Quando se ouve Roque Santeiro explicar como acontece a criação dos artistas do Semiárido, impossível não lembrar da sabedoria um tanto existencialista de Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas. Para o famoso mestre de Petrolina, o drama vivido pelos artistas na terra árida acaba forjando o talento deles. “Se você vai morar neste Sertão é forçado a ser inteligente para sobreviver, por isso, a arte do sertanejo vem do sofrimento. É a dificuldade que faz você encontrar o caminho”, sentencia. E essa habilidade de transformar a dor em inspiração para fazer peças artesanais tem proporcionado aos artesãos uma alternativa para obter renda e escapar do martírio da seca.

Muitos, como Roque, começaram como agricultores, lavrando a terra desde menino. Em Arizona, pequeno povoado do município de Afrânio, no Sertão do Araripe, ele morava com outros nove irmãos e até hoje se lembra da peleja de arranjar o que dar de beber para os animais nos períodos de estiagem. “Quantas vezes desci uma cacimba profunda numa corda segurada por meu pai, esperando minar água”, recorda-se. Hoje suas esculturas permitem viver sem depender das chuvas e até ajudar seu pai. “Agora ele tem uma propriedade com três açudes e energia elétrica que os filhos deram. Eu consegui ajudá-lo com a minha arte”, orgulha-se.

História parecida tem Marcos de Sertânia. Vindo de família de camponeses e artesãos, ele porém não se animou em criar utensílios e pequenas esculturas de bois que seus tios e avô faziam. Decidiu retratar a aflição provocada pela seca, ao extrair da madeira figuras esquálidas e melancólicas. Até o cachorro que esculpe é tão magrinho quanto Baleia, a cadela heroína do romance de Graciliano Ramos, Vidas Secas. “Criei um estilo mais próprio, emagreci os personagens para dar mais sofrimento”, justifica. “Vivi tudo isso aí que coloco no meu trabalho. Já sofri com a seca, já ajudei minha mãe a carregar água na cabeça, meu pai era vaqueiro, já vi o gado morrer de fome”, enumera Marcos.

Hoje o mestre artesão e sua família vivem dos seus talentos. “Muita gente daqui foi para o Sul procurar mais oportunidades. Mas a arte foi redentora para a nossa família para ganhar o pão de cada dia. Eu, hoje, não consigo mais sair de Sertânia”, afirma o artista popular.

Essa capacidade que o artesanato tem de gerar renda e fixar as pessoas nas suas cidades tem inspirado muitas ações sociais. A organização não governamental Caatinga, por exemplo, implantou o Projeto Juventude Arte e Cultura, em parcerias com as ONGs Sabiá e Diaconia, com patrocínio da Petrobras. Nele jovens são capacitados para produção do artesanato baseado na cultura local. Até o momento são 180 beneficiados do Sertão do Araripe e Pajeú

“Ao produzir e comercializar as peças eles têm um complemento de renda, já que são trabalhadores do campo. Assim não abandonam a escola e garantem um rendimento, principalmente no período de seca”, esclarece Edinalva Nunes, coordenadora do projeto. Josias Valgão, 22 anos, participa do projeto, ao mesmo tempo em que frequenta o curso de agroindústria no Instituto Federal de Ouricuri. “O resultado de tudo que vendemos é dividido no final do mês conforme o número de horas trabalhadas por cada um”, explica o estudante e artesão. “No início a gente ganhava R$ 20, R$ 30 e hoje a gente já ganha R$ 150”, comemora.

Criatividade Feminina

Em Conceição Das Crioulas, comunidade em Salgueiro, no Sertão Central, o artesanato além de gerar renda também ajudou a fortalecer a identidade cultural. Com uma história rica, a localidade foi formada por seis mulheres negras que conseguiram adquirir a terra em 1802 com o dinheiro obtido ao plantar algodão e vender novelos. A partir de um trabalho de intervenção feito com o Laboratório O Imaginário de Design, houve uma remodelação do artesanato local. “Valorizamos o que eles tinham de melhor que é a história da criação da comunidade, o seu mito fundador”, conta a designer do Imaginário e professora da UFPE Ana Andrade.

Entre os produtos criados estão dez bonecas que levam o nome de mulheres conhecidas pela contribuição que deram à localidade. Nada mais justo para um povoado onde a participação feminina é tão importante. “Já chegamos a vender R$ 10 mil na Fenearte”, informa a professora Maria de Lourdes da Silva, a Lourdinha, que dá nome a uma das bonecas.

Nesta seca, porém, a produção diminuiu, porque o caruá, planta cuja fibra é utilizada para fazer as peças, secou por causa da estiagem. Mas, como todo sertanejo é antes de tudo um forte, a comunidade já se organiza para encontrar uma solução. “Estamos em contato com Ticiano Arraes, designer que sempre nos ajudou, para inserir mais pessoas no projeto e criar novos produtos”, planeja Lourdinha.

Sejam mestres consagrados como Roque Santeiro e Marcos de Sertânia, ou agricultores apoiados por projetos sociais, como Josias, todos concordam que a Fenearte tem sido fundamental para comercializarem suas criações e sobreviverem da sua arte. “A feira dá visibilidade e se tornou uma grande ajuda para nós”, constata Roque.