essas pessoas têm e produzem conhecimentos nativos porque elas estão em território nativo e são pessoas nativas que sofrem um profundo apagamento étnico.”
Para mim, essa é uma questão fundamental pra gente discutir no Semiárido brasileiro. Pra que a gente possa, de fato, começar a fazer uma reparação ontológica, cognitiva, ancestral no Semiárido. Parar de nos chamar todos de sertanejos, de nordestinos. Porque essa cultura que a gente está chamando de sertaneja é uma cultura profundamente indígena e com uma grande confluência, um diálogo muito profundo com os povos afrodiaspóricos que foram capturados, sequestrados, mantidos em cativeiro aqui.

O Censo 2022, que foi divulgado no final do ano passado, mostra a quantidade de pessoas indígenas que estão fora das suas terras, das terras indígenas, das terras ancestrais, que é bem grande. No Nordeste, mais de 75% da população indígena está em outros territórios, está em outros lugares que não são as terras ancestrais. E aí eu acho que isso só reforça o que você está dizendo, assim, desse apagamento étnico, ontológico.

Isso é o que, brilhantemente, o professor Cazé Angatu, indígena Tupinambá de Olivença, vai chamar de diáspora indígena. Então, o que a gente aprendeu no colégio, que se chama êxodo rural, o professor Casé percebeu que, na verdade, isso é deslocamento forçado de contingentes de populações nativas originárias do Nordeste para outros pontos do país ou para as capitais dessa região. Então, por quê? E aí, o que aconteceu?

A gente está falando de um território de primeiro contato com a máquina de guerra colonial. A colonização chegou primeiro no Nordeste, antes de qualquer lugar. Esse dado é fundamental, pouco ou nunca discutido, nunca olhado de forma demorada e aprofundada. O que significa uma invasão predatória, genocida sobre um território e sobre povos numa guerra continuada que já dura mais de meio milênio.

Então a máquina de guerra chega aqui primeiro, como a Glicéria Tupinambá fala, os nossos corpos aparam essas balas. Outros territórios do Brasil vão conhecer essa máquina de guerra muito tempo depois, porque são os nossos corpos que desaceleram essas balas. E o modo de habitar colonial que se instaura aqui, ele se funda na desterritorialização e roubo de terras. Então, o que nós temos aqui é um profundo roubo de terras desde que essas pessoas chegaram aqui e que acontece até hoje. A gente sabe que o Semiárido é constituído principalmente de minifúndios. Então, é desse roubo de terras, que essas populações vão ser forçadas a migrar.

E também o Estado vai produzir um apagamento dessa população, impedindo que se afirme enquanto indígena e passe a se chamar, por exemplo, de caboclo, de parda. Nós passamos a ser pardos, caboclos, nós passamos a ser sertanejos. Então tudo isso faz com que essa população, que sai dos seus territórios ancestrais e migre forçadamente para outros lugares, ou que tenha as suas terras roubadas, deixe de se afirmar como indígena.

Até porque se afirmar como indígena é receita pra o genocídio. Então ninguém vai querer isso. A gente tem esse cenário nesse lugar. Mas isso não quer dizer que nós somos povos vencidos. Nós somos oprimidos e povos resistentes, porque desde que a primeira máquina de guerra aportou aqui a nossa resistência iniciou, a nossa luta iniciou há 525 anos. E é inacreditável que, eu aprendi na escola que o meu povo tinha sido extinto, hoje, me afirmo como mulher indígena, que hoje, o Kariri tem diversas retomadas indígenas. Então isso é porque a resistência sempre continuou.

Falando em resistência, na entrevista para Cajueira, tu chegasse a citar uma das lutas do passado. As resistências que foram travadas no Semiárido - Caldeirões, Canudos, Pau de Colher e tantas outras - são muito referência para a resistência que a gente faz ainda hoje.

Então, a comunidade de Caldeirão da Santa Cruz do Deserto foi uma comunidade que se estabeleceu aqui no Crato, de onde eu falo. Caldeirão, assim como Canudos, era uma comunidade que hoje eu compreendo como uma comunidade afro-indígena. Era uma comunidade, era uma aldeia-quilombo, um aldeamento, um aquilombamento. E que, como em Canudos, as pessoas estavam em busca dessa terra do bem viver.

E Caldeirão foi constituído a partir da liderança do Beato Zé Lourenço. Quando a elite local começa a perceber que está perdendo mão de obra escrava, porque basicamente se tratava de isso, começa-se o ataque ao Caldeirão. E aí muitos ataques foram feitos, até que numa última investida, eles conseguem acabar com Caldeirão. O Beato foge, há todo um massacre, também como em Canudos.

E todas as narrativas de inferiorização e de monstrualização daquelas pessoas e daquela comunidade também foram produzidas: que eles eram fanáticos, diziam a mesma coisa de Canudos, que o Beato era um impostor, era um fanatizador, que profanava as mulheres, abusava das mulheres, que havia diversos atos de violência, ilícitos e que eles eram monarquistas, o que não era verdade.
Então, essas lutas, Canudos, Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, Pau da Colher, tantas outras que nós tivemos e temos no Semiárido brasileiro, são aldeamentos, são aquilombamentos, no final das contas.

Eu aprendi na universidade que o que tinha acontecido em Caldeirão era um protosocialismo. Hoje eu fico realmente estarrecida de como nós podemos ser eurocêntricos no nosso olhar sobre o nosso povo. Porque, no final das contas, era uma população indígena, desterritorializada, que teve suas terras roubadas, aliançada com os povos afrodiasfóricos que foram capturados e arrastados para cá. Disso que se tratava, por isso que as pessoas sabiam fazer tão bem tudo aquilo acontecer. Porque viver em coletivo, viver em comunidade era um modo de existência primário daquelas pessoas. Então é claro que ia dar certo.

E novamente, a gente estava falando com especialistas da Caatinga. As pessoas sabiam manejar, gerenciar os recursos hídricos, sabiam olhar para as relações e determinar os ciclos de chuva, os ciclos de seca, sabiam manejar a terra, sabiam as sementes apropriadas para o plantio, porque eram pessoas indígenas, porque eram pessoas nativas, porque eram especialistas da Caatinga. Claro que aquilo ia dar certo. Então, é  esse olhar apreciativo para as nossas populações que a gente tem que ter, que elas sempre foram resistentes e sempre produziram uma fissura no muro colonial.
Então, todas as vezes que o Estado quis devorar essa população, essa população se levantou e produziu uma fissura nesse muro, nessa máquina de guerra, assim como as energias climáticas do nosso território, selvagens, indóceis e que não permitem a docilização pelo Estado. Então, a todo momento, humanos e não humanos estão lutando contra essa máquina de guerra colonial estabelecida neste território. Na verdade, eu gosto de usar ‘entes’. Entes visíveis, entes não visíveis, né? Também tem que lembrar dos encantados, que é não visível, mas que a gente sente.

Em outubro de 2024, representantes da FUNAI apresentaram na COP 16 (Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade) um dado que evidencia a relação entre as terras indígenas (TI) e a preservação do meio ambiente. As TI representam 13,8% do território nacional e abrigam 20% da vegetação remanescente do Brasil. Mas, os dados são frios. Eles sozinhos não tocam as pessoas. Como fazer para construir as pontes necessárias entre as populações urbanas e os povos da Caatinga?

Na minha experiência, como pessoa caatingueira e como ativista da Caatinga, falar sobre números a respeito da Caatinga é falar pro nada. As pessoas não compreendem que a Caatinga é floresta, poucas pessoas se importam com a Caatinga.

E a política de inimizade que foi produzida acerca desse bioma é tão perversa que faz com que as pessoas não tenham simpatia e amorosidade por ela. Então, quando eu falo da Caatinga, eu abordo as experiências de sabedoria que essa floresta me proporciona e eu acredito também que proporciona a outras pessoas que se dedicam a estar demoradamente com ela. Porque eu aprendo com a Caatinga a morrer e a renascer. Não que a Caatinga morra, a gente sabe que a Caatinga não morre. Os biólogos vão chamar isso de estado de latência. Mas eu gosto de dizer, eu gosto de escolher outras palavras, então, pra mim, que a Caatinga entra em estado introspectivo. Pelo menos quatro meses no ano, essa floresta comete o maior pecado dentro de um mundo neoliberal. Ela descansa. E aí nesse descanso, nesse estado introspectivo, ela larga tudo que não é necessário. Então, algumas árvores vão largar todas as suas folhas.

Ela tem esse nome originário, que significa floresta branca porque, quando a gente olha de longe, aquilo ali está resplandecente ao sol. Então, essa originária, essa floresta originária que descansa, ela nos dá esse grande ensinamento - do repouso, da desaceleração, de não brigar e não ser rígidas com as circunstâncias difíceis. Quando circunstâncias exigentes e difíceis aparecem nas nossas vidas, é melhor a gente largar o que não importa, deixar ir o que não importa, e aguardar as boas vindas das águas. Porque as águas sempre chegam. Então ela também é esperança o tempo todo. Quando as boas condições se apresentam pra ela, ela explode em vida, ela renasce.

Então eu gosto de pensar que eu faço uma comunicação feiticeira. Eu tento aprender com essa grande Mestra e tento falar a partir desse lugar da feitiçaria, do encantamento. Porque se eu for falar como a comunicação hegemônica fala, como o jornalismo ambiental fala, eu não vou ter escuta.

Mas se eu crio feitiços, se eu jogo, se eu começo a invocar palavras feiticeiras, é possível que essas palavras cheguem no coração das pessoas. E as pessoas se sintam mobilizadas e atravessadas por essa grande mestra, por essa grande originária, por essa floresta que oferece uma das sabedorias mais antigas e raras hoje em dia. Pausar, descansar, transmutar, estar presente com os muitos desertos que nos atravessam.

Então, é assim que eu me relaciono com essa floresta e com o meu ofício, seja na comunicação, seja na pesquisa, seja no ativismo. É dessa forma feiticeira, é lançando os contra feitiços para a gente vencer a colonização. Porque a gente não quer uma amostra da Caatinga, a gente quer a Caatinga inteira, toda ela é importante. Eu não quero um cantinho ali, lá na Serra da Capivara, para dizer olha que linda é a Caatinga. Eu quero a Caatinga inteira. 

E como os povos indígenas estão organizados para fazer a resistência? Vocês vêm ocupando espaços na política institucional, mas existem também outras formas de organização nos territórios…

Então, é como você disse, nós temos as esferas amplas de lutas, que estão articuladas com o Estado. E a luta hoje primordial desses espaços de poder é o marco temporal e a demarcação de território. É uma luta que está sendo travada desde antes de eu nascer e vai continuar quando eu morrer também. Então a gente tem essa instância.

Tem as instâncias também das organizações locais, né? Então cada região do Brasil vai ter as suas organizações indígenas oficiais, mas nos territórios a gente tem as organizações também locais.
O Nordeste, por exemplo, ele passa já, há muitos anos, por uma efervescência de retomadas e que, cada vez mais, se amplia. E agora se amplia para o contexto urbano. Então, se a gente tem uma efervescência de retomadas indígenas, territoriais, ancestrais, na zona rural, nós avançamos para a retomada ancestrais em contexto urbano. Então nós vamos ter, em todos os territórios do Nordeste, coletivos lutando e se afirmando a partir de suas etnias.

Aqui no Kariri, nós temos hoje quatro aldeias. A gente tem Poço Dantas e Chico Gomes, no Crato, aldeias das Queimadas dos Isú-Kariri em Brejo Santo e a gente tem as Marrecas em Lavras da Mangabeira. Fora isso, nós temos um movimento também urbano, cada vez mais forte, de pessoas se auto determinando como indígenas. Então, isso faz com que a gente saia desse coma colonial e comece a pintar de urucum e jenipapo as artes, a cultura, a educação, a militância.

Então a gente vai pautando, dentro dessas muitas dimensões, os corpos indígenas. Então a gente não vai mais pautar a sertaneja, o sertanejo, não. Mas vamos pautar o povo Kariri, nós vamos pautar o povo Karaxuwanassu, por exemplo, que estão aí em contexto urbano no Recife.

Essas muitas retomadas, essas micro lutas, elas vão criando um caldo, um caldo de energia muito forte. E eu acredito que quem nos despertou foi as nossas ancestrais, quem nos despertou foram os encantados.

Eu não acredito que é possível uma força de retomada tão grande quanto a gente está vendo nos muitos territórios, se isso não tivesse as forças da encantaria nos soprando. Porque a minha retomada, ela não foi algo que eu decidi assim “agora eu decido”. Porque a minha família é uma das muitas famílias do interior do Nordeste. É uma família que teve as suas memórias e a sua ancestralidade apagada. Como muitas, milhares, milhões. Então, quando eu decido fazer a retomada, não é uma decisão lógica, mas é uma decisão espiritual.

Uma decisão espiritual porque é um chamamento mesmo, é uma invocação. E assim como eu sinto isso, as outras pessoas também sentem uma convocação espiritual. Então, as retomadas, elas são uma aliança entre os vivos, os mortos e os encantados. E as nossas ancestrais, os nossos ancestrais também não nos sopram essas receitas de resistência.

Então, o que está acontecendo é muito, para mim, é muito mais do que apenas uma outra arena política que está se firmando, mas é também uma reparação ancestral. Então, no momento em que a gente vai acordando do coma colonial, no momento em que a gente vai se auto determinando, falando nosso idioma, cantando os nossos torés, nos pintando de urucum, de jenipapo, trazendo as nossas memórias, as nossas ancestrais e os encantados, eles têm a reparação espiritual que eles necessitam ter, porque foi muita violência, foi muita violência, foi muita perturbação espiritual que houve e que há.

Então tudo isso também é uma encantaria. Mais do que uma arena política, é uma grande encantaria, um grande rezo para a cura da terra. A cura. No final das contas é isso que a gente quer, a gente quer a cura da terra. A gente não quer só a cura dos povos indígenas, a gente quer a cura de toda a terra. Então é esse grande rezo, que para mim é extraordinário.
E que quanto mais a gente olha pra isso, principalmente em contexto do Nordeste, a gente vai encontrar uma força, uma resistência que a gente vai dizer: “O que é isso, né? O que tá rolando aqui? Então deixa eu entender aqui um pouquinho mais, deixa eu perceber.”

E a gente vai se descolonizando para ver… o nosso tipo de comida - tapioca, cuscuz, uma macaxeira - o nosso descanso na rede, ou então se deitar no chão. A nossa forma da gente se tocar, se comunicar, gostar de estar junto, o São João. E como diz o professor Casé Angatu, todo mundo vira índio no São João, a gente comer milho, a gente vai dançar toré, a gente vai louvar a encantaria, os astros, porque é o nosso batir, é quando a constelação de Órion, os sete estrelas aparecem no céu, então é o ano novo desses povos nativos dos Semiáridos.

Tudo isso é nosso, tudo isso é nosso. Quando a gente vai juntando tudo isso, caramba! É muito bonito! Aí a gente vai crescendo e vai dizendo, eu não vim de qualquer lugar não.