Depois de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José, Dona Inácia concluiu: “Dignai-vos ouvir nossas súplicas, ó castíssimo esposo da Virgem Maria, e alcançai o que rogamos. Amém.”
Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição, que fazia as tranças sentada numa rede ao canto da sala, interpelou-a:
- E isto chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você fazer tanta novena...
Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:
- Tenho fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar até em abril.
O céu transparente de Quixadá narrado por Rachel de Queiroz se deixou encobrir por densas nuvens em pleno mês de março. Pelos prognósticos da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), 2015 será um ano de seca no Sertão Central, a 169 quilômetros de Fortaleza. Apesar das previsões de poucas chuvas para o Ceará, o sertanejo mantém a esperança de que as nuvens que deixavam o céu bonito para chover são um sinal de que a estiagem não castigará o nordestino. E de que o cenário deste ano será diferente do de um século atrás quando a chamada Seca do 15 deixou milhares de nordestinos à mercê da fome e da miséria.
O livro O Quinze, o primeiro da carreira da escritora cearense Rachel de Queiroz, narra histórias fictícias baseadas no sofrimento real de quem perdeu tudo por causa da seca de 1915, uma das mais devastadoras da história. Mas assim como a personagem Dona Inácia, o sertanejo segue mantendo a fé e rezando para São José, padroeiro do Ceará. Entre os nordestinos há a crença de que se chover no dia 19 de março, dia do santo, o “inverno” será bom – e haverá chuva até maio.
“Você sabe por que, nós, do sertão, ficamos velhos cedo?”, indaga o aposentado Ribamar Lima, 66 anos. “É de fazer careta olhando para o sol para ver se vai chover. Aí engelha tudo”. Ribamar é um dos profetas da chuva, grupo de sertanejos cearenses que se reúne todos os anos em Quixadá e faz prognósticos do tempo baseados na observação de elementos da natureza. “Se as formigas caminham de uma área baixa para uma alta, é sinal de que ali vai alagar. Mas se os pássaros fazem ninho no chão, não vai chover”, ensina Ribamar, segundo o que aprendeu com o pai.
Apesar da seca que assola o Nordeste há três anos e da previsão da Funceme de manutenção desse cenário, lá estava ela: a chuva. Entre o fim de fevereiro e o início de março, havia chovido durante vários dias em quase todas as regiões do Ceará. E o agricultor, aproveitando a terra úmida, já começava a preparar o terreno ou plantava milho, feijão e a palma que servirá de alimento para o gado no “verão”. Às primeiras gotas de água, como que por milagre, a vegetação do semiárido, antes cinza, explode em tons exuberantes de verde.
Mesmo diante dessas chuvas, não há como prever como será o restante da quadra chuvosa, que começa em fevereiro e vai até maio. A Zona de Convergência Intertropical vem mudando a dinâmica do Oceano Atlântico e trazendo chuvas regulares para o estado. Esse movimento, no entanto, também pode sofrer alterações. “Ainda não temos indicações seguras de que as mudanças no Atlântico vão persistir. Desejamos que elas continuem como estão e tragam mais chuvas para recarregar nossos reservatórios”, explica o meteorologista Raul Fritz, da Funceme.
“Não confunda chuvas com inverno”, alerta o profeta Ribamar Lima. No encontro realizado em janeiro, a maioria dos profetas e profetizas disse que o inverno (termo usado pelo cearense para se referir à quadra chuvosa) não seria suficiente para encher os açudes.
Até o momento, eles estão certos. Os 149 açudes monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) tinham, juntos, até o dia 9 de março, apenas 19% da capacidade total. Alguns deles chegaram a zero. É o caso do Açude Carnaubal, que abastece o município de Crateús, a 355 quilômetros da capital, Fortaleza.
No Ceará, 70% da água dos reservatórios são usados pela agricultura. Para especialistas, trata-se de uma “injustiça hídrica” que só será revertida quando o governo priorizar a destinação da água à população – e não aos setores produtivos.
Apesar das dificuldades devido à escassez de água e do acesso desigual ao recurso, a segurança hídrica é apenas um dos pontos importantes para que o sertanejo crie raízes e permaneça no semiárido. A integrante da coordenação estadual da Articulação no Semiárido (ASA) Odaléa Severo acredita que é preciso garantir ainda o acesso à terra e formas de estocar alimentos para pessoas e animais. “Seca não se combate. É preciso criar mecanismos para viver bem no semiárido”, defende.
Mas antes de desenvolver formas de conviver com o semiárido, o sertanejo foi obrigado a migrar em busca de melhores condições de vida. A história das secas no Ceará é marcada pela figura do retirante que, no início do século 20, foi usado como mão de obra barata e foi alvo de ações higienistas e de isolamento em áreas que ficaram conhecidas como campos de concentração.
Na luta por uma convivência harmoniosa com os efeitos da seca, muitas obras já foram feitas com o intuito de levar água para a população. Desde o início do século passado, o Poder Público mantém órgãos para realização de grandes obras e açudes – que serviam mais a interesses públicos que ao sertanejo pobre. Hoje, 106 anos após a criação do Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), o órgão espera por uma reestruturação e pela renovação do quadro de pessoal – formado, em sua maioria, por servidores prestes a se aposentar.
No último dia 5 de março, os técnicos que mantinham uma estrutura de poços e bombas para a retirada de água do lençol freático decretaram o fim dos trabalhos. Eles retiravam os equipamentos e as tubulações que sugavam o pouco que havia restado do reservatório Carnaubal, em Crateús. Em anos anteriores, o local onde os canos estavam instalados estaria submerso a, pelo menos, 10 metros de profundidade.
“Quando você vê isso tudo seco é que você aprende a valorizar a água”, confessa o técnico agrícola Wanderley Alves, que trabalha na Secretaria da Agricultura de Crateús.
Os técnicos mal tiveram tempo de finalizar a retirada dos equipamentos e a esperança do sertanejo veio de novo em forma de água: a chuva.
Técnicas para armazenar água e produzir alimentos ajudam a viver no Semiárido
Nova Russas - Moradores convivem com período de seca na comunidade rural de Irapuá. Na foto, a plantação do agricultor João Pinto, 52 anos Fernando Frazão/Agência Brasil
A solução para reduzir os impactos negativos da seca está no próprio Semiárido. É o que demonstram diversas famílias e comunidades cearenses que conseguem fazer bom uso dos recursos que ficam escassos nos meses de estiagem. E muita coisa é feita ali, ao lado das casas.
O agricultor João Firmino, 85 anos, desceu a serra de Baturité, no centro-norte do Ceará, na década de 1950 para viver no Sertão Central (historicamente considerada a área mais árida do estado) e conta que, naquela época, não faltava serviço. Para ter água em casa, entretanto, era preciso sair às duas da madrugada em direção a um açude.
Firmino vive na comunidade de Bom Jardim, em Quixadá, há 25 anos. Hoje, ao lado da cisterna-calçadão (que capta água por meio de um “calçadão” construído ao lado do reservatório), ele fica admirado quando a filha Lourdes, 41 anos, pega um balde e retira água de uma pequena abertura. “É muita água, graças a Deus.” As chuvas que caíram em Quixadá entre o final de fevereiro e o início de março praticamente encheram a cisterna de 52 mil litros, cuja água é utilizada para irrigar a produção de frutas, hortaliças e grãos. Na frente da casa, outra cisterna capta água da chuva pelas calhas para consumo familiar.
A agricultora Lourdes Lopes Alves seguiu os passos dos pais e é quem hoje mantém o quintal produtivo da família. De lá, saem não só os alimentos que a família consome. Ela reúne o excedente para vender na feira em Quixadá. Além disso, produz e vende um bolo feito com o milho colhido em casa.
A segurança hídrica é apenas um dos muitos pontos importantes da convivência com o Semiárido. Odaléa Severo, integrante da coordenação estadual da Articulação no Semiárido (ASA), defende que o acesso à terra e a estocagem de alimentos para as pessoas e para os animais são outros meios de manter as famílias sertanejas em suas terras.
“Seca não se combate. É preciso criar mecanismos para viver bem no Semiárido. Experiências como essa mostram que isso é possível. Estamos rompendo com um paradigma de combate à seca que foi repercutido ao longo da história.”
Nova Russas - Moradores convivem com período de seca na comunidade rural de Irapuá. O agricultor João Pinto, 52 anos, mantém uma plantação e cria galinhas para sustento da família. Fernando Frazão/Agência Brasil
Em Nova Russas, na região dos Inhamuns (a 239 quilômetros de Quixadá), a comunidade Irapuá é uma demonstração do potencial do Semiárido. Lá, os produtores se reuniram em associações para organizar o trabalho, que envolve a produção de frutas e hortaliças, de artesanato, de aves e de mel de abelha. O próximo passo da comunidade é conseguir um selo que comprove a excelência do trabalho na produção orgânica de mel. Além disso, os apicultores aguardam a próxima florada, resultado das chuvas recentes, para colocar em funcionamento o novo entreposto – local em que o mel é beneficiado para chegar ao consumidor.
A expectativa para as primeiras produções no novo local é um pouco menor. Antes das chuvas, quando a água estava escassa e a temperatura era alta, as abelhas deixaram mais da metade das 320 colmeias de Irapuá. Atualmente, os apicultores contam com, aproximadamente, 150 colmeias. Mesmo assim, o presidente da Associação Agroecológica de Certificação Participativa dos Inhamuns (Acep), Vicente Pinto de Carvalho Neto, está otimista. Ele estima que, em abril, já haverá mel e que o número de colmeias voltará a crescer. “Como choveu, as abelhas que foram embora voltam, trazem outras e se reproduzem.”
Com as chuvas de fevereiro e março, a cisterna de enxurrada (que capta água diretamente do solo e faz duas filtragens antes de ser armazenada) do quintal do agricultor João Pinto, 52 anos, ficou praticamente cheia. Mesmo assim, ele não deixou de ficar atento ao bom uso da água. Uma tecnologia que ajuda no uso sustentável do recurso é o chamado canteiro econômico. Trata-se de um espaço de nove metros quadrados onde a irrigação se dá de baixo para cima, por meio de uma tubulação com furos que passa por baixo da terra. A água é colocada por uma abertura e distribuída na terra pelos furos. João estima que o canteiro precise de dez litros de água, enquanto espaços convencionais cheguem a consumir até 40 litros de água.
Na comunidade de Irapuá, a produção de algodão agroecológico é a principal fonte de renda dos agricultores que trabalham com o manejo ecológico, segundo o presidente da Associação dos Produtores da Agricultura Familiar (Apaf), Antônio Giovane Pinto de Carvalho. No quintal de João Pinto, as primeiras sementes já foram plantadas e as plumas devem ser colhidas entre junho e julho. Uma empresa estrangeira com sede no Brasil adquire a produção orgânica cearense e já apresentou aos agricultores a meta de comprar 4 mil quilos de pluma de algodão. Um grande desafio para Irapuá, que produziu no ano passado 400 quilos. Além dos agricultores da comunidade, segundo o presidente da Apaf, há cerca de 60 trabalhadores na região dos Inhamuns certificados para produzir algodão agroecológico e mais 50 interessados em trabalhar dentro dessa perspectiva.
Com autonomia para decidir o que plantar e acompanhamento para saber trabalhar com recursos escassos em momentos de seca, o sertanejo não precisa sair de sua terra, avalia o técnico agrícola da Cáritas de Crateús, Edmar Filho. Para ele, o Poder Público tem muito o que aprender com os sertanejos.
“Existe uma troca de conhecimentos, de técnicas de convivência com o semiárido, entre nós, técnicos, e as comunidades que ainda não usam essas técnicas. Elas [as técnicas] são bastante disseminadas entre as entidades que acompanham as comunidades e esperamos que sejam mais disseminadas ainda entre os governos. O Poder Público tem que vir no campo e ver o que os agricultores estão fazendo”, defende.
Isolamento de retirantes em "campos de concentração" marcou secas no Ceará
Estiagem no reservatório conhecido como Açude da Pista, que abastecia moradores da comunidade Engano, no distrito de Riacho Verde, em Quixadá, Sertão Central do Ceará Fernando Frazão/Agência Brasil
O agricultor Vicente Pinto de Carvalho Neto, morador da comunidade Irapuá, em Nova Russas, conta que já morou no Rio de Janeiro, mas que nunca pensou em deixar o Ceará para sempre. “A gente nunca esquece a terra seca.”
Os longos períodos de estiagem no Sertão nordestino vieram, durante muitos anos, acompanhados da figura do retirante. Em geral, famílias inteiras se deslocavam em direção às capitais, fugindo das consequências da seca.
Dois marcos históricos mudaram as condições de sobrevivência do retirante que vai para a cidade, especialmente Fortaleza, em busca de melhores condições de vida: a Grande Seca de 1877 e a criação da Inspetoria de Obras Contra as Secas (Iocs).
O historiador José Weyne, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), explica que a seca de 1877 fez surgir um projeto político que usava os retirantes como mão de obra para a realização de obras públicas. “A intenção era tentar equiparar o Ceará com o Centro-Sul em termos de progresso. Foram construídas pontes, igrejas, escolas.
Com a seca e o sertanejo disponível para o trabalho, passou-se a usar a mão de obra como contrapartida ao socorro prestado pelo governo aos retirantes. Então, era importante que eles migrassem.” O projeto foi chamado de Pompeu-Sinimbu por conta dos nomes dos agentes políticos responsáveis por elaborá-lo e executá-lo: senador Pompeu e Visconde de Sinimbu.
A criação, em 1909, da Iocs, precursora do atual Departamento de Obras Contra as Secas (Dnocs), muda esse panorama. Segundo o professor José Weyne, as elites decidem reformular o projeto de desenvolvimento de forma que as obras públicas fossem executadas pela Iocs em períodos fora da seca, o que faz com que a mão de obra do retirante não seja mais necessária e, em consequência, ele seja indesejado na cidade.
Na Seca do 15, o governo já não permitia que os migrantes circulassem pela área central de Fortaleza. Os retirantes passaram, então, a ser colocados em áreas periféricas da cidade, em locais cercados que ficaram mais conhecidos como campos de concentração.
“Essa prática de isolar as pessoas ocorria predominantemente em Fortaleza. Ainda havia resquícios das comissões de socorro, que destinavam recursos para o sustento dessas pessoas, mas elas não podiam circular pela cidade. Ficavam aglomeradas em condições impróprias para morar, sem higiene, e com condições alimentícias precárias. As condições de segurança eram péssimas e havia a exploração sexual de mulheres e crianças, inclusive pelos próprios encarregados dos socorros públicos”, explica o historiador.
Nos períodos de seca que se seguiram após 1915, o retirante passou a migrar para fora do estado. Segundo Weyne, o governo do Ceará fornecia a passagem para que eles saíssem da região. “Esse indivíduo que foge da fome na região vai ser malvisto no Sul e no Norte, vai ser tratado como pária. Isso levará a representações de que a população do Nordeste é inferior e subalterna, de que, por ser migrante, vai perturbar a ordem das cidades.”
No Ceará, acesso à água é desigual
Crateús - Moradores convivem com problemas de abastecimento desde o fim das águas do Açude Carnaubal e da Barragem do Batalhão (Fernando Frazão/Agência Brasil)Fernando Frazão/Agência Brasil
A aposentada Maria do Socorro Cabral, 67 anos, mora há mais de meio século em frente à antiga estação ferroviária localizada no centro de Quixadá. Nos últimos quatro anos, em que o Ceará convive seguidamente com a estiagem, ela nunca deixou de ter acesso à água. A casa tem uma caixa d'água de 4,1 mil litros. “Para quem tem caixa, não falta água e praticamente todas as casas aqui perto têm caixa”, destaca.
No auge dos períodos de seca no início do século passado, a estação de trem de Quixadá serviu como ponto de saída para os sertanejos que fugiam da fome e da miséria rumo a Fortaleza. Fernando Frazão/Agência Brasil
No auge dos períodos de seca, a estação ferroviária funcionava como ponto de saída para os sertanejos que fugiam da fome e da miséria rumo a Fortaleza. Há pelo menos um ano e meio, apenas composições de carga chegam e partem do local.
Em vez de trens, são os carros-pipa que ficam parados ao longo da estação ferroviária. Eles atuam sob a coordenação do Exército Brasileiro, levando água para as localidades de forma emergencial. A comunidade de Engano, no distrito de Riacho Verde, depende totalmente dos carros-pipa, mas eles circulam pouco por lá. Segundo Paulo Sérgio Victor de Sousa, morador do local, o caminhão só aparece quatro vezes por mês. E os 12 mil litros despejados de cada vez na cisterna da casa de farinha, de onde é feita a distribuição para os moradores, não são suficientes para as mais de cem famílias que moram no local.
Quixadá - A dona de casa Ana Cleide Ancelmo da Silva, 35, viúva, mora com sua mãe e sete filhos na comunidade Engano, no distrito de Riacho Verde Fernando Frazão/Agência Brasil
Em uma tarde de terça-feira, a agricultora Ana Cleide Anselmo da Silva, 35 anos, via a louça se acumular na pia. A última vez em que a cisterna da casa havia recebido água tinha sido por iniciativa própria, quando ela gastou R$ 150 para pagar o transporte da água por um carro-pipa particular. A vasilha do Spike, o cachorro da família, também estava vazia. Ana Cleide mora longe da casa de farinha e já não tem mais o carrinho de mão com o qual trazia água para casa. Agora, depende da água da casa vizinha, que, por sua vez, também depende de carros-pipa.
O prefeito de Quixadá, João Hudson, admite que o acesso à água está mais difícil nos distritos do município, onde os açudes menores estão praticamente secos – com exceção de alguns que receberam água das últimas chuvas. No centro do município, onde mora Maria do Socorro, o abastecimento é feito pelo Açude Pedra Branca. O prefeito estima que o volume atual, caso não chova, dure ainda um ano. A administração vem implementando ações emergenciais, como a construção de cacimbas (reservatórios mais rasos do que poços), além do envio de carros-pipa. O assessor da Secretaria da Agricultura Nilson Santos estima que haja cerca de 70 caminhões circulando no município.
A 248 quilômetros dali, em Crateús, no Sertão dos Inhamuns, o assunto do momento era a adutora construída para trazer água do Açude Araras para os habitantes. O abastecimento da zona urbana chegou a entrar em colapso em fevereiro, diante do fim das águas do Açude Carnaubal e da Barragem do Batalhão, os dois reservatórios que abasteciam a cidade.
Crateús - Estação de Tratamento de Água Poty, após a inauguração da adutora que capta água no Açude Araras, em Varjota, para abastecer Crateús. Fernando Frazão/Agência Brasil
Os canos de aço que passam sobre a Ponte dos Patriarcas se estende por 156 quilômetros até o município de Varjota, onde fica o Açude Araras. “É a segunda maior adutora da América Latina”, ressalta o prefeito de Crateús, Mauro Soares, debaixo de seu inseparável chapéu de couro. A água começou a correr dentro das tubulações no dia 2 de março, mas somente uma das quatro estações de bombeamento estava funcionando dois dias depois da inauguração – havia pouca pressão para levar a água para as casas.
A operação de mitigação dos efeitos da seca é realizada, segundo o prefeito, desde 2012. Além da adutora, que começou a ser montada em agosto de 2014, houve a perfuração emergencial de 24 novos poços públicos em fevereiro deste ano. “O que me dá a sensação de dever cumprido é ver a população nos passando uma mensagem de reconhecimento das ações do município e do governo do estado. Hoje, a gente ouve no rádio muitas pessoas ligando e agradecendo pelo trabalho que a gestão vem fazendo”, conta o secretário de Recursos Hídricos de Crateús, Carlos Alves Beserra.
“Já chegou água em Cajás? E na Cidade Nova? Os moradores da Maratoã já ligaram para cá avisando que não há água nas torneiras”, exclamava o locutor da rádio Poty, atendendo a ligações de moradores que relatavam falta de água nos bairros, mesmo com a adutora funcionando há dois dias.
Devido à baixa pressão da água, a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) estabeleceu um rodízio para atendimento dos bairros. Às segundas, quintas e sextas, a água seria liberada para os bairros da parte baixa da cidade. Às terças, quartas, sábados e domingos, era a vez da parte alta, onde fica a maior parte dos bairros de Crateús.
Na cidade, o poder aquisitivo tem influência no acesso à água. Morador do bairro São Vicente, na parte baixa da cidade, o empresário Luís Altino de Melo mandou cavar um poço profundo na própria casa há cerca de um ano e meio para o consumo da família e a manutenção da piscina. Diante da crise que se instalou na cidade, ele resolveu compartilhar a água com os vizinhos: mandou instalar três torneiras no muro para que as pessoas pudessem abastecer os recipientes de casa.
O pintor Antônio Francismar Alves Pereira Batista, 37, morador do Morro do Urubu, enche galões de água nas bicas disponibilizadas pelo empresário Luís Altino que tem um poço na própria casa. Fernando Frazão/Agência Brasil
Morador do Conjunto São José, mais conhecido como Morro do Urubu, na parte alta da cidade, Antônio Francismar Alves Pereira Batista, 37 anos, era um dos que se serviam das torneiras. Era uma tarde de quinta-feira quando ele chegou com um garrafão de água mineral e um balde fundo e largo. “Água não chegou, mas a conta continua chegando”, critica Batista.
A falta d´água também se transformou em negócio em Crateús. Uma empresa piauiense (Crateús está na divisa com o Piauí) havia chegado há 15 dias para instalar uma filial na cidade. Somente nesse período, de acordo com Áureo Machado, encarregado da empresa, os técnicos já tinham perfurado 17 poços em Crateús. Cavar um poço de 80 a 120 metros de profundidade custa, segundo ele, R$ 7,8 mil.
“Nós sabemos que o Ceará tem águas profundas e somos capazes de perfurar poços de até 500 metros de profundidade. Queremos participar de licitações também”, almeja Áureo, diante de um dos poços públicos onde os moradores faziam fila para pegar água.