Aqueles que fazem parte das organizações camponesas e indígenas mundo afora e todos aqueles que mantêm alguma proximidade e solidariedade com suas lutas sabem que a falta de terra e a expulsão do campo são hoje processos extremamente graves. Entretanto, um número considerável de especialistas não deixa de assegurar que a maior parte da terra continua nas mãos dos camponeses e indígenas.
O GRAIN realizou uma profunda análise das informações existentes para dar-se conta do que está acontecendo, e o resultado é muito claro: mais de 90% das e dos agricultores do mundo são camponeses e indígenas, mas controlam menos de um quarto da terra agrícola mundial. E com essa pouca terra, as informações disponíveis mostram que produzem a maior parte da alimentação da humanidade. Se o campesinato e os povos indígenas continuarem a perder suas terras, estaremos diante de processos de extermínio de povos e culturas, e o mundo perderá sua capacidade de se alimentar. Precisamos urgentemente devolver a terra às mãos dos povos do campo e lutar por processos de reforma agrária e restituição territorial que viabilizem o direito a uma vida digna e o direito a existir como povos de quase metade da humanidade e, simultaneamente, permitam assegurar melhores sistemas alimentares.
A análise está publicada no sítio do GRAIN, 10-06-2014. A tradução é de André Langer.
Na abertura do Ano Internacional da Agricultura Familiar, em 2014, José Graziano da Silva, diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), derramou-se em elogios sobre a agricultura familiar e assinalou que as famílias agricultoras trabalham atualmente a maior parte das terras agrícolas mundiais (1) – a bagatela de 70%, segundo sua equipe. (2) Em outro estudo publicado por várias agências das Nações Unidas em 2008 concluiu-se que os pequenos agricultores ocupavam 60% das terras aráveis do mundo. (3) Outros estudos chegaram a conclusões parecidas. (4) Com tais cifras, não é surpresa que os temas da reforma agrária ou da restituição territorial sequer sejam mencionados.
O assassinato de um camponês no Baixo Aguán, Honduras.
(Foto: Manu Brabo / Assembleia de Cooperação pela Paz)Se a maioria da terra de cultivo está em mãos camponesas, por que existem tantas organizações camponesas e indígenas que clamam por redistribuição de terras e reforma agrária? Porque apesar do que se diz, camponeses e indígenas não têm nem remotamente a maior parte da terra e, na realidade, em todos os lugares, o acesso à terra por parte dos povos rurais está sob ataque. De Honduras até o Quênia e da Palestina até as Filipinas, os povos foram desalojados das suas terras e vilarejos. Aqueles que resistem estão sendo presos ou assassinados. Lutas agrárias massivas na Colômbia, protestos de líderes comunitários em Madagascar, marchas nacionais de sem terra na Índia, ocupações na Andaluzia – a lista de ações é longa. Em resumo, a terra está se concentrando cada vez mais nas mãos dos ricos e poderosos e não na de camponeses e indígenas.
Em relação à produção de alimentos, ouvimos mensagens contraditórias. Nos últimos anos, cada vez mais centros acadêmicos e organismos internacionais reconheceram que mais da metade dos alimentos vem da pequena agricultura e, especialmente, da contribuição das mulheres. Mas, chegado o momento de buscar uma solução para a fome, ouve-se apenas falar em apoiar grandes concentrações de terras, a agricultura industrial e a monocultura transgênica, etc. Tudo isto porque o sistema industrial seria “mais eficiente”.
Ao mesmo tempo, nos é dito que 80% das pessoas com fome em nível mundial concentram-se em áreas rurais e muitas delas são agricultores ou trabalhadores agrícolas sem terra.
Como encontrar sentido em tudo isto? O que é verdade e o que não é? O que devemos fazer para enfrentar estes desequilíbrios? Para ajudar a responder a algumas destas perguntas, o GRAIN decidiu realizar um exame mais aprofundado destes fatos. (5) Examinamos país por país as informações disponíveis sobre a quantidade de terra realmente nas mãos do campesinato e dos povos indígenas e quantos alimentos produzem nessa terra. (6)
Os números, suas fontes e limitações e o que eles nos dizem
Ao reunir os dados, sempre que foi possível usamos as estatísticas oficiais e especialmente os censos agrícolas de cada país, complementados com o FAOSTAT (base de dados da FAO) e outras fontes da FAO quando foi necessário. Em relação ao número de pequenas propriedades ou propriedades camponesas, em geral usamos a definição que cada autoridade nacional utiliza, já que as condições destas propriedades em países diferentes e diversas regiões podem variar muito. Para os países onde não existiam definições próprias disponíveis, usamos o critério do Banco Mundial, que define como pequena propriedade ou propriedade camponesa todo estabelecimento rural menor de dois hectares.
Quando examinamos as informações, vimo-nos confrontados com várias dificuldades. Os países definem os camponeses e pequenos agricultores de diferentes formas. Não há estatísticas centralizadas sobre quem têm qual quantidade de terra. Não há bases de dados que registrem a quantidade de produção de acordo com sua origem. Além disso, fontes diferentes oferecem números muito variados sobre a quantidade de terra agrícola disponível em cada país.
Tendo isto em conta, as informações recolhidas têm significativas limitações, mas são as melhores disponíveis. O conjunto de dados que elaboramos está totalmente respaldado por referências que estão disponíveis ao público on line e fazem parte integral deste relatório. (7) No Anexo 1 fazemos uma discussão mais completa sobre os dados.
Apesar das deficiências inerentes aos dados, estamos seguros ao assinalar seis importantes conclusões:
1. Atualmente, a grande maioria dos estabelecimentos rurais do mundo é formada por pequenas propriedades camponesas e estão ficando cada vez menores.
2. Atualmente, as pequenas propriedades e os agricultores foram relegados a menos de um quarto do total da terra agrícola mundial.
3. Estamos perdendo rapidamente propriedades e agricultores em muitos lugares, ao passo que as grandes propriedades tornam-se cada vez maiores.
4. As propriedades camponesas e indígenas seguem sendo as maiores produtoras de alimentos do mundo.
5. No conjunto, os pequenos estabelecimentos são mais produtivos que os grandes.
6. As mulheres constituem a maioria do campesinato indígena e não indígena.
Muitas destas conclusões parecem óbvias, mas duas coisas nos preocupam.
Uma delas foi observar que a concentração da terra é um fenômeno mundial, inclusive naqueles países em que se supõe que os programas de reforma agrária do século XX haviam acabado com ela. Em muitos países, agora mesmo, está ocorrendo uma contra-reforma, uma espécie de reforma agrária às avessas, seja através da apropriação de terras por parte das corporações na África, do recente golpe de Estado no Paraguai impulsionado pelos empresários agrícolas, da expansão massiva das plantações de soja na América Latina, da abertura da Birmânia aos investidores estrangeiros ou da expansão para o leste da União Europeia e de seu modelo agrícola. Em todos estes processos, o controle sobre a terra está sendo usurpado dos pequenos produtores e suas famílias por elites e poderes corporativos que estão encurralando as populações em propriedades cada vez menores.
A outra fonte de alarma foi dar-nos conta de que atualmente as propriedades camponesas ocupam menos de uma quarta parte de toda a terra agrícola do mundo – ou menos de uma quinta parte, caso se excluir a China e a Índia deste cálculo. A terra nas mãos camponesas é cada vez menos, e se esta tendência persistir, não serão capazes de continuar alimentando o mundo.
Examinemos estes resultados ponto por ponto.
1. Atualmente, a grande maioria dos estabelecimentos rurais do mundo é formada por pequenas propriedades camponesas e estão ficando cada vez menores
De acordo com os dados obtidos, mais de 90% de todos os estabelecimentos rurais do mundo são “pequenos” e têm em média 2,2 hectares (Tabela 1). Caso excluirmos dos cálculos a China e a Índia – onde se localiza quase a metade das propriedades camponesas em nível mundial –, as pequenas propriedades ultrapassam os 85% de todas as propriedades de terra. Em mais de dois terços dos países do mundo, as pequenas propriedades – assim como são definidas em cada um deles – representam mais de 80% de todas as propriedades. Em apenas nove países, todos da Europa Ocidental, as propriedades camponesas são uma minoria. (8)
Devido a um conjunto de forças e fatores tais como a concentração da terra, a pressão demográfica ou a falta de acesso à terra, a maioria das pequenas propriedades foi reduzindo seu tamanho com o passar do tempo. O tamanho médio das propriedades reduziu-se na Ásia e na África. Na Índia, o tamanho médio das propriedades diminuiu mais ou menos a metade entre 1971 e 2006, aumentando o dobro o número de propriedades com uma superfície menor a dois hectares. Na China, a superfície média de terra cultivada por família caiu 25% entre 1985 e 2000 e depois começou a aumentar lentamente devido ao processo de industrialização e concentração da terra. Na África, o tamanho médio das propriedades também está diminuindo. (9) Nos países industrializados, o tamanho médio das propriedades está aumentando, mas não o tamanho das pequenas.
Tabela 1: Distribuição mundial da terra agrícola
Terra agrícola (milhões de hectares)
Número de propriedades (milhões)
Número de pequenas (milhões)
Pequenas propriedades como % do total dos estabele-cimentos
Terra agrícola em pequenas propriedades (milhões de hectares)
% da terra agrícola em pequenas propriedades
Tamanho médio das pequenas propriedades (ha)
Ásia-Pacífico
1990.2447.6420.3
93.9%689.7
34.7%
1.6China521.8200.6200.299.8%37070.9%1.8Índia179.8138.3127.692.9%71.239.6%0.6África1242.694.684.889.6%182.814.7%2.2América Latina e Caribe894.322.317.980.1%172.719.3%9.7América do Norte478.42.41.976.8%125.126.1%67.6Europa474.54237.288.5%82.317.4%2.2TOTAL5080.1608.9562.192.3%1252.624.7%2.2Notas: Todos os dados sobre a terra agrícola foram obtidas do FAOSTAT. Os dados sobre o número e tamanho dos estabelecimentos rurais foram obtidos das autoridades nacionais, cuando foi possível.2. Atualmente, as pequenas propriedades e agricultores foram relegados a menos de um quarto do total da terra agrícola mundial
O Quadro 1 revela outra realidade crua: as pequenas propriedades somam, no total, menos de 25% da terra agrícola em nível mundial. Caso excluirmos a Índia e a China novamente, a realidade é que as propriedades camponesas controlam menos da quinta parte das terras mundiais: 17,2% para ser preciso.
Índia e China merecem especial atenção devido ao grande número de propriedades e ao grande número de camponeses que vivem ali. Nestes dois países, as pequenas propriedades ainda ocupam uma porcentagem relativamente alta das terras de cultivo. Ao colocar os números num gráfico podemos ver mais claramente a disparidade entre o número de pequenas propriedades e a superfície que elas ocupam. (Gráfico 1)África | Argélia, Angola, Botsuana, Congo, República Democrática do Congo, Guiné, Guiné-Bissau, Lesoto, Madagascar, Mali, Marrocos, Moçambique, Namíbia e Zâmbia | América | Chile, Guiana, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela | Ásia | Irã, Jordânia, Kirguizistão, Líbano, Malásia, Nova Zelândia, Catar, Turcomenistão, Iêmen | Europa | Bulgária, República Tcheca e Rússia Fonte: Dados sobre distribuição de terras reunidos pelo GRAIN. Quadro 2: Algumas palavras sobre a África Como se pode ver na Tabela 1, descobrimos que as pequenas propriedades na África representam 90% de todas as propriedades agrícolas e, no entanto, possuem menos de 15% da superfície agrícola total. Nossos dados contradizem a afirmação frequente de que a maior parte da terra agrícola na África é trabalhada por camponeses. (10) A colheita de milho em Narok, no Quênia: se todas as instalações agrícolas do país tivessem a mesma produtividade que atualmente têm as propriedades camponesas do país, a produção agrícola do Quênia duplicaria. (Foto: Ami Vitale/FAO)
Os dados sobre quem utiliza a terra na África são difíceis de obter. A maior parte dos sistemas tradicionais de posse da terra na África foi seriamente erodida e inclusive desmantelada desde os tempos coloniais. Em muitos países a propriedade da terra passou à união ou foi concedida a empresas de agronegócios ou a chefes locais. Isto tem profundas implicações na hora de classificar a terra e dar conta de seu uso. (11) Adicionalmente, há o problema de definir o que constitui terra agrícola. Em muitos casos, os governos africanos definem “terra agrícola” como a superfície que está sendo utilizada por cultivos em um período de tempo determinado, deixando de fora grandes superfícies de terras utilizadas para pastoreio estacional e transumante. Além disso, muitas vezes se exclui a terra de pousio, aquela em sistemas de cultivos itinerantes, e a terra usada pelas comunidades que cultivam o interior de zonas de florestas. (12) Ao contrário, a FAO, em sua definição de terra agrícola, inclui as pastagens permanentes, as savanas e as terras semeadas com cultivos perenes. Como consequência, a maioria dos censos nacionais na África registra apenas uma fração da superfície agrícola registrada pela FAO – menos da metade, no que diz respeito a toda a região. O método de estimativa da FAO é mais adequado para medir o uso da terra na agricultura, razão pela qual usamos os dados do FAOSTAT para estabelecer a quantidade de terra agrícola na África. Onde se supõe que a terra é do Estado – e não se contabiliza como cultivada ou utilizada pelos camponeses da localidade – existem as condições para a apropriação de terras por parte dos grandes agricultores e empresas, com a desculpa de que eles desenvolverão as terras não cultivadas. Por lei natural, no entanto, essas terras pertencem às comunidades locais que, muitas vezes, as utilizam de forma ativa. Uma vez que usamos, na medida do possível, os dados de censos nacionais proporcionados pelos governos para calcular a quantidade de terra nas mãos dos pequenos agricultores, é provável que tenhamos subestimado a situação na África. É bem possível que os pequenos agricultores utilizem mais que 15% da terra da região mostrada pelos nossos dados – mas o acesso das comunidades a esta terra não está garantido e podem perdê-la a qualquer momento. 3. Estamos perdendo rapidamente propriedades e agricultores em muitos lugares, ao passo que as grandes propriedades tornam-se cada vez maiores Em quase todas as partes, as grandes propriedades foram acumulando mais terras durante a última década, expulsando muitos pequenos e médios agricultores. As estatísticas são dramáticas. As informações oficiais a que tivemos acesso estão resumidas no Quadro 3. A situação parece especialmente dramática na Europa, onde décadas de políticas agrícolas da União Europeia significaram a perda de milhões de propriedades. Na Europa Oriental, o processo de concentração da terra começou formalmente depois da queda do muro de Berlim e a expansão da União Europeia para o leste. Milhões de agricultores foram expulsos devido à abertura dos mercados da Europa Oriental aos produtos subsidiados do Ocidente. Na Europa Ocidental, por outro lado, as políticas agrícolas, junto com os megaprojetos de infraestrutura, transporte e projetos de urbanização, tiveram um impacto desastroso. Atualmente, as grandes propriedades representam menos de 1% de todas as propriedades da União Europeia como um todo, mas controlam 20% da terra de cultivo. (13, 14) Um estudo recente da Coordenação Europeia da Via Campesina e da Aliança Mãos Fora da Terra revelou que na União Europeia as propriedades de 100 hectares ou mais, que representam apenas 3% do número total de estabelecimentos rurais, controlam atualmente 50% da terra cultivada. (15) Quadro 3: Perda de propriedades, concentração das terras ÁfricaApesar de que não encontramos estatísticas oficiais sobre a evolução do tamanho das propriedades e da concentração de terras na África, numerosos trabalhos de pesquisa indicam que, na grande maioria dos países, as propriedades camponesas estão se tornando cada vez menores devido ao fato de que, pela pressão demográfica, os agricultores tiveram que compartilhar as terras existentes entre mais pessoas, já que não tiveram acesso a novas terras. (16)Ásia-Pacífico▪Entre 1980 e 2005, o Japão perdeu 60% das suas propriedades menores de dois hectares. (17)
▪ A Austrália registra 22% menos propriedades entre 1986 e 2001 e, depois, 15% a menos entre 2001 e 2011. (18) ▪ Na Nova Zelândia, o número de propriedades foi decrescendo constantemente desde os anos 1990. As propriedades mais afetadas são as de tamanho médio, ao passo que o número de estabelecimentos rurais de tamanho pequeno (menos de 40 hectares) e grande (mais de 800 hectares) aumentou aproximadamente 35% em cada caso, entre os anos 1999 e 2002. (19) ▪ Na Indonésia, país que foi transformando ativamente superfícies de florestas em terras de uso agrícola, o número de pequenas propriedades aumentou em 75% entre 1963 e 1993, mas a superfície de terras em suas mãos aumentou menos de 40% já que as terras desflorestadas recentemente foram convertidas em grandes plantações de palma. Entre 1993 e 2008, o número de propriedades de menos de 0,5 hectare aumentou em 50%, o que indica que os pequenos agricultores estão sendo pressionados para dividir suas terras. (20) ▪ No Azerbaijão, 20% de todas as propriedades desapareceram entre 2000 e 2011. (21) ▪ Em Bangladesh, entre 1996 e 2005, o número de propriedades aumentou 23%, mas o número de famílias rurais sem terra disparou 44%. (22) Europa (23)▪ Na Europa Ocidental, Bélgica, Finlândia, França, Alemanha e Noruega perderam, desde os anos 1970, cerca de 70% de todas as suas propriedades e em alguns casos a perda se acelerou.
▪ As coisas não estão melhores na Europa Oriental. De 2003 a 2010, Bulgária, Estônia, República Tcheca e a Eslováquia perderam mais de 40% das suas propriedades. ▪ Somente a Polônia perdeu quase um milhão de agricultores entre 2005 e 2010. ▪ Em toda a União Europeia, mais de seis milhões de estabelecimentos rurais desapareceram entre os anos 2003 e 2010, ficando o número total de propriedades quase no mesmo nível da quantidade existente em 2000, antes da inclusão de 12 novos membros, que agregaram 8,7 milhões de agricultores. América Latina▪A Argentina perdeu mais de um terço das suas propriedades nas duas décadas compreendidas entre 1988 e 2008; só entre os anos 2002 e 2008 a diminuição foi de 18%. (24)▪ Na década compreendida entre 1997 e 2007, o Chile perdeu 15% de todas as suas propriedades. As propriedades de maior tamanho, com propriedades de mais de 2.000 hectares, aumentaram 30% em número, mas duplicaram seu tamanho médio de 7.000 para 14.000 hectares por propriedade. (25) ▪ Na Colômbia, os pequenos agricultores perderam cerca da metade das suas terras a partir de 1980. (26) ▪ No Uruguai, só de 2000 para cá o número de propriedades caiu 20% afetando, especialmente, as pequenas propriedades, que diminuem seu número em 30% e perderam 20% da terra. (27) Estados UnidosOs Estados Unidos perderam 30% de todas as suas propriedades nos últimos 50 anos. No entanto, o número de propriedades muito pequenas quase triplicou. Entretanto, o número de propriedades muito grandes mais do que quintuplicou. (28) Em consequência, existem mais estabelecimentos rurais muito pequenos e muito grandes, mas cada vez menos propriedades de tamanho médio. (29)É difícil obter informações oficiais sobre perdas de propriedades e concentração de terras na África e na Ásia e a situação aí é menos clara na medida em que, com frequência, estão agindo fatores e forças contraditórios. Em muitos países com altas taxas de crescimento populacional, o número de pequenas propriedades está aumentando na medida em que elas são divididas entre os filhos. Ao mesmo tempo, a concentração da terra está aumentando. A rápida expansão de grandes propriedades produtoras de matérias-primas industriais é um fenômeno relativamente recente na África, ao passo que aconteceu durante décadas em muitos países da América Latina (por exemplo, a soja no Brasil e na Argentina) e em alguns da Ásia (por exemplo, a palma na Indonésia e na Malásia). O Anexo 2 e o Gráfico 3 oferecem antecedentes e dados para alguns poucos cultivos industriais importantes. A conclusão é indiscutível: no mundo, mais e mais terras agrícolas férteis são ocupadas por grandes propriedades que produzem matérias-primas industriais para exportação, pressionando os pequenos produtores a uma sempre decrescente participação sobre a terra agrícola mundial. A invasão das megapropriedades Por que a agricultura camponesa está sendo encurralada de forma crescente a uma fração cada vez menor das terras agrícolas mundiais? Existem muitos fatores e forças complexas em jogo que explicam os processos de deslocamento e de expulsão de famílias, comunidades e povos do campo. Um fator, sem dúvida, é a urbanização e a ocupação de terras agrícolas férteis pelo cimento, com a finalidade de atender às necessidades das cidades em expansão e sua demanda de transporte. Outro fator é a florescente expansão da indústria extrativa (mineração, petróleo, gás e, ultimamente, o fracking), do turismo e dos projetos de infraestrutura – e a lista continua. A esta tendência soma-se outro fenômeno recente: a nova onda de monopolização de terras. Agências como o Banco Mundial estimaram que entre os anos 2008-2010, ao menos 60 milhões de hectares de terras agrícolas férteis foram arrendadas ou vendidas para investidores estrangeiros para a execução de projetos agrícolas de grande escala, mais da metade delas na África. (34) Estes novos projetos agrícolas em grande escala desalojaram um número incalculável de camponeses, pastores e povos indígenas de seus territórios. (35) No entanto, ninguém parece ter muita clareza sobre a quantidade de terra que mudou de dono em decorrência destes negócios durante os últimos anos. Os dados, que possivelmente são centenas de milhões de hectares de terras agrícolas arrebatados das comunidades rurais, ainda não refletem nas estatísticas oficiais de que dispusemos para este estudo. Outra forma de observar a distribuição da terra é através do Índice de Gini, uma ferramenta estatística que vai de 0 (que indica a igualdade perfeita) até 1 (que indica a desigualdade total). Por exemplo, quando este índice é calculado para a distribuição da renda, os países com índices de Gini acima de 0,5 são considerados “altamente desiguais”. O GRAIN reuniu dados do Índice de Gini para a distribuição de terras agrícolas em mais de 100 países. (36) A maioria deles tem um Índice de Gini acima de 0,5, muitos ultrapassam 0,8 e alguns, inclusive, ultrapassam 0,9. Nas Américas, todos os países para os quais encontramos informações, têm um índice acima de 0,5 e a maioria deles chega a 0,8-0,9. Na Europa, dos 25 países com informações disponíveis, apenas três têm Índice de Gini abaixo de 0,5. Quando os dados estiveram disponíveis por mais de um ano, a tendência mais comum é que o índice aumente, indicando que a desigualdade sobre as terras é crescente.
4. As propriedades camponesas e indígenas seguem sendo as maiores produtoras de alimentos do mundo País Produção de alimentos em pequenas propriedades versus quantidade de terra que ocupam Bielorússia Com 17% da terra, os pequenos agricultores produzem: 87,5% das frutas e bagas; 82% das batatas; 80% das hortaliças e 32% dos ovos. (38) Botsuana As pequenas propriedades são 93% de todos os estabelecimentos agropecuários, têm menos de 8% da terra agrícola e produzem: 100% do amendoim; 99% do milho; 90% do milho miúdo; 73% do feijão e 25% do sorgo. (39) Brasil 84% dos estabelecimentos rurais são pequenos e correspondem a 24% da área total ocupada por estabelecimentos rurais, e produzem: 87% da mandioca; 69% do feijão; 67% do leite de cabra; 59% dos suínos; 58% do leite de vaca; 50% das aves; 46% do milho; 38% do café; 33,8% do arroz e 30% dos bovinos. (40) América Central Com 17% da terra agrícola, os pequenos agricultores produzem 50% de toda a produção agrícola. (41) Chile Em 1997, os pequenos agricultores eram donos de 6% da terra e produziam: 51% das hortaliças; 40% dos cultivos extensivos; 26% dos cultivos industriais (beterraba açucareira, calêndula, colza); 23% das frutas e uvas; 22% dos cereais e 10% das pastagens. (42) Cuba Com 27% da terra, os pequenos agricultores produzem: 98% das frutas; 95% do feijão; 80% do milho; 75% dos suínos; 65% das hortaliças; 55% do leite de vaca; 55% dos bovinos e 35% do arroz. (43) Ecuador Quase 56% dos agricultores são pequenos e têm menos de 3% da terra, mas produzem: mais da metade das hortaliças; 46% do milho; mais de um terço dos cereais; mais de um terço dos legumes; 30% das batatas e 8% do arroz. (44) El Salvador Com apenas 29% da terra, os pequenos agricultores produzem: 90% do feijão, 84% do milho e 63% do arroz, os três alimentos básicos. A agricultura de quintal, inclusive com superfícies agrícolas menores, provê 51% dos suínos, 20% das aves de quintal e a maior parte das frutas tradicionais. (45) Hungria As pequenas propriedades controlam 19% da terra e obtêm 25% da margem bruta padrão total do setor agrícola. (46) Cazaquistão Um pouco mais de 97% das propriedades são pequenas e operam 46% da terra, produzindo: 98% das frutas e bagas; 97% do leite; 95% das batatas; 94% dos melões; 94% das hortaliças; 90% da carne; 78% da beterraba açucareira; 73% da calêndula; 51% dos cereais e 42% dos ovos. (47) Quênia Em 2004, com apenas 37% da terra, as pequenas propriedades produziram 73% da produção agrícola. (48) Romênia As propriedades familiares são 99% de todas as propriedades e têm 53% da terra, com uma média de 1,95 hectare/propriedade. Elas têm: 99% das ovelhas; 99% das abelhas; 90% do gado; 70% dos suínos e 61% das aves de quintal. (49) Rússia As pequenas propriedades têm 8,8% da terra, mas participam com 56% da produção agrícola, incluindo: 90% das batatas; 83% das hortaliças; 55% do leite; 39% da carne e 22% dos cereais. (50) Tajiquistão As pequenas propriedades têm 45% da terra e participam com 58% de toda a produção agrícola. (51) Ucrânia Os pequenos agricultores trabalham 16% da terra agrícola, mas produzem 55% da produção agrícola, incluindo: 97% das batatas; 97% do mel; 88% das hortaliças; 83% das frutas e bagas e 80% do leite. (52) Se os pequenos agricultores têm tão pouca terra, como podem produzir a maioria dos alimentos em tantos países? Uma razão é que as pequenas propriedades tendem a ser mais produtivas que as grandes, como explicaremos na seção seguinte. Outro fator é esta constante histórica: as pequenas propriedades, ou propriedades camponesas, priorizam a produção de alimentos. Elas tendem a centrar-se no mercado local e nacional e em suas próprias famílias. A maior parte do que produzem não integra as estatísticas nacionais de comércio. No entanto, chega a quem necessita: os pobres rurais e urbanos. As grandes propriedades empresariais, por outro lado, tendem a produzir matérias-primas e se centram nos cultivos de exportação, muitos dos quais não são para a alimentação humana. Estes incluem cultivos para alimento animal, biocombustíveis, produtos da madeira e outros cultivos não alimentares. O primeiro objetivo destas propriedades empresariais é o retorno sobre o investimento, que é maximizado com baixos níveis de gastos e, portanto, muitas vezes implica um uso menos intensivo da terra. A expansão de grandes plantações de monoculturas, como se discutiu anteriormente, faz parte deste quadro. As grandes propriedades empresariais muitas vezes têm, além disso, consideráveis reservas de terras não utilizadas enquanto as terras que atualmente cultivam ou pastoreiam não se esgotarem. Os pequenos agricultores não são apenas a principal fonte de alimentos do presente, mas também do futuro. As agências internacionais de desenvolvimento estão nos advertindo constantemente para o fato de que necessitaremos o dobro de alimentos nas próximas décadas. Para isso, via de regra nos recomendam uma combinação de liberalização do comércio e dos investimentos além de novas tecnologias. Entretanto, isso criará somente mais desigualdade. O verdadeiro desafio é devolver o controle e os recursos aos camponeses e povos indígenas e anunciar políticas de apoio. Em um estudo recente sobre pequenos agricultores e agroecologia, o Relator Especial das Nações Unidas para o Direito à Alimentação conclui que a produção mundial de alimentos poderia duplicar em uma década caso fossem implementadas políticas corretas relacionadas à agricultura camponesa e tradicional. Revisando a pesquisa científica disponível atualmente ele mostra que as iniciativas agroecológicas dos pequenos agricultores já produziram um aumento de 80% no rendimento médio dos cultivos em 57 países em desenvolvimento, com uma média de crescimento de 116% para todas as iniciativas africanas avaliadas. Outros projetos recentes realizados em 20 países africanos preveem uma duplicação nos rendimentos dos cultivos em um curto período de tempo de apenas três a 10 anos. (53) Então, o que é preciso perguntar é o seguinte: quantos alimentos a mais poderiam ser produzidos, já agora, se as e os camponeses tivessem acesso a mais terras e pudessem trabalhar num contexto de políticas de apoio e não sob as condições de verdadeira guerra que enfrentam atualmente? 5. As pequenas propriedades não apenas produzem a maior parte dos alimentos, mas que, além disso, são as mais produtivas |