Por Camila Araujo/Assessoria de Comunicação do ISPN
No sertão do Pajeú, em Bom Sucesso, zona rural de Ingazeira, mulheres constroem as próprias cisternas para garantir o acesso à água e enfrentar a desigualdade histórica no campo.
Dados da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) revelam essa desigualdade: 1,3% dos latifúndios, com mais de mil hectares, ocupam 38% das terras agricultáveis, enquanto 1,5 milhão de famílias agricultoras dividem apenas 4,2% – um retrato da profunda concentração fundiária no país.
Em uma região onde a água é distribuída de forma irregular e concentrada em poucas propriedades, elas colocam a mão na massa para transformar a realidade. Não se trata de “combater a seca”, mas de aprender a conviver com o semiárido, garantindo autonomia e dignidade.
Para enfrentar esse cenário, tecnologias de captação e armazenamento de água, como as cisternas, são fundamentais. Mais do que garantir acesso à água, elas representam um passo para a independência, a segurança alimentar e a organização comunitária.
Sob a liderança de Maria Suely Carvalho, agricultora, pedreira e tratorista de 39 anos, presidente da Associação Comunitária das Mulheres de Bom Sucesso há quase seis anos, a organização transformou a realidade local com infraestrutura, cursos e o fortalecimento do protagonismo feminino na sociedade.
Fundada há 16 anos, a associação começou suas atividades com reuniões realizadas de casa em casa, sem uma sede própria. Hoje, conta com um espaço fixo e uma garagem construída com o auxílio de um trator, adquirido por meio de uma emenda parlamentar. O veículo, que é operado pela própria Suely, tornou-se uma das principais fontes de renda da associação. Para ela, as conquistas são motivo de orgulho: “A associação nos deu oportunidades. Começamos com 25 mulheres, e agora já somos 52 associadas.”
Um dos marcos dessa trajetória foi a formação de cisterneiras, resultado de uma parceria entre a Casa da Mulher do Nordeste (CMN) e a ASA.
Em janeiro de 2024, cinco mulheres de Bom Sucesso foram capacitadas pelo Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido: Um Milhão de Cisternas Rurais (P1MC), desenvolvido no início dos anos 2000, para construir as tecnologias de armazenamento de água de beber na comunidade. Elas construíram cinco cisternas na região, sendo uma dentro da própria comunidade.
“As formações para construir as tecnologias sociais têm o objetivo de as mulheres serem multiplicadoras desse conhecimento. Para que a relação de poder seja minimamente igualitária, para que os homens e mulheres se entendam como igualitários”, explica a assessora técnica da CMN, Sara Rufino.
A Casa da Mulher do Nordeste, que acompanha a associação desde 2014, enxerga a segurança hídrica como um eixo central para a permanência das famílias no campo. “Não se trata de combater a seca, mas de trabalhar respeitando o território”, destaca Rufino. A formação de cisterneiras é um diferencial na comunidade em Ingazeira, onde as mulheres assumem a construção de cisternas de primeira água – reservatórios com capacidade de 16 mil litros, destinados ao consumo humano.
“Gosto de ser cisterneira, gosto de estar no movimento de construção. É uma forma de mostrar para a sociedade que a mulher é capaz de construir o que quiser”, afirma Suely Carvalho.
No projeto “Mulheres do Sertão do Pajeú, articuladas pela agroecologia e convivência com o semiárido”, apoiado pelo Fundo Ecos, o grupo feminino de cisterneiras aplicou os conhecimentos na construção de tecnologias de armazenamento de água, implementando mais de cinco novas cisternas na comunidade.
O impacto do projeto vai além do acesso à água, abrangendo também iniciativas para fortalecer os quintais produtivos.
Com lágrimas nos olhos, Bernadete Conceição, agricultora de Bom Sucesso, descreve a transformação: “Antes, eu não tinha um pé de coentro porque não tinha água. Hoje, graças ao projeto, meu quintal, que chamo de ‘Resistência’, está cheio de vida. O Fundo Ecos trouxe esperança e autonomia.”
Para as cisterneiras, a capacitação também foi uma forma de enfrentar preconceitos. “Os homens duvidavam da nossa capacidade. Mostramos que somos capazes de fazer cisternas e muito mais”, lembra a agricultora Eliene Carvalho, que participou do curso. Já Adriana, outra cisterneira, diz que o desafio valeu a pena: “Foi cansativo, mas conseguimos. Que venham mais cursos!”
Protagonismo feminino
O trabalho da associação está fundamentado em práticas agroecológicas, como sistemas produtivos integrados e uso de tecnologias sociais. Além das cisternas, as mulheres têm adotado fogões agroecológicos, biodigestores e sistemas de reúso de águas cinzas, promovendo a sustentabilidade da Caatinga, a viabilidade de quintais produtivos e a segurança alimentar.
“O acesso à água, favorecido pelas cisternas, viabiliza a produção de frutas e hortaliças nos quintais produtivos. Já os fogões agroecológicos contribuem para o processamento da produção, gerando renda para as mulheres e, como consequência, o fortalecimento delas frente à violência doméstica, que infelizmente ainda é recorrente na região”, explica Jessica Pedreira, assessora técnica do ISPN.
A região do sertão do Pajeú, no interior de Pernambuco, enfrenta um cenário de violência contra mulheres. Somente nos primeiros seis meses de 2024, foram 1.203 casos registrados em todas as 17 cidades do Pajeú, quase 5% dos 26.752 que ocorreram em no estado pernambucano no mesmo período. Os municípios no Pajeú que lideram o ranking são Serra Talhada, Afogados da Ingazeira, São José do Egito, Tabira e Carnaíba.
Para fazer frente a este cenário, o projeto apresenta um conjunto de ações articuladas com foco no protagonismo feminino. Os fogões agroecológicos são usados para beneficiar alimentos colhidos nos quintais produtivos, na produção de geleias, doces e outros. Resultado disso é a geração de renda para mulheres e fortalecimento do protagonismo feminino.
Membro do conselho fiscal da associação, Rosineide Oliveira enfatiza a união como motor de transformação. “Foi uma luta para conseguir, mas conseguimos. A união faz a força. Nós, mulheres, mostramos que sabemos, podemos e somos capazes. E os homens, que antes duvidavam, hoje nos apoiam.”
A experiência das cisterneiras do Pajeú é um exemplo de como a mobilização comunitária e o protagonismo feminino podem transformar desafios em conquistas, garantindo o direito à água, fortalecendo a agricultura familiar e promovendo uma sociedade mais justa e igualitária. “Que nunca nos falte a esperança de viver em um mundo sem preconceitos, onde as mulheres sejam reconhecidas por sua capacidade”, conclui Suely.
#AquiTemFundoEcos: O projeto “Mulheres do Sertão do Pajeú, articuladas pela agroecologia e convivência com o semiárido”, da Associação Comunitária das Mulheres do Bom Sucesso, foi selecionado no 35º edital do Fundo Ecos, com foco na Caatinga. A iniciativa conta com apoio financeiro do GEF (SGP) e apoio institucional do PNUD Brasil.
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