Quando se fala do lugar de produção da ciência, tecnologia e inovação (CT&I), de imediato nos vêm à mente ambientes sofisticados geridos por introspectivas e pessoas aparentemente excêntricas. Exceto como objeto de estudo, as pessoas externas a esse meio científico encontram dificuldade para entrar de imediato nesse mundo. A linguagem e os códigos soam incompreensíveis ao senso comum. Tudo isso lastreado por um modo de pensar bem específico: a CT&I, além de neutra e instrumental, irá determinar necessariamente o progresso da humanidade de forma inexorável. Ledo engano.

É que na contramão desse pensamento, as Tecnologias Sociais (TS) – adotadas por parte das comunidades carentes no semiárido do Brasil, com seus arranjos, tecnoprodutivos – vêm mostrando na prática da lida diária que o modelo vigente hegemônico, de compreender e executar as políticas públicas de CT&I deve e pode ser questionado, e mesmo redefinido.

As TS podem ser entendidas, por exemplo, na coleta e armazenamento eficientes das escassas águas de chuvas. Além disso, são aplicadas na simples construção de bombas de PVC que fazem a sucção das águas das cisternas; na instalação de canteiros com verduras e hortaliças orgânicas ou na manipulação da terra, de modo a evitar os abusos de agrotóxicos que têm trazido tantos problemas ao meio ambiente.

Diferentemente do modelo que pensa o Nordeste a partir do viés do atraso, do entrave ao desenvolvimento econômico nacional e da miséria, a convivência com o semiárido é um conceito relativamente novo, estruturado particularmente por mais de 700 organizações da sociedade civil e não governamentais (ONGs), todas articuladas em rede por intermédio da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA). O semiárido brasileiro abrange 11 estados, sendo 9 no NE e mais Minas Gerais, ocupa uma área de 974.725 Km² onde vivem 24 milhões de pessoas, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No período entre agosto de 2010 e março do ano passado foram construídas 2.225 cisternas, mobilizando 200 pedreiras e pedreiros de comunidades do semiárido. Foto: Raimundo Santana.

No âmbito baiano, uma dessas entidades é o Centro de Assessoria Assuruá (CAA), fundada em 1990, cuja atuação acontece nos municípios de Barro Alto, Brotas de Macaúbas, Gentio do Ouro, Irecê, Oliveira dos Brejinhos e São Gabriel. Suas ações estão direcionadas para melhoria das condições de vida de comunidades sertanejas por meio do fortalecimento da cidadania e da construção do desenvolvimento sustentável. Nos limites da Bahia, que ocupa 36% da região Nordeste, 66% de seu território se caracteriza como semiárido, o equivalente a 43% de todo o semiárido do Nordeste. De acordo com levantamento de 2010 do IBGE, a população baiana está estimada em 13.633.969 pessoas.

No Encontro Microrregional de Avaliação do Projeto Cisternas II: Água para Consumo Humano e Produção, ocorrido entre os dias 12 e 13 março de 2012, no campus da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) em Irecê, dirigentes da CAA apresentaram os seguintes números: as cisternas de placas para consumo humano já chegaram a 208 comunidades rurais. No período entre agosto de 2010 e março do ano passado foram construídas 2.225 cisternas e 660 canteiros com verduras e hortaliças orgânicas que servem, inclusive, para alimentação escolar; 200 pedreiras e pedreiros das comunidades foram mobilizados.

A Bahia possui 417 municípios e, de acordo com Casa Civil do Estado da Bahia, 234 decretaram “estado de emergência” em maio passado, enquanto o Governo do Estado havia reconhecido e homologado oficialmente 220. Em março deste ano, localidades de 214 municípios estão na mesma situação. O Governo Federal divulgou que Há mais de 10 milhões de pessoas afetadas pela seca nos estados nordestinos e na região setentrional de Minas Gerais.

O reconhecimento do “estado de emergência” permite ao município que o decreta, por exemplo, a contratação em caráter emergencial de água através de carros-pipas e de alimentos (cestas básicas), prioridade negociação de crédito agrícola. Além disso, com esse tipo de decreto é diminuída a burocracia, o que facilita tomada de ações oficiais por parte dos prefeitos: a construção de sistemas simplificados de captação hídrica, perfuração de poços artesianos e recuperação barragens e açudes e sem realizar licitações. Do ponto de vista legal, a iniciativa é válida por seis meses.

“Indústria da Seca” - Tanto a ASA quanto a sua afiliada CAA são organizações que têm uma plataforma cognitiva, um modo de pensar a CT&I, que se opõe ao histórico modelo da chamada “indústria da seca”, formulado e implantado como política oficial do Estado brasileiro. E mais que isso: essa bem-sucedida convivência com o semiárido se impôs fortemente na agenda do Governo Federal a partir da gestão Lula, está presente no governo Dilma, apesar dos percalços.

Amparada em tecnologias sociais, as cisternas de placas têm se notabilizado pelo seu caráter democrático com forte participação e constante mobilização popular enquanto política pública. “Somos organizações sociais que partem do paradigma, segundo o qual o acesso à água é um direito humano básico que necessita ser urgentemente efetivado para toda a população, em especial aquela do semiárido. Temos a missão de fortalecer a sociedade civil na construção de processos participativos para o desenvolvimento sustentável e a convivência com o Semiárido referenciados em valores culturais e de justiça social”, esclarece o coordenador pedagógico da CAA, Cláudio Santos Rodrigues.

Amparada em tecnologias sociais, as cisternas de placas têm se notabilizado pelo seu caráter democrático com forte participação e constante mobilização popular enquanto política pública. Foto: Raimundo Santana.

O grande referencial – as cisternas – que fundamenta a proposta de convivência com o semiárido diz respeito ao manejo, armazenamento e conservação da água proveniente das escassas chuvas que caem na região. Aliado a essa estratégia voltada a diferentes dimensões do desenvolvimento humano, comunidades pobres incorporam práticas comprometidas com a preservação ambiental e orientadas ao cultivo de uma agricultura livre dos agrotóxicos.

A rede construída a partir da consolidação da ASA congrega cerca de 750 organizações da sociedade civil que atuam na gestão e no desenvolvimento de políticas de convivência com a região. Conforme declarou a entidade, já são mais de dois milhões de pessoas beneficiadas em 1.076 municípios numa mobilização da qual fizeram parte 12 mil pedreiros e pedreiras.

Modalidade de armazenamento em forma cônica, coberta e semienterrada, as cisternas de placas aproveitam o escoamento de água de chuva a partir dos telhados das casas, sendo a captação feita por tubos de PVC (policloreto de polivinila). Este artefato tecnológico, cuja composição traz argamassa, cimento, areia, ferro e uma mão de obra local em forma de mutirão, torna possível o acondicionamento do líquido para consumo humano em reservatório protegido da evaporação e das contaminações causadas por animais e sujeiras trazidas pelas chuvas. O tamanho do reservatório varia de acordo com o número de pessoas da casa e do tamanho do telhado. E a experiência tem provado que ela pode garantir água potável para a família beber e cozinhar durante oito meses.

A construção desses equipamentos ganhou maior visibilidade a partir de 2003 quando personagens como Frei Beto e Oded Grajew, então conselheiros do presidente Lula, intermediaram a proposta da ASA no interior do governo que começara naquele ano. A partir daquele movimento, o equipamento passou a ser mais um item da Política de Inclusão Social abrigada no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). A sua materialização é o Programa de Formação e Mobilização para a Convivência com o Semiárido: Um Milhão de Cisternas, o P1MC. Uma tarefa, diga-se de passagem, ousadíssima.

Contudo, embora a estratégia das cisternas tenha sido acolhida no interior do Governo Federal através do MDS, a tecnologia está longe de ser unânime entre os operadores e formuladores das Políticas Públicas de Inclusão Social (PIS) e da Política Científica e Tecnológica (PCT). Exemplo ilustrativo dessa falta de unanimidade, ou “visão diferenciada”, pôde ser constatado em dezembro de 2011 quando o governo tornou público que iria fazer mudança a partir dos arranjos para o Plano Brasil Sem Miséria, ampliando assim os convênios com os estados e de forma indireta tencionando o afastamento dessas organizações não governamentais do processo.

*Jornalista e especialista em Jornalismo Científico e Tecnológico.