Equipe da Agência Brasil encontra exemplos de coragem no Semiárido
Brasília - A Agência Brasil foi ao Semiárido brasileiro para conhecer a realidade da região em 2013. A área abriga mais de 22 milhões de habitantes e já tem 1.046 municípios em situação de emergência e estado de calamidade pública. A estiagem é a pior dos últimos 50 anos.
A equipe visitou a Bahia e Pernambuco e encontrou realidades distintas no convívio com a estiagem. Durante quatro dias, repórter e fotógrafo percorreram quase 2 mil quilômetros pelo Semiárido. Contando os deslocamentos de Brasília, a equipe passou uma semana, de 31 de março a 6 de abril, em campo.
Em Pernambuco, a cidade visitada foi Petrolina. O município de 294.081 habitantes produziu riqueza superior a R$ 1 bilhão em 2009 (Produto Interno Bruto - PIB), segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com a prefeitura, a cidade, cortada pelo Rio São Francisco, tem área irrigada de quase 18 mil hectares e uma das maiores produções de uva do país. A 40 quilômetros de Petrolina está a unidade Semiárido da Embrapa, onde pesquisadores desenvolvem tecnologias para o convívio com a estiagem.
A zona rural de Petrolina apresenta uma realidade que contrasta com a riqueza do local. Foi lá que conhecemos a família de Jurandir Cardoso, no dia 1º de Abril. O agricultor recebeu a equipe com alegria, sentimento que só diminuiu quando ele nos contou que chega a pagar R$ 100 por um carro-pipa para encher sua cisterna nos períodos de seca rigorosa. Na casa em que vive com mais nove pessoas, ele tem televisão e geladeira, mas frequentemente falta água ou a que está disponível é salobra, dos açudes mais próximos.
Esse foi o nosso primeiro contato com famílias castigadas pela seca. Entretanto, Cardoso conta que seu lote já produz frutas, e os animais estão sendo mais bem alimentados. Não há tanta morte no seu rebanho e, com o dinheiro que recebe do Bolsa Família por manter na escola cinco de seus seis filhos, a fome deixou de ser motivo para as crianças dormirem mais cedo.
No clássico da literatura brasileira Os Sertões, Euclides da Cunha diz que sertanejo é, antes de tudo, um forte. Jurandir Cardoso é um pai de família que se alegra por seus filhos terem transporte escolar, merenda e uniforme. Ele não se sente diminuído por ter que passar horas cultivando o solo sob o sol, e assim ter a aparência de alguém dez anosa mais velho. Ele não quer sair do campo, porque é feliz ali. A felicidade resignada desse agricultor chega a assustar.
Em dois dias, entrevistamos e fotografamos seis pesquisadores da Embrapa Semiárido (Luiza Brito, Magna Moura, Nilton Cavalcanti, Gherman Araújo, Iêdo Sá e Pedro Grama); conhecemos as tecnologias de captação de água da chuva, de barragem subterrânea, de cisterna e de irrigação de salvação – sem o uso de energia elétrica. Além de ouvir explicações sobre as condições climáticas da região, tivemos oportunidade de conhecer as famílias de Jurandir Cardoso, de Espedito dos Santos, de Raimundo dos Santos e de Alírio Macedo.
O calor agressivo não impediu a equipe de trabalhar na apuração de informação por mais de dez horas diárias em Petrolina. Por outro lado, a angústia aumentava cada vez que ouvíamos que o auge da seca ainda não chegou, apesar dos efeitos amenizados por políticas governamentais de transferência de renda. A caatinga já começa a perder seu verde, o barro começa a rachar. Ainda estamos no período chuvoso - o que no sertão se chama inverno - mesmo com 42 graus Celsius castigando a pele.
O deslocamento de Petrolina para Barra, na Bahia, cerca de 650 quilômetros, foi feito de carro. Lá nos encontramos com a equipe da Embrapa, unidade Mandioca e Fruticultura, que saiu de Cruz das Almas para nos receber em Morro do Chapéu – metade do caminho até Barra. Os pesquisadores Ildos Parizzoto e Marcelo Romano nos acompanharam no trajeto.
Nos dois dias de viagem por Barra, visitamos três assentamentos rurais que usam tecnologias de convivência com o Semiárido, como a irrigação por gotejamento – que regula a quantidade de água que vai ser dispensada na produção agrícola. Ela permite que em áreas de estiagem a produção não seja interrompida.
A história de luta pela terra é a realidade das comunidades locais. Dona Toinha de Igarité é uma líder apaixonante e protetora. Atualmente ligada à Pastoral da Terra, a camponesa é a inspiração de 213 pessoas no Assentamento Santo Expedito. Ela contou que no período entre 2005 e 2007 a “lona” era sua moradia, enquanto participava de mobilizações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Ela disse que se desencantou com a entidade, mas se apaixonou ainda mais pela causa.
A comunidade se reuniu em volta da mesa farta para mostrar à equipe da Agência Brasil e aos pesquisadores da Embrapa tudo o que consegue produzir por ali. A entrevista com dona Toinha foi acompanhada por todos eles, que esperavam ansiosamente para também ser ouvidos.
A autoestima dos jovens Sérgio Queiroz e Daiarc Silva chamou a atenção da reportagem. “Tenho orgulho de morar no campo. É um privilégio”, contou o artesão Sérgio. Ávido por mobilizar seus “companheiros” de luta para continuar vivendo no campo. Ele acompanhou cada passo da reportagem e fez questão de, sempre que que tinha oportunidade de intervir, incluir sua reivindicação principal na conversa: mais educação para o campo.
Ao concluir a etapa de visita aos assentamentos, o pesquisador Marcelo Romano pensou alto ao volante: “Dá uma satisfação muito grande ver que o nosso trabalho tem esse retorno”. Romano e Parizzoto são considerados psicólogos e quase mágicos, por conseguirem mostrar a essas comunidades que é possível produzir no sertão.
Alzira dos Santos tem 49 anos. Ela critica o uso político da seca no Nordeste e conta como as urnas influenciam até hoje em ações na sua comunidade. O candidato dela não foi eleito e algumas das promessas de irrigação não foram cumpridas no assentamento onde vive com mais 13 famílias.
É difícil passar ileso por uma experiência como essa. O sertanejo é mesmo um forte, concordamos com Euclides da Cunha. Ele tem a persistência necessária para ser feliz na terra que escolheu como moradia e faz todos os conceitos preestabelecidos pelas informações centro-sul perderem o sentido.
Barra (BA) – A trajetória de Fabiano, personagem criado por Graciliano Ramos em Vidas Secas, obra publicada em 1938, retrata a vida miserável de uma família de retirantes sertanejos forçada a se mudar de tempos em tempos para lugares menos castigados pela falta de chuva. O clássico da literatura nacional foi durante muitos anos o retrato da realidade de brasileiros castigados pela estiagem no Semiárido brasileiro.
O cenário da caatinga e a seca ainda são os mesmos no sertão de hoje, mas deixar a terra por causa da estiagem não tem sido mais a única alternativa nos últimos anos. Conscientes das limitações impostas pelo Semiárido, moradores da região têm procurado se adaptar e conviver com o clima do campo.
Estiagem na região do Semiárido é a pior nos últimos 50 anosDurante quase 20 anos, a agricultora baiana Maria Eulália, de 62 anos, morou em Salvador. Na cidade, ela criou seis filhos biológicos e cinco adotados. Há sete anos dona Lia, como gosta de ser chamada, retornou ao campo com o marido. Mesmo sem chuva, cumpriu a promessa de retorno ao sertão, como diz a música Asa Branca, de Luiz Gonzaga: “Hoje longe, muitas léguas/ Numa triste solidão/ Espero a chuva cair de novo/ Pra mim voltar pro meu sertão”.Moradora do Projeto de Assentamento Antônio Conselheiro, localizado na zona rural de Barra, na Bahia, dona Lia descreve seu retorno com brilho nos olhos. “Apesar de gostar de Salvador, preferi voltar para o sertão. Meus filhos já estão criados e quiseram ficar lá, mas meu sonho era voltar para perto do Rio São Francisco. Gosto mesmo é do campo”, conta.
A comunidade de dona Lia é atendida pelo projeto “Transferência de tecnologia de irrigação para fruticultura em níveis de agricultura familiar em perímetros irrigados de assentamento do Semiárido brasileiro”, da Embrapa – unidade Mandioca e Fruticultura. Ao todo, 15 famílias ocupam uma área de 2.845 hectares da antiga fazenda Canal do Rio Grande II. A tecnologia aplicada na localidade permitiu aos moradores trabalharem no plantio de mandioca, umbu, laranja, caju, milho, abóbora, banana, feijão, acerola e hortaliças.
De acordo com Embrapa, o projeto tem início com a identificação da área, feita a partir de demanda das associações dos assentados. Em seguida, é realizado um diagnóstico participativo, onde se define as culturas que serão trabalhadas. Logo após, faz-se a marcação da área e são levadas as sementes e as mudas para início do plantio. Paralelamente, o projeto instala o sistema de irrigação.
“Ter o rio aqui do lado e não ter o conhecimento da Embrapa era como se não tivéssemos nada. A realidade aqui mudou 100%, havia três anos que não pegava nada no solo aqui. Agora queremos conseguir comercializar, aprender a viver do campo e não ter que procurar emprego fora”, diz Dona Lia.
Segundo o pesquisador de sistemas de produção sustentável da Embrapa, Marcelo Romano, os resultados do trabalho possibilitaram a melhora na segurança alimentar dos moradores da comunidade e ainda viabiliza a inserção dos produtos no mercado local ou institucional, em programas do governo federal de aquisição de alimentos.
“A lógica do trabalho é difundir a irrigação, transferir tecnologia de irrigação e adaptar as condições que eles se encontram. Aliado ao desenvolvimento da irrigação, temos a introdução de materiais genéticos desenvolvidos pela Embrapa de qualidade. Por meio de uma experimentação local, podemos selecionar aqueles que são mais adaptados às condições deles. Particularmente, acho que a gente se sente muito recompensado de trabalhar com esse público, principalmente quando a gente vê as respostas que estamos tendo aqui nesse município”, complementa o pesquisador.
A experiência de dona Lia com a tecnologia repassada pela Embrapa é compartilhada pelo Projeto de Assentamento Fundo de Pasto Ribeirão. A comunidade está localizada a 18 quilômetros de Barra, em uma área de 600 hectares.
Entre as 13 famílias que vivem no local está a de Sandra Santos da Silva, de 30 anos. A jovem agricultora já é mãe de cinco meninas e recebe R$ 502 mensais do Bolsa Família por manter as quatro crianças maiores na escola. Sandra também resistiu ao êxodo devido às secas e não quis sair do campo.
“Meus pais e meus avós sempre gostaram de morar na área rural e eu tomei esse gosto. Mas acontece de muitas vezes perder o estímulo porque se a terra não está dando o sustento, não podemos deixar nossos filhos morrerem de fome”, conta.
A mãe de Sandra, a agricultora e líder comunitária Alzira da Silva Santos, de 49 anos nasceu na região e chegou a morar em São Paulo. Retornou há oito anos. “A gente ia e voltava, mas chegou um tempo que decidi ficar aqui de vez. Antes, o mais difícil era a alimentação. Já a seca é sempre igual. Esse ano mesmo não choveu, só teve um 'tira pó'. Mas aqui é melhor que a cidade, é sossegado, livre da violência. Também há os animais, lá a gente não pode criar”, relata.
A tendência observada nos assentamentos rurais é acompanhada diariamente pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). De acordo com o presidente do órgão, Carlos Guedes, esse é um “novo momento” dentro dos assentamentos devido às mudanças na atuação do Incra junto às comunidades rurais, já que políticas públicas integradas têm garantido condições básicas de vida.
Guedes destacou a parceria com o Ministério da Integração Nacional que vai levar a 30 mil famílias assentadas do Semiárido o acesso aos sistemas de abastecimento de água simplificados, como cisternas, adutoras ou encanamentos, por meio do programa Água para Todos.
“O ano passado investimos junto com o Ministério da Integração R$ 84 milhões para atender essas 30 mil famílias no Semiárido. Essas famílias vão ter acesso à água, em que elas vão ter o seu equipamento de reserva de água por meio de cisterna ou outro sistema que possa se desenvolver em conjunto com a grande obra de infraestrutura de água que está sendo feita pelo PAC”, explicou o presidente do Incra.
Para melhorar as estradas e vias de acesso nas zonas rurais, outra demanda frequente, está sendo preparando um acordo com município que se compromete a comprar a produção do assentamento rural. “O Incra está fechando parceria com municípios de até 50 mil habitantes. Se o município se compromete a comprar produção do assentamento, o Incra ajuda botando combustível na máquina para poder melhorar as vias de acesso dos assentamentos”, explicou.
Barra (BA) – Depois de três anos sem plantação, a comunidade do assentamento rural Antônio Conselheiro, localizada na zona rural de Barra, na Bahia, consegue produzir, apesar da pior seca dos últimos 50 anos na região do Semiárido brasileiro. Desde o ano passado, as famílias têm plantado mandioca, umbu, laranja, caju, milho, abóbora, banana, feijão, acerola e hortaliças com a ajuda de tecnologias implementadas pela Embrapa.
A experiência com o projeto de agricultura familiar em áreas irrigadas também tem beneficiado moradores do assentamento Santo Expedito, na Bahia.
Novas tecnologias e acesso à água mudam a realidade da caatingaPara receber a equipe responsável pelo projeto, a comunidade liderada pela camponesa Antônia Francisca Guedes, a Toinha de Igarité, preparou uma mesa farta. As 51 famílias esperavam reunidas para mostrar melancia, mandioca, mamão e milho - resultado do trabalho desenvolvido em conjunto com a empresa.“Queremos levar essa experiência com a muvuca (seleção de várias culturas para plantação) para os quintais. Se cada família levar para o seu quintal, dá para viver sem sair para trabalhar fora. Essa semana já levamos a propaganda da banana para dois mercados”, disse Toinha. Além do consumo próprio, as famílias são orientadas a vender o excedente da produção para cooperativas e programas de aquisição de alimentos do governo federal.
De acordo com o pesquisador de sistemas de produção sustentável da Embrapa, Marcelo Romano, a produção do assentamento foi possível por meio do projeto de irrigação. A técnica específica para regiões onde a água é escassa, utiliza métodos pressurizados (aspersão, microaspersão, miniaspersão e gotejamento). A água usada pode ser captada pela chuva, com o uso de cisternas, mas em períodos de escassez pode ser proveniente da distribuição de carros-pipa.
“Com a pesquisa, são testadas variedades de alimentos para avaliar os que melhor se adaptem à região”, explica Romano.
Entre as soluções desenvolvidas e adaptadas às condições climáticas do Semiárido estão a produção de variedades de milho mais resistentes ao clima seco da região, técnicas de manejo adequado das culturas e sugestões de diversificação da produção com fruteiras resistentes à seca, agricultura com água biossalina ou salobra para produção de ração animal.
Segundo o analista de transferência de tecnologia da Embrapa, Ildos Parizotto, a metodologia de trabalho teve de ser adaptada à realidade das comunidades de agricultura familiar.
“Temos de usar ferramentas participativas, muito diálogo para estabelecer um clima de confiança entre o pesquisador e o agricultor. Cada grupo tem um tempo de aprendizagem para modificar a questão cultural que hoje é diferente de tudo que ele viveu. Ele esperava a chuva para plantar. Hoje ele quebrou esse paradigma para plantar. Com esse tipo de confiança estabelecida se consegue resgatar um pouco da autoestima, porque ele se vê dependente, marginalizado, excluído”, diz.
A pesquisadora Luiza Brito argumenta que as tecnologias esbarram nas limitações financeiras e culturais dos pequenos produtores rurais. “Nossos produtores não são capitalizados para implantar uma das tecnologias com recursos próprios. É aí onde vem a necessidade de políticas públicas para permitir ou garantir uma infraestrutura mínima de captação e armazenamento de água para esses produtores familiares. Aqui, o nosso agricultor é descapitalizado, pobre de informações e tem muitas vezes a sua cultura local”.
No contraponto das ações desenvolvidas pela Embrapa, que ajudam a população do semiárido a conviver com a condição climática do Semiárido, Luiza aponta a necessidade de políticas estruturantes ou duradouras para a comunidade local já que a estiagem é um fenômeno cíclico e previsível.
“Além das tecnologias de conviver com essas condições de semiaridez, é necessário também, como ocorre em 2012/20013, tecnologias estruturantes, duradouras, permanentes que suportem dois, três anos de seca. Essas tecnologias que estamos discutindo não têm capacidade de suportar o que está acontecendo”, avalia.
Outro ponto defendido por pesquisadores é a necessidade de reforçar a extensão rural, para que as tecnologias desenvolvidas pela Embrapa cheguem a mais famílias rurais no país.
“O trabalho de disseminação das informações sobre as tecnologias geradas depende de uma estrutura mais consolidada de assistência técnica e de extensão rural. No Brasil, desde a década de 80 se assiste a um verdadeiro desmonte dessas estruturas que já foram realmente fortes, principalmente a extensão rural. É preciso fortalecer esse apoio técnico, seja na extensão rural, nas organizações da sociedade civil. Essa estrutura é fundamental para que as informações cheguem e sejam disseminadas”, defende o pesquisador da Embrapa da unidade Semiárido Pedro Gama.
Além dos trabalhos desenvolvidos pontualmente por unidades da Embrapa na região do Semiárido, a empresa também atua no plano Brasil Sem Miséria do governo federal. Agricultores e comunidades tradicionais recebem material didático sobre como lidar com os kits de sementes recebidos.
De acordo com a empresa, o folheto explica como as famílias podem produzir e armazenar o produto de seus trabalhos. O material também tem um espaço para ensinar receitas culinárias com a produção dos agricultores. Além disso, o material traz regras para o uso da água. O objetivo é garantir segurança alimentar e nutricional a essas famílias.
Até o momento, as ações em parceria com o Brasil sem Miséria já beneficiaram mais de 19 mil famílias da região nordeste, em 14 Territórios da Cidadania no Semiárido, abrangendo os estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Sergipe e Rio Grande do Norte. Ao todo, 12 projetos de inclusão produtiva e cinco projetos transversais são executados por todas as unidades da Empresa da Região Nordeste, além da Embrapa Milho e Sorgo (Minas Gerais).
De acordo com o governo federal, 1.415 municípios sofrem com a, que afeta a vida de quase 22 milhões de brasileiros (U. Dettmar)Brasília – Mesmo com a súplica do sertanejo por chuva, a estiagem na região do Semiárido não dá trégua. É a pior registrada nos últimos 50 anos. De acordo com o governo federal, 1.415 municípios sofrem com a, que afeta a vida de quase 22 milhões de brasileiros. A falta de chuva atinge mais de 90% dos municípios do Semiárido e ultrapassou a extensão das 1.135 cidades que o compõem.A Secretaria Nacional de Defesa Civil já decretou situação de emergência e estado de calamidade pública em 1.046 municípios. A área mais atingida pela seca, o Semiárido brasileiro, estende-se por oito estados da Região Nordeste (Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe), além do norte de Minas Gerais, totalizando uma extensão territorial de mais de 980 quilômetros quadrados.
Até hoje, o sol e a falta de chuva são os inimigos que o sertanejo enfrenta no dia a diaO agricultor José Alírio de Macedo, de 61 anos, morador da zona rural de Petrolina (PE) conta que até o momento choveu apenas 28 milímetros (mm) na região onde vive. O período chuvoso no município, que tem início em dezembro e pode se estender até maio, tem em média 530 mm. Apesar da estiagem atual, o agricultor cultiva feijão, milho e sorgo para alimentar seu pequeno rebanho.“A situação já é feia. Se Deus não tiver compaixão, ninguém vai ficar com nada. E o período mais crítico ainda não começou, que é de agosto para a frente. Ano passado não plantei nada por causa da seca. Nunca vi dois anos diretos sem chuva, como já está acontecendo”.
Com os frequentes problemas causados pela seca, Macedo passou 14 anos trabalhando em São Paulo. Os seis filhos resistiram e ficaram na cidade, mas o agricultor e a mulher voltaram para o sertão. “O cidadão fica velho e quer estar perto das suas origens”.
A gravidade da situação levou o governo federal a investir R$ 32 bilhões nas chamadas obras estruturantes, que garantem o abastecimento de água de forma definitiva, como barragens, canais, adutoras e estações elevatórias. Além disso, anunciou no início deste mês mais R$ 9 bilhões em ações de enfrentamento à estiagem.
A previsão é que cada município atingido pela seca receba uma retroescavadeira, uma motoniveladora, dois caminhões (um caçamba e um pipa) e uma pá carregadeira. O governo também vai distribuir 340 mil toneladas de milho até o fim do mês de maio para serem vendidas aos produtores a preço subsidiado.
Para o coordenador-geral da Organização não Governamental Caatinga, Giovanne Xenofonte, a realidade do Semiárido é atenuada com os programas de transferência de renda do governo federal, como o Bolsa Família e o Garantia Safra.
“É tanto que, mesmo sendo a maior seca dos últimos 50 anos, a gente não está vendo o que tradicionalmente ocorria nas secas passadas: saques e invasões das famílias na região. Então, esse é o panorama. Se por um lado a gente tem um ambiente muito mais vulnerável, por outro a gente tem algumas ações governamentais que amenizam a situação”.
O coordenador cita a crise da economia local como uma das consequências da estiagem prolongada. Além da alta nos preços dos alimentos na região devido a queda na produção, os animais que sobrevivem à estiagem perderam seu valor de mercado e podem ser vendidos por até metade do preço.
“As famílias agricultoras estão descapitalizadas, elas perderam sua poupança [o rebanho]. Elas tiveram que vender [esses animais] por causa da seca e [cobraram] um preço bem abaixo do que normalmente é comercializado”.
Segundo Xenofonte, isso tudo tem um impacto forte no comércio, porque estamos numa região eminentemente agrícola. “E quando tem uma seca dessa, que afeta as famílias agricultoras, todo comércio sente. A gente nota uma paralisação, uma desaceleração na economia. O que tem mantido de fato são as rendas dos programas governamentais”, argumenta.
O engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Semiárido, Pedro Gama, destaca que a seca é um fenômeno recorrente e cíclico da região do Semiárido, mas que o país ainda não está suficientemente preparado para enfrentar. “A seca, como esse fenômeno de estiagem que é recorrente, é muito comum . A população sabe [disso], [faz parte do semiárido].
“Mas isso que estamos vivendo, essa estiagem prolongada, é uma crise climática e ocorre a cada 40, 50 anos. Houveram avanços, mas ainda é pouco. Precisa de muito investimento em pesquisas, políticas públicas para que estejamos preparados para enfrentar crise desse tipo”.
Gama também ressalta que as políticas de transferências de renda do governo federal amenizam os efeitos da seca, mas não impedem de desencadear outros três impactos: social, de produção e climático.
“O que ocorre com a seca é que ela sempre leva a uma crise de produção. Ou seja, não se produzem alimentos [suficientes] para a população e para os animais. A outra [crise] é o problema da segurança alimentar, que se chama abastecimento de água. Esgotam-se os mananciais e [isso] passa a ser um grande limitante, não só de produção, como para a população”.
Segundo Gama, há também a crise social, que aparecia fortemente nas secas anteriores e provocava os fenômenos migratórios. Ele lembrou que hoje não se vê isso, porque de alguma forma, os programas de subvenção social atuam como um amortecedor dos impactos sociais. “De certa forma, eles protegem essa população pobre dos impactos de uma seca desse tipo”.
Para o pesquisador o aumento do valor dos alimentos, com o agravamento da seca, gera uma segunda etapa na “crise climática” com a corrosão do apoio social das políticas de transferência. “Esse impacto todo pode ser atenuado pela área irrigada, não há crise próxima de uma fonte de água. Onde existe um dinamismo levado por essa cultura irrigada, muda totalmente no entorno”, diz.
Seca na região Nordeste (Otávio Nogueira / Creative Commons)Petrolina (PE) – “O sol é o inimigo que é forçoso evitar, iludir ou combater”. A frase escrita por Euclides da Cunha na obra Os Sertões, em 1902, revela o que até hoje o cidadão sertanejo precisa enfrentar no seu dia a dia. A falta de chuva impõe ao semiárido brasileiro a pior seca dos últimos 50 anos.Dados do Instituto Nacional do Semiárido (Insa/MCTI) apontam que a estiagem já afeta mais de 90% dos municípios do semiárido, o que levou a Secretaria Nacional de Defesa Civil a decretar situação de emergência e estado de calamidade pública em 1.046 municípios, em razão da escassez de chuva. A população mais vulnerável destes municípios é a rural, que representa mais de 8 milhões de habitantes, por não contar com infraestrutura de abastecimento de água: a área tem como únicas fontes de renda a agricultura familiar de sequeiro (em áreas não irrigadas), a criação de animais e o extrativismo.
Estiagem na região do Semiárido é a pior nos últimos 50 anosÉ na comunidade de Budim, zona rural de Petrolina (PE), que mora o agricultor Jurandir Cardoso, de 59 anos. O sorriso e a receptividade do agricultor contrastam com a aridez do cenário da região onde vive com família. Com a estiagem, a vegetação da caatinga já começa a perder a cor: o verde que ainda resiste é o do mandacaru e o da palma, cactáceas adaptadas ao clima da região.Ao todo, dez pessoas se dividem em uma casa de taipa de quatro cômodos. Casada, a filha mais velha continua morando com os pais e trouxe o marido e o filho de 1 ano e 6 meses para viverem juntos no local. Cardoso declarou receber R$ 238 em benefícios do Programa Bolsa Família por manter cinco dos seus seis filhos na escola. Segundo o agricultor, essa é a única renda mensal fíxa de toda família.
Com a ajuda de uma cisterna que capta água da chuva, Jurandir Cardoso cultiva em um lote de 6 hectares pinha, manga, acerola e limão para o consumo próprio da família. O pequeno excedente da produção é vendido em uma feira local. A água salobra é usada pela família e também é dividida para o consumo dos 20 animais do seu rebanho. Eles servem como poupança, quando conseguem sobreviver aos efeitos da seca, podendo ser vendidos por até um terço do valor.
As chuvas na região não foram suficientes para encher a cisterna e, para não perder a segunda safra consecutiva, o agricultor sai em busca de água. Segundo Cardoso, a comunidade também recebe água gratuita distribuída pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa) mas, em situações extremamente críticas, sem chuva e sem a distribuição de água, o agricultor disse que chegou a pagar R$100 por água de carro-pipa. A família diz que já ficou sem água na cisterna por duas semanas. No período, a sobrevivência deu-se apenas com a água recolhida na barragem localizada a 12 quilômetros de casa.
“Quando há água na barragem, a gente põe um tambor no lombo do burro e [assim consegue] regar as plantinhas. Quando não há, a gente precisa comprar água. Compro um pipa d'água e aí vamos botando aos pouquinhos porque não temos condição de comprar direto”, descreve.
Para salvar seu rebanho, o agricultor recorreu à compra de ração de milho mais barata, oferecido pelo governo federal. A medida é mais uma das ações emergenciais para enfrentar a estiagem. De acordo com o Ministério da Integração Nacional foram disponibilizadas cerca de 400 mil toneladas de milho para ração animal por um valor reduzido. O valor da saca de 60kg é de R$ 18,10, inferior à média cobrada no semiárido, de R$ 45.
“Deu uma chuvinha, o pasto na roça começou a sair e acabou, o sol queimou. Deu essa outra [chuva] agora e já está tudo murcho de novo. Os animais já estão [sendo alimentados] na ração”, disse.
A poucos quilômetros da casa de Jurandir, a família de Espedito Paulo dos Santos vive outra realidade. Com a utilização da agricultura biossalina, uma das tecnologias desenvolvidas pela Embrapa Semiárido, o agricultor produz sorgo e capim como ração para os 200 animais de sua propriedade. Segundo Santos, a medida reduziu metade dos custos da produção e prolonga a vida dos animais nos períodos de estiagem.
De acordo com o pesquisador da Embrapa, Gherman Araújo, a tecnologia já é usada em várias partes do mundo, em regiões onde a disponibilidade de água é muito pequena. Um poço é perfurado para encontrar água no subsolo e com ela são produzidas plantas que toleram melhor o sal e o estresse climático, as chamadas halófitas. Essas plantas são usadas como ração animal na região.
O produtor rural comemora o sucesso da tecnologia em sua propriedade, mas é pessimista com o clima. “Os animais estão bem alimentados com as forragens [ração produzida com a agricultura biossalina], mas à medida que colhemos, já damos a eles. Estou usando a produção agora, mas acredito que seja necessário comprar ração quando não for mais possível plantar. Já estamos entrando em abril, quando termina o período das chuvas por aqui. E acho que só o ano que vem chove agora”, explica.
O pesquisador alerta que a tecnologia deve ser usada de forma estratégica, apenas no período da seca. “Esse processo tem que ser feito de forma racional, levando em conta a vazão do poço e a exigência hídrica de cada cultura ou vai esgotar do mesmo jeito”, afirma.