Sobre essa conjuntura política, conversamos com Verônica Santana, coordenadora do Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste (MMTR-NE). Ela propõe reflexões e estratégias para que os movimentos sociais permaneçam defendendo a democracia no país.
ASACOM - A cada minuto acompanhamos informações e vivenciamos um cenário político tumultuado e que ameaça a democracia no país. O que falar desse golpe?
Verônica Santana - É muito difícil hoje a gente analisar o cenário político porque no final do dia as notícias podem estar totalmente diferentes daquele do amanhecer. Isso é representativo de quando estamos vivendo uma situação de golpe. É toda uma instabilidade política em que a gente, em todo momento, coloca as questões como suspeitas. Pelo que estamos acompanhando, o golpe está se consolidando porque as forças reacionárias estão encontrando uma “legalidade” [para o processo de impeachment], em que o judiciário não se posiciona, não é confiável, e, por isso, favorece um dos lados, e as casas legislativas estão sob o domínio delas. É um golpe diferente de 1964, ele não está sendo dado pelas forças armadas. Mas já vemos como a repressão já começou a acontecer. Por exemplo, o que aconteceu com a delegação da Bahia que seguia para a Conferência Nacional de Mulheres. As 73 mulheres que se manifestarem contra o golpe em voo resultou na decisão da companhia aérea chamar a Polícia Federal para prender as mulheres. É um impedimento de se exercer a opinião pública. Onde está a Constituição? Onde estão os direitos? É um golpe. Ainda não temos a real dimensão do que é esse golpe. Mas a gente não tem dúvida de que ele será muito duro com os movimentos sociais, com os trabalhadores e as trabalhadoras que ousaram se organizar, que ousaram protestar. Acho que teremos tempos difíceis e duros daqui para frente. Mas vamos ver também a nossa capacidade de reação – a gente tem mostrado muita força nas ruas, de reverter isso nesses 180 dias.
ASACOM - E com esse golpe que muda a presidência, quais as estratégias e perspectivas nas ruas durante esses 180 dias?
Verônica - A luta vai se ajeitando na medida dos fatos. A perspectiva é de ganhemos ainda mais força nas ruas. Além disso, a presidenta não estando mais no exercício do cargo dela, ela pode ter mais condições de percorrer um pouco mais o Brasil, dialogando com a sociedade sobre o que acontecendo. No Brasil, conquistamos uma grande força [popular] e uma fazemos uma pressão importante, estamos conseguindo mobilizar muita gente. Estamos vendo que - até mesmo como se diz - “os coxinhas”, do dia 17 [de março, com votação na Câmara dos Deputados] para cá, estão percebendo o quanto de perdas, principalmente de direito trabalhista, estão por vir. Muita gente começa a se posicionar contra o golpe. O argumento de que o golpe é contra a corrupção não cola mais. Ninguém acredita mais nisso. Acho que vamos conseguir também mais força a nível internacional nesse processo que vai ser encaminhado pelo Supremo Tribunal Federal, para que a gente possa comprovar que não há crime de responsabilidade fiscal, que esse é um julgamento político e que em julgamento político não cabe impeachment. Essa não é uma tese defendida apenas pela Dilma [Rousseff]. Vários juristas têm se manifestado. Precisamos, neste percurso dos 180 dias, comprovar isso. Na pior das hipóteses, que a gente não consiga [reverter o impeachment], vai ficar comprovado de que foi golpe. Acho que essa é uma questão importante, de não deixar dúvidas perante a sociedade. Isso vai fazer com que articulemos outras forças e que possamos continuar nesse embate. Agora a gente sabe que após os 180 dias esse cenário tende a piorar, por tudo que tem se anunciado por um possível governo golpista do [Michel] Temer, sobretudo na economia. Pegando um exemplo do Semiárido brasileiro, muito da economia tem sido movimentada pelos programas de transferência de renda, dos programas e das políticas sociais. Então, a partir desses 180 dias a gente teme porque vai piorar a situação política com um governo que não tem estabilidade e credibilidade popular, com o agravamento de tudo que está sendo anunciado que vai acontecer com uma crise econômica.
ASACOM - Por outro lado, mesmo com uma considerável insatisfação popular, podemos imaginar uma mídia tradicional de massa a favor desse governo golpista...
Verônica - Esse golpe é dado pelas forças conservadoras, lideradas por [Eduardo] Cunha e Temer, mas também por uma mídia golpista. E esse golpe midiático não começa agora no período pró-impeachment, ele começa desde as últimas eleições quando a grande mídia se posiciona de um lado. Após as eleições, essa mídia começa a trabalhar no imaginário da população, principalmente contra o PT, como um partido que “inventou” e lidera a corrupção. Ela [mídia] fomentou um ódio contra as mulheres, contras as populações que historicamente foram excluídas e que agora começa a ter direitos, como os negros e as comunidades LGBT. Uma série de ódios para criar condições propícias para esse golpe. E no rural brasileiro a gente sabe das dificuldades de estrutura para a chegada das informações. Muitas dessas informações chegam através da grande mídia. Por outro lado, a juventude hoje vivencia uma situação mais diferenciada porque consegue ter mais acesso a informações. E tem também os movimentos que têm realizado processos de comunicação e debates nas comunidades sobre o que representa o golpe. Nos grupos de mulheres, temos acompanhado muitos debates para entender o que está acontecendo. Mas como se diz, a corda quebra do lado mais fraco, e a gente percebe ainda a nossa dependência das políticas públicas para nos potencializar na nossa autonomia, economia, participação política. Como várias políticas estão agora ameaçadas, nos fragilizamos também na nossa organização. Vai ter muita resistência, mas a gente vê como a vida das mulheres, a vida da população do campo será muito afetada pelo que se tem anunciando. Um grande exemplo hoje, um dos principais ministérios que a gente tem um diálogo, que tem uma série de lutas envolvidas, é o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). E esse está na mira para acabar ou ser incorporado a um ministério que não nos representa. São ameaças concretas que ameaçam direitos e a própria segurança de viver no campo.
ASACOM - Apesar dos desafios atuais, o processo para construção dessas políticas foi longo e exigiu muitos esforços populares. Podemos ver em breve alguns passos para trás sendo dados em algumas dessas conquistas sociais. Ao mesmo tempo outros acúmulos políticos devem permanecer...
Verônica - O que conquistamos até hoje foi nas ruas ou nos espaços de conferências e de conselhos. No nosso caso, se fizermos um histórico do que foi a primeira Marcha das Margaridas em 2000, a segunda em 2003, 2007, 2011 e 2015, a gente vai acompanhando como as políticas vão sendo construídas, as propostas das mulheres vão sendo incorporadas na pauta do governo. A partir da Marcha das Margaridas, no caso concreto das mulheres do campo, das florestas e das águas foram muitos avanços. Outros espaços importantes são os das conferências. Vamos ter conferências sendo realizadas nesta conjuntura atual, e esses vão ser espaços importantes e estratégicos.
Essa Conferência Nacional dos Direitos das Mulheres [até dia 13] e a próxima que vai acontecer de 31 de maio a 03 de junho, que é a Segunda Conferência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, são conferências extremamente importantes e que dialogam com a nossa pauta. Ir para a rua, construir uma pauta, dialogar e incorporar essa pauta com o governo e ir para as conferências, só acontece na democracia. Sem democracia é impossível essa construção.
A gente entende que é fortalecendo essa democracia, no diálogo com a sociedade e com o governo, que a gente vai crescendo na nossa pauta. Embora a gente entenda que ela vem sendo ameaçada, principalmente agora nos últimos dias com a retirada da perspectiva de gênero da política da Secretaria Especial de Direito das Mulheres. Acho que numa perspectiva de gênero, para uma Secretaria Especial de Direito das Mulheres, não sobra nada, é o mesmo que acabar com esse espaço.
Mas a gente também ganhou muita força, hoje a gente tem uma articulação, tem um nível de entendimento para várias questões que estão sendo colocadas e debatidas. Hoje temos um nível de discussão amplo em todo o Brasil e isso não é fácil por conta de todo o tamanho do país. A nossa capacidade de reação e comunicação hoje é muito rápida. Então a gente entende que estamos num momento de lutar por direitos e conquistas. Não será fácil. Qual a dificuldade da nossa capacidade para uma reação? Porque as leis só protegem o outro lado, da burguesia e das elites. Mas o principal é estamos com muita unidade, com muita luta, muito povo na rua e que teremos reações imediatas. Não podemos parar.
ASACOM - Por falar em reação e na necessária dinâmica dos movimentos sociais neste cenário político, o que está sendo feito sobre o caso das mulheres que foram ameaçadas de prisão no voo entre Salvador e Brasília nesta terça-feira (10)?
Verônica - Juridicamente, temos um bom acompanhamento para elas. Várias deputadas e vários deputados, além da ministra Eleonora [Menicucci, de Política para as Mulheres] foram ao aeroporto fazer a intervenção. A ministra Eleonora e a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) conseguiram o compromisso da polícia de que as mulheres desceriam do avião e não seriam enquadradas na tal Lei de Segurança. As mulheres foram liberadas após um tempo e as várias intervenções. Agora vamos ver o desdobramento disso. Apesar do compromisso, as companheiras da Bahia podem se sentir inseguras porque não se sabe até que ponto esse compromisso vai valer. Nós vivemos uma insegurança jurídica terrível aqui no Brasil. A gente não confia no judiciário e no legislativo. A gente confia em parte do executivo. Mas a partir de sexta-feira (13), a gente não confia em ninguém do executivo. Então há uma instabilidade jurídica. Há um clima de insegurança das mulheres porque em um voo as pessoas passam todas as suas informações.