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05.11.2014
Estiagem no Sudeste: um processo de décadas
Revista - Revista Caros Amigos


Por Amanda Secco - repórter
, Nos últimos meses, o Sudeste brasileiro vem recebendo notícias preocupantes sobre a situação de seus reservatórios e mananciais. No estado de São Paulo, o Sistema Cantareira teve a utilização de seu segundo volume morto autorizada e opera com cerca de 11,9% de sua capacidade, segundo a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). Na nascente do Rio São Francisco, em Minas Gerais, a água secou e movimentos de proteção ao rio protocolaram recentemente um pedido de moratória junto aos ministérios públicos dos estados banhados pelo Velho Chico.

A estiagem sem precedentes contribui para o cenário catastrófico, assim como a falta de planejamento dos responsáveis pelo abastecimento de água, que cabe aos estados e, em alguns casos, aos municípios. Roberto Malvezzi, membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Articulação Popular São Francisco Vivo, aponta ainda outro fator a ser considerado. "Há um processo histórico de degradação dos mananciais brasileiros. Você tem a questão do desmatamento e da impermeabilização do meio urbano. Você vai ter pouca alimentação dos aquíferos. Essa questão precisava ser estudada em nível nacional. Nós não temos nenhum programa sério no Brasil de cuidado com os mananciais", alerta, frisando que os aquíferos são os melhores depósitos de água da chuva para os períodos de estiagem.

Em um artigo que escreveu sobre o tema, intitulado “Água: vão evacuar São Paulo?", Malvezzi aponta que este é o começo de uma "vingança da natureza" contra a ação predadora do homem. "A situação de São Paulo foi construída desde a década de 1950, quando se intensificou o desmatamento em São Paulo e quando a concentração urbana tornou-se um fenômeno alucinante. A do São Francisco vem desde o século XIX, quando os vapores começaram a consumir toda a madeira que compunha a mata ciliar do Velho Chico", analisa.

Um estado que não aprende

Malvezzi analisa que um dos erros mais graves por trás da atual situação do estado de São Paulo é a falta de aprendizado histórico para lidar com a estiagem, algo que acabou se desenvolvendo nos estados do Nordeste. “Em uma cidade como São Paulo, você tem uma concentração urbana que é a maior da América Latina e uma das maiores do mundo. Estão falando sobre o segundo volume morto, há um conflito com a Agência Nacional de Águas. E me parece que não há um plano alternativo. Eles estão apostando em que vai chover. Em uma cidade com 18 milhões de habitantes, você apostar na chuva para recuperar o manancial é de uma gravidade quase catastrófica”, opina ele.

Principalmente levando-se em conta que, ao menos desde o início dos anos 2000, já se sabe sobre a baixa disponibilidade hídrica no estado de São Paulo, que é de 201 m³/habitante/ano, cerca de um décimo do nível considerado correto pela Organização das Nações Unidas (ONU), de 2500³/habitante/ano. Em 2003, dados de pesquisadores dos Universidade de São Paulo (USP) Mônica Porto e Ricardo Toledo, à época responsáveis pelo Plano da Bacia do Alto Tietê, já alertavam que a região metropolitana operava no "limite do sistema”, que mesmo com a importação de água de bacias vizinhas, não possuía reserva estratégica e que estava "sujeita a enfrentar um problema grave de abastecimento", conforme divulgado na imprensa.

Roberto Malvezzi, que também se envolveu em pesquisa sobre o tema em 2004, chegou às mesmas conclusões. “A gente sabia que São Paulo era um dos lugares com menor disponibilidade hídrica per capita do Brasil. Menos disponibildade hídrica do que o Nordeste, em que temos mais de 1000m³/habitante/ano”, diz Malvezzi. Levando em consideração esse processo que já se iniciou há anos, ele entende que a problemática de São Paulo só se resolverá com ações profundas, que passam pelo uso mais cuidadoso dos mananciais.

Esgotamento do Velho Chico

No final de setembro, após a notícia de que a nascente do Rio São Francisco havia secado, a Articulação Popular São Francisco Vivo, que reúne uma série de entidades em defesa da preservação do Velho Chico, protocolou no Ministério Público de Aracaju (SE), de Barreiras (BA), de Guanambi (BA), Maceió (AL), Montes Claros (MG) e Petrolina (PE) um pedido de moratória. A ideia é suspender novos licenciamentos e outorgas de águas para grandes e médios projetos e a revisão dos já concedidos; e solicitar que sejam tomadas “medidas cabíveis contra os agentes governamentais e privados que violam direitos ao promover ou se omitir frente à degradação da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, mais evidente no atual quadro de estiagem”.

A moratória questiona ainda a situação do Programa de Revitalização da bacia do Rio São Francisco, política pública iniciada em 2004 e com prazo de execução de 20 anos, do qual se tem pouca ou nenhuma notícia. O pedido é que o programa seja retomado e ampliado, e que, além disso, seja realizada uma avaliação hidroambiental de toda a bacia para definir parâmetros mais restritivos para uso de suas águas, matas, solos e subsolos.

O documento, assinado por 70 entidades, se baseou em manifesto publicado no mês de agosto. O texto do manifesto diz que a Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco passa pela pior seca em 100 anos, mas que a crise “se deve também e principalmente aos múltiplos, crescentes e conflitantes usos de suas águas, matas, solos e subsolos, decorrentes do modelo econômico predatório”. O texto afirma ainda que “ribeirinhos, pescadores, vazanteiros e moradores das cidades” nunca presenciaram um volume tão baixo do rio, o que se comprova até mesmo pelos níveis de reserva da barragem de Três Marias (MG), que já opera com 6% de sua capacidade, segundo dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Há crítica ainda ao fato de que a redução das vazões dos reservatórios determinadas pela Agência Nacional de Águas (ANA) tem sido a única medida de resolução do problema adotada.

Os conflitos

Para Malvezzi, este contexto pode agravar a situação já existente de conflitos pela água, já que a demanda por água cresce, ao passo que a disponibilidade diminui. "A Agência Nacional de Água, a Secretaria de Recursos Hídricos do Estado, os governadores, vão ter que repensar uma política de cuidado com os mananciais. Já chegou a se esboçar um conflito entre São Paulo e Rio de Janeiro pelo uso da água do Rio Paraíba".

O episódio mencionado por Malvezzi teve início quando, no início do ano, o governo paulista propôs que um dos rios da Bacia do Paraíba do Sul fosse interligado ao Sistema Cantareira. No entanto, o governo carioca teme os impactos da medida no abastecimento de seu estado. A Agência Nacional de Águas estuda uma forma de realizar o projeto de interligação, garantindo a segurança hídrica de todos os usuários da Bacia, que abrange 184 municípios em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Por enquanto, a única medida tomada foi um acordo com Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e União, firmado em setembro, para a redução da vazão no rio Paraíba do Sul de 190m³/s para 160m³/s. A intenção é preservar os estoques de água. A medida, porém, já causa desabastecimento em municípios cariocas.

Em 2013, o quadro já se mostrava longe do ideal. Segundo o relatório "Conflitos no Campo 2013", elaborado pela Comissão Pastoral da Terra, foram registrados 104 conflitos pela água, envolvendo mais de 31.426 famílias. É o maior número desde 2002. As regiões mais afetadas são o Nordeste, com 43,26% dos casos; o Norte, com 25%; e o Sudeste com 18,26%. Os estados que lideram os conflitos são Bahia (25,96%), Pará (16,35%), Minas Gerais (7,7%) e Rio de Janeiro (6,7%).

Os dados são mais abrangentes e mostram conflitos envolvendo água, mas não necessariamente pela ausência ou disputa deste recurso. Os dados do relatório apontam que entre as motivações para os conflitos estão: a construção de barragens e hidrelétricas (42,31% dos casos), a ação de mineradoras (29,8%), a destruição e poluição de fontes de água (14,4 %) e apropriação e impedimento de acesso à água (10,6%). São afetadas, principalmente, comunidades de pescadores, de ribeirinhos, de indígenas, de quilombolas, de pequenos agricultores e de assentados pela reforma agrária.

Segundo o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), as usinas hidrelétricas construídas até hoje no Brasil já resultaram na expulsão de mais de um milhão de pessoas. Um dos exemplos atuais citados pelo estudo é o da construção da Barragem de Berizal, na Bacia do Rio Pardo, localizada nos municípios mineiros de Taiobeiras, São João do Paraíso, Ninheira, Berizal, Indaiabira e Rio Pardo de Minas, que atingirá mais de 700 famílias.

A segunda maior causa de conflitos é a mineração, que tem relação com a primeira. O relatório informa que, em comparação a outros setores econômicos, o consumo de energia da indústria da mineração se destaca. O estudo lembra dos problemas socioeconômicos e ambientais vividos pelas populações atingidas pelas mineradoras em Minas Gerais, estado em que cinco minerodutos estão em planejamento ou implantação.

Os outros 25% dos conflitos estão ligados à ação de fazendeiros, empresas ou dos governos municipal, estadual e federal, e se intensificam principalmente no Nordeste e no Sudeste. As obras de infraestrutura do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) são classificadas como uma das principais causas. Os conflitos mais violentos estão relacionados aos portos e projetos petrolíferos. Um exemplo é Rio de Janeiro, em que já se constatam conflitos com comunidades pesqueiras das baías de Guanabara e Sepetiba.

O relatório mostra que a lógica de investir em atividades econômicas de grande impacto ambiental e baixo retorno social (como monocultivo de eucalipto, os grandes projetos de irrigação e a mineração), colabora para que mesmo regiões ricas em água e que apresentam alta pluviosidade já falem em seca. É o caso do Noroeste de Minas.

“Eu espero que, após a eleição, os eleitos reassumam essa questão. Ninguém quis tocar nem na questão da Cantareira, por causa do Alckmin, nem na questão do São Francisco por causa do governo federal e por causa do Aécio em Minas”, provoca Malvezzi.

Fenômeno paralelo

Um estudo coordenado pelos pesquisadores Eduardo Assad, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), e por Hilton Silveira Pinto, do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura da Universidade Estadual de Campinas (Cepagri/Unicamp), realizado em 2008, já apontava que a mudança climática poderia impactar o Sudeste brasileiro. Intitulado "Aquecimento global e a nova geografia da produção agrícola no Brasil", o estudo mostra que, com o aumento das temperaturas, que resulta na deficiência hídrica, a geografia da produção agrícola brasileira nas próximas décadas pode ser inteiramente modificada.

Foram avaliadas nove culturas: o café arábica, o algodão, o arroz, a cana-de-açúcar, o feijão, o girassol, a mandioca, o milho e a soja. Os resultados mostraram que com exceção da cana - que pode ter a produção dobrada - e da mandioca, todas as culturas poderiam sofrer queda em áreas de baixo risco e, consequentemente, sofrerem diminuição no valor de sua produção. A previsão é de que a cultura mais afetada seja a soja, que terá perdas que podem chegar a 40% em 2070.

Mas o café arábica também está em situação similar e deve perder até 33% da área em São Paulo e Minas Gerais devido a mudanças ambientais. A cultura deve migrar para áreas mais ao Sul do País e de altitudes maiores, para compensar a elevação da temperatura. O pesquisador Hilton Silveira diz que este fenômeno já se observa atualmente, oito anos após o estudo. A cultura está migrando para o centro e o Sul do Paraná e pode futuramente chegar ao estado de Santa Catarina e, até, ao Rio Grande do Sul. "Nós temos checado isso. No caso do café, já há indícios grandes de que não se cultiva mais café nas áreas mais quentes de São Paulo e Minas. Mas se abriram áreas novas nas regiões de altitude", aponta Silveira Pinto.

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