Representantes de organizações sociais do Semiárido brasileiro participaram ontem (24) da Conferência Livre de Segurança e Soberania Alimentar do Semiárido, que ocorreu de forma online, por meio da plataforma Zoom. Cerca de 200 pessoas debateram o tema “Terra, água e biodiversidade para um Semiárido Vivo, com participação popular e segurança e soberania alimentar”, encaminharam propostas e elegeram delegadas para a Conferência Nacional, que vai acontecer em Brasília em dezembro.
Na abertura do evento, a representante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Mariana Santarelli, destacou a importância do Consea nos estados e municípios. Ela lembrou o quanto a mobilização popular é necessária, rememorando o processo de desmonte político que houve em 2019, momento em que o Conselho foi extinto e a sociedade civil manteve a Conferência popular, importante para assegurar a visibilidade da pauta da segurança alimentar e nutricional. Ações como o Tribunal Popular contra a fome foram citadas por Mariana, que chamou atenção para o momento atual de retomada do Consea e reconstrução das políticas.
Em 2024, o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) completará 18 anos. De acordo com a representante do Consea, é preciso avançar de forma mais acelerada na implementação do Sisan e garantir a municipalização do sistema, uma vez que se trata de um mecanismo que visa a garantia de um direito básico, assegurado na Constituição Federal.
Um das lideranças do Polo da Borborema, na Paraíba, Roselita Vitor, relacionou o tema da conferência com a importância dos biomas Caatinga e Cerrado, que inclusive estão em vias de aprovação enquanto patrimônios do Brasil, a partir da PEC 504, que pode ser votada a qualquer momento na Câmara Federal.
“A Caatinga e o Cerrado estão ameaçados por vários projetos ditos de desenvolvimento que ameaçam a vida dos nossos territórios, que ameaçam a vida das nossas comunidades”. Ela mencionou a agroecologia como um modelo necessário e importante para o país, o que pode ser fortalecido a partir da retomada e ampliação de programas que assegurem a democratização do acesso à água, a preservação e reprodução das sementes crioulas, por exemplo. Para tanto, Roselita aponta a participação social como elemento central para garantir a eficácia destas políticas públicas.
A partir da apresentação do representante do Consea Bahia, José Moacir Santos, o público pode se apropriar de dados a serem considerados na elaboração das propostas, a exemplo dos cálculos sobre a demanda e o consumo de água das famílias, que podem orientar a implantação de tecnologias de captação, distribuição e gestão da água da chuva, bem como do reuso de águas, viabilizando com isso a produção de alimentos saudáveis.
Além disso, Moacir problematizou a prática ultrapassada de uso do carro pipa como medida emergencial, mas que em muitos municípios perdura o ano todo e não apenas durante a estiagem. Para ele é uma alternativa cara, que não garante água de qualidade e ainda fomenta a famigerada indústria da seca, onde a água se mantém como moeda de troca de voto.
A ASA tem apontado o saneamento rural apropriado como uma forma de transformar um problema ambiental e sanitário em solução sustentável, visando a produção de alimento humano e animal. A rede vem provocando os governos municipais, estaduais e federal a avançarem na implementação dessas tecnologias de saneamento, assim como apostou no Programa Cisternas, que celebra 20 anos e ultrapassou a meta de um milhão de cisternas construídas. “Sem água não temos segurança alimentar”, afirmou Naidson Baptista, um dos representantes da coordenação da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) na Conferência Livre do Semiárido.
Para além da necessidade de implantação de políticas e programas, a Conferência Livre apontou que o Estado brasileiro precisa se debruçar sobre a garantia dos territórios dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Durante o debate e trabalhos de grupo, ficou evidente a preocupação dos/das participantes quanto às frequentes ameaças lideradas por empresas, muitas delas multinacionais, sob a chancela dos diversos governos.
Neste sentido, a liderança pernambucana Cristiane Pankararu, denunciou a resistência do Estado brasileiro em reconhecer as populações tradicionais e assegurar-lhes o direito à terra e território. Ao mesmo tempo, ela anuncia que a conexão com a natureza, a luta por justiça climática e união dos povos é o que têm ajudado no processo de resistência secular dos povos, especialmente indígenas.
Representantes de diversos estados apontaram a chegada brusca dos parques de geração de energia eólica e solar que violam a legislação ambiental, projetos de irrigação e mineração como ameaças que vêm promovendo uma lógica de destruição irreversível para esta e, sobretudo, para as futuras gerações. O modelo centralizador das energias renováveis, a violência contra as mulheres nos territórios, que atinge comunidades tradicionais e agricultura familiar, a degradação dos biomas devido ao desmatamento, agrotóxicos, uso desenfreado das terras, águas, florestas, animais estiveram no centro dos relatos durante trabalho de grupos, identificando que as populações rurais são as mais afetadas diretamente.
Propostas do Semiárido
Houve também apontamentos, os quais subsidiaram as propostas a serem levadas para a conferência nacional e demais espaços de decisão acerca da pauta. Dentre as proposições, estão a defesa da produção de energia descentralizada; a reforma agrária para avançar na produção de alimentos; universalização do acesso à água; educação e assessoria técnica contextualizadas; comunicação democrática; saneamento rural apropriado – ultrapassando os quatro elementos que o compõem (coleta e destino do lixo, coleta e tratamento do esgoto, abastecimento de água, drenagem da chuva), conforme a Lei 11.445/07, atualizada em 2020. Foram defendidas também propostas que favoreçam a preservação e recuperação de áreas degradadas na Caatinga e no Cerrado, visando o desmatamento zero; aumento das Unidades de Conservação; proibição de pulverização aérea; ampliação de Unidades de beneficiamento de produtos oriundos dos Biomas.
Para Naidson, muitas conquistas hoje celebradas na perspectiva da Convivência com o Semiárido, devem-se à capacidade da ASA e das entidades que a compõem de adentrar espaços institucionais. As comissões municipais, as ASA’s estaduais, a participação em outras redes, fóruns, conselhos, conferências, comitês, etc é um movimento de insistência. “A ASA se chama participação social, na elaboração, na execução e na avaliação das políticas. Essa conferência é pra dizer que não vamos largar a bandeira da participação social”, além de encarar o desafio de ajudar a implantar o SISAN.
Percurso
Os estados e municípios vêm nos últimos meses realizando conferências de segurança alimentar e nutricional para debater e encaminhar propostas para a etapa nacional. As conferências livres, por sua vez, são atividades autogestionadas que também visam preparar propostas e fortalecer argumentos das pessoas que venham a ser delegadas na 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), que acontece entre os dias 11 e 14 de dezembro, em Brasília (DF).
A Conferência Livre de Segurança e Soberania Alimentar do Semiárido foi organizada pela ASA e, além de elencar propostas a serem defendidas em Brasília, elegeu 04 mulheres para serem delegadas, representando o Semiárido e o conjunto de propostas aprovadas após trabalho de grupo.