Por William Santos - repórter
Era domingo na Praça São Pedro. Entre os fiéis que se espremiam para ver o Papa, um grupo empunhava uma faixa que chamou a atenção de Francisco: “Uma terra, uma família”, estava escrito. A mensagem era a mesma que o pontífice levaria a cristãos, muçulmanos, judeus, hindus e outros peregrinos naquele dia. De um balcão no palácio do Vaticano, ele pediu que pessoas de diferentes religiões trabalhassem juntas, “em nome de uma ecologia integral”, para proteger o planeta, nossa “morada comum”. Foi no dia 28 de junho de 2015, mas poderia ter sido hoje.
Avanços e prioridades após a realização da ECO 92
Quando foi eleito Papa, dois anos atrás, o argentino Mario Bergoglio não tornou-se Francisco por acaso. O nome escolhido homenageia o santo de Assis, protetor dos animais e padroeiro da ecologia. Levando à risca a oração franciscana, o pontífice tem buscado ser instrumento de mudança. Em suas aparições públicas, leva um debate sobre sustentabilidade – até então pouco tocado pelos que lhe antecederam à frente da Igreja Católica – a diversos lugares do mundo.
A quatro meses da Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 21), entretanto, cabe a pergunta: a mobilização engajada do líder religioso reverberará nas disputas políticas que estão em jogo no encontro que reunirá representantes de 196 países em Paris, na França, entre os dias 30 de novembro e 11 de dezembro deste ano?
Para o cientista político Josênio Parente, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (Uece), sim. Ele diz que, no momento de crise internacional, Francisco desempenha um papel importante ao lançar um discurso propositivo para o debate em torno da ecologia.
“Ele faz uma crítica à sociedade de consumo, responsabilizando o mercado por componentes importantes da degradação do meio ambiente. Um dos temas que trouxe em sua visita à América Latina, por exemplo, foi a retomada da vida comunitária contra o consumismo. Isso logicamente vai ter um peso importante nas discussões, inclusive em relação a uma resistência de acordo por parte de alguns países, como houve em debates anteriores”, analisa.
Já Marcos Vinícius de Figueiredo, professor de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec/RJ), lembra que a COP 21 objetiva tentar substituir o Protocolo de Quioto, criando um acordo ambiental eficaz e juridicamente vinculante. Na formulação do documento, portanto, os atores centrais são os Estados.
“O Papa pode utilizar seu poder simbólico para influenciar diferentes países, especialmente nações estratégicas como o Brasil, um país em desenvolvimento, ‘megadiverso’, com grande peso nas negociações ambientais, além de maior nação católica do planeta. Porém, ainda que a sociedade civil e atores não governamentais tenham um papel crescente na política internacional contemporânea, o direito internacional ainda é feito por Estados. Assim, seu poder é apenas simbólico, limitado, restrito à influência política”, pondera.
Postura da Igreja
A atual influência diplomática do pontífice, segundo Parente, também aponta para um novo momento da Igreja como instituição. “É uma instituição aristocrata, que muda muito lentamente, mas as mudanças no mundo global estão acontecendo rápido e a Igreja tem se adaptado a essa realidade. Com a liderança dele, há uma abertura do diálogo para trazer ao debate pessoas que estavam afastadas”, considera o cientista político.
Figueiredo, por sua vez, avalia que tal mudança toma ainda mais forma na prática na medida em que a Igreja passa a associar a questão ambiental às desigualdades sociais, ao consumismo e ao atual materialismo técnico-científico.
“O Papa considerou que as causas do aquecimento global são antrópicas. Isso, de certa forma, reafirmou sua posição ao lado dos países periféricos, o que incomoda as nações mais desenvolvidas, cada vez mais cobradas por sua chamada dívida histórica com o meio ambiente. Naturalmente, tal postura coloca o pontífice na linha de frente com as facções conservadoras dos países desenvolvidos”, afirma.
Popularidade
Em alguns países, o alerta enfático de Francisco sobre o meio ambiente e suas críticas aos excessos do capitalismo têm, de fato, influenciado numa queda de popularidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma pesquisa divulgada pelo Instituto Gallup no dia 22 de julho mostra que a taxa de aprovação do argentino caiu nos últimos 12 meses, principalmente entre adultos que se identificam como conservadores.
No Brasil, por outro lado, a Igreja foi apontada como a instituição em que os brasileiros mais confiam por 53,5% dos entrevistados na mais recente pesquisa CNT/MDA, divulgada no dia 21 de julho. Segundo Marcos Vinícius Figueiredo, sinal de que a Igreja Católica tem raízes profundas na cultura brasileira que não se apagarão facilmente, mesmo diante do crescimento do movimento Evangélico, que, ainda assim, é cristão.
“Porém, suponho que o aumento da confiança dos brasileiros frente a Igreja tenha uma dimensão mais relativa do que absoluta. Ele talvez esteja mais vinculado à perda de credibilidade das instituições seculares como o sistema partidário, bem como a corrupção endêmica nos Três Poderes da República, do que propriamente a seus recentes feitos”, considera.
Se o discurso engajado de Francisco tem desdobramentos políticos, Josênio Parente salienta que tem também a função de demarcar um lugar nas disputas simbólicas com outras religiões.
“As religiões monoteístas, como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, além do liberalismo, são organizações políticas que buscam a construção de hegemonias. No caso, de um só rebanho, um só pastor. Isso tem relação com a globalização. Considerando a realidade social, então, há uma disputa velada entre essas quatro correntes – as três religiões monoteístas e o liberalismo. Nesse embate, se a Igreja (Católica) abandona o espaço, ele é ocupado pelo outro. Tem de ocupar o espaço para que sua liderança tenha prosseguimento”.
Diálogo
Entre as pessoas que militam por causas ambientais, o diálogo entre religião e meio ambiente é visto como necessário. Valquíria Lima, coordenadora executiva da Articulação no Semiárido Brasileiro (Asa Brasil), ressalta que a religião, além de trabalhar a espiritualidade, deve dialogar com que acontece no mundo.
“Se estamos vivendo um modelo de desenvolvimento que gera mais exclusão, as religiões não podem ser omissas. No momento em que o Papa toma essa decisão, deixa claro, a partir da leitura da realidade do modelo, que não traz uma sustentabilidade para todos nem apaga as questões ambientais. Nós precisamos nos posicionar e repensar um outro modelo de desenvolvimento. Ele traz com muita clareza essas questões”.
Valquíria diz que os pronunciamentos recentes de Francisco reforçam uma preocupação que já é dos ambientalistas e das organizações que defendem a preservação do meio ambiente. Na avaliação dela, contudo, ao trazer a reflexão para o campo da espiritualidade, o Papa aumenta o alcance do debate.
“É trazer essa ação, que é muito real, muito prática, para o campo da espiritualidade. É como se a Igreja chamasse as pessoas a sair dos próprios centros, olhar essa realidade de perto e tomar uma posição política”, acredita.
Exemplo dessa postura, conforme destaca, é a encíclica “Laudato si – sobre o cuidado da casa comum”, publicada no dia 18 de junho. No primeiro documento escrito integralmente como pontífice, o Papa pede que haja uma “conversão ecológica”.
“A encíclica mobiliza não só a Igreja Católica, mas as comunidades cristãs, a pensar a questão como uma preocupação comum, porque disso depende a sustentabilidade e a sobrevivência de todos no planeta. É muito importante pensar o impacto desse modelo de desenvolvimento, que tem destruído a biodiversidade e causado prejuízos na água, na terra, nos recursos naturais e nas relações entre os seres humanos”, pontua a coordenadora da Asa Brasil, rede formada por mil organizações da sociedade civil que atuam na gestão e no desenvolvimento de políticas de convivência com a região semiárida.
Expectativa
Na contagem regressiva para a aguardada COP 21, foi realizada em Paris, no dia 21 de julho, a “Cúpula das Consciências sobre o Clima”. O encontro considerou “que a crise climática não se reduz apenas às dimensões científica, tecnológica, econômica e política”, mas trata-se também de uma “crise de sentido”, ressaltou, na ocasião, o presidente francês François Hollande.
Dentre as cerca de 40 autoridades, chefes religiosos estiveram presentes, inclusive o cardeal ganense Peter Turkson, presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz e possível representante do Papa na COP 21. Ele solicitou que se tome o “caminho difícil” de uma “mudança de trajetória”.
No encontro, também foi lançado o projeto “Fé em Ação Verde”, que propõe que “as cidades de peregrinação de todas as obediências religiosas e espirituais sejam sóbrias em matéria de carbono e resilientes às mudanças climáticas”. Participam da iniciativa: Meca (Arábia Saudita), Tuba (Senegal), Lourdes (França), Fátima (Portugal) e Amritsar e Varanasi (Índia).
Para o professor de Relações Internacionais do Ibmec, o encontro sinaliza que a influência de grupos religiosos existe, mas não pode ser superestimada. “As decisões das potências-chave e dos dois maiores poluidores contemporâneos, China e Estados Unidos, nessa ordem, são de maior relevância. A primeira era bastante reticente quanto às suas responsabilidades ambientais, haja vista sua modernização tardia, ao passo que o segundo não se demonstrava disposto a sacrifícios nacionais em nome de uma causa universal”, analisa Figueiredo.
Diante deste cenário é que, segundo ele, se insere a proposta da encíclica papal: colocar os interesses da humanidade acima das vontades nacionais.
“A ausência desse compromisso com a humanidade fez com que o governo republicano de George W. Bush denunciasse o protocolo de Quioto. Em Paris, neste ano, há uma certa esperança de que os Estados Unidos, sob a administração do democrata Barack Obama, esteja mais aberto às suas responsabilidades ambientais. Caso isso venha a convergir com os interesse da China e da União Europeia, há grandes razões para otimismo quanto ao resultado da COP 21”, espera.
Francisco, aos 78 anos, também já declarou que está confiante em relação à Conferência. “Tenho muita esperança de que em Paris se chegue a um acordo fundamental, mas para isso é preciso que a ONU se envolva”, disse, durante encontro que teve com 70 prefeitos de várias cidades do mundo no dia 21 de julho.