Boa parte da população do Brasil convive com problemas cotidianos decorrentes da negação de alguns direitos básicos. Muitas vezes prevalece o desconhecimento desses direitos e a não compreensão de que é o Estado o responsável por  assegurar. O saneamento está dentro deste pacote de direitos violados, o que impacta no acesso ao abastecimento de água potável no campo e nas cidades, no esgotamento sanitário, coleta e destino dos resíduos sólidos e drenagem da chuva.

O Brasil praticamente em todo seu território rural existe pouca/nenhuma política pública em torno do saneamento básico. A última Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSD) de 2017, apontou que cerca de 34,1 milhões de domicílios no país não possuem esgotamento. A ausência ou oferta irregular destes serviços resultam em precárias condições de saúde, bem-estar e a incidência de doenças. Garantir o pleno funcionamento desses serviços é uma forma de promover a saúde pública, o zelo com o meio ambiente e, consequentemente, o Bem Viver.

Com essa compreensão, para além do trabalho com as tecnologias que captam e armazenam água para consumo das famílias, organizações que integram a Articulação Semiárido Brasileiro - ASA, há alguns anos, já se preocupam com o destino dessa água após os diversos usos domésticos. O olhar para isso tem promovido o experimento de diversas tecnologias para coleta e tratamento de esgotos, possibilitando o reúso de água para produção agroecológica.

Como aponta Cícero Félix, integrante da coordenação executiva nacional da ASA, ao longo de seus 23 anos, a rede avançou nos aspectos ligados ao acesso à água para consumo e produção, mas precisa avançar com relação ao destino das águas utilizadas e demais elementos do saneamento. “Nós estamos agora nesse processo de construirmos uma proposta pra avançarmos no saneamento nessa perspectiva de coletar as águas servidas, tratar e devolver para o sistema familiar ou comunitário para que, integrado à natureza, possa gerar a produção de alimentos saudáveis e contribuir com a conservação dos biomas, com a preservação e recuperação de áreas degradadas”, especifica Cicero.

Mas antes de pensar a produção de alimentos como resultado positivo, de acordo com Maria Madalena Medeiros, coordenadora do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Centro de Ação Cultural – Centrac/PB, efetivar o direito ao saneamento é garantir saúde. Madalena destaca a centralidade das mulheres nessa pauta, pois são sujeitos de direitos extremamente conectadas com esta realidade de precariedade ou ausência do esgotamento sanitário nas comunidades rurais e periferias.

Construção Coletiva

Com o objetivo de construir consensos que orientem uma proposta conceitual, técnica e metodológica para um Programa de Saneamento Rural, a ASA realizou, entre os dias 01 e 03 de março, um Encontro Nacional sobre o tema. Realizado em Juazeiro (BA), o evento reuniu em média 30 pessoas representantes de todos os estados do Semiárido.

A programação contemplou visitas de campo, trabalhos em grupo e discussões em plenária, visando problematizar o impacto, funcionalidade e custo das tecnologias que já vem sendo utilizadas, o papel das mulheres nesse processo, bem como os componentes que devem constar no Programa, tendo como referência os demais programas já executados pela ASA.

O evento ocorreu após a realização de encontros estaduais, prezando pela prática da rede de priorizar a construção coletiva a partir das demandas locais. No entanto, a ASA ressalta que, ainda que a sociedade civil ajude a construir a política pública, é dever do Estado efetivar o direito ao saneamento. “É o Estado que tem a obrigação de garantir esse direito humano, que tem a ver com saúde, que tem a ver com alimentação, que tem a ver com bem estar nos espaços de convivência e moradia das pessoas. Nós temos o desafio de [ajudar a] tirar do papel o que já está programado enquanto política pública”, reforça Cícero, lembrando que já existe um Plano Nacional de Saneamento, inclusive com programa específico para o meio rural. “O que precisamos é juntar forças para garantir orçamento público”, aponta um dos coordenadores da ASA.

Para Madalena, um dos resultados centrais do encontro foi o consenso sobre dimensões importantes do saneamento rural, dentre os quais se destacam “a importância do esgotamento sanitário de forma segura e considerando os aspectos sanitários, sociais, ambientais e econômicos”. Na programação, esteve em debate o papel das mulheres nesse contexto, uma vez que estas estão mais presentes do dia a dia das famílias, assumindo tarefas de cuidados domésticos e cuidados com as pessoas.

As mulheres presentes no evento pautaram a necessidade de olhar para o saneamento como questão de saúde, analisando o uso e eficiência das tecnologias já adotadas, bem como inserindo também as mulheres em todo o processo de apropriação dos sistemas de esgotamento sanitário e não apenas no manejo, como é mais comum nas iniciativas já em curso.

Para que a pauta do saneamento rural possa ser massificada junto a população dos municípios, sobretudo as comunidades rurais, foi apontada a necessidade de uma ação estratégica de comunicação popular, prezando pelo debate acerca deste direito básico e sua importância para o meio ambiente e saúde pública.

Experiências

Durante o encontro, as/os participantes conheceram uma variedade de tecnologias que vem sendo adotadas e avaliadas no Centro de Formação Dom José Rodrigues, mantido pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – Irpaa/BA. Dentre algumas técnicas experimentadas há mais de cinco anos, estão o BioÁgua para tratamento de águas cinzas, a Bacia de Evapotranspiração (BET) para tratamento de águas fecais e o Reator UASB para tratamento de esgoto total.

Outra experiência visitada foi da comunidade Açude da Rancharia, distrito de Pinhões, também em Juazeiro. Em funcionamento desde 2022, o sistema comunitário de saneamento com reúso de água na agricultura contempla uma média de 20 famílias, as quais antes conviviam com esgotos em seus quintais e nas áreas de convivência coletiva. A moradora Jéssica Silva declara que apoiou a proposta desde o início, pois trouxe mudanças positivas para a comunidade, alterando a realidade de esgoto a céu aberto, mau cheiro, presença de muriçocas, aspectos que vinham impactando na qualidade de vida das famílias de Açude da Rancharia. Ela relata que há trabalho com a manutenção das tecnologias, mas é um esforço muito menor do que lidar com os problemas existentes antes da implantação do sistema.

O Agente Comunitário de Saúde e presidente da Associação avalia que “esse projeto veio nos trazer uma esperança que a gente possa no futuro dialogar sobre outras questões que são permeáveis na comunidade que precisam ser melhoradas”. Ele se diz animado a despertar o município a incluir essas ações no planejamento e assim mostrar ao governo estadual e federal que dá certo e pode ser executado a partir de parcerias.

A iniciativa é fruto de parceria do Irpaa com a comunidade, numa articulação de parcerias que envolvem o Governo do estado da Bahia, órgãos de pesquisa e prefeitura de Juazeiro. Hoje comunidades vizinhas já se interessam pelo serviço, a exemplo de Poços da Rancharia, cujo presidente da associação, Celino Borges, reivindicou aquisição do sistema comunitário durante a visita em Açude.

A partir do encontro nacional, a ASA segue com encaminhamentos para construção do seu Programa de Saneamento rural, considerando a Lei 11.445/2007, que foi alterada em 2020, bem como as especificidades locais no âmbito das condições ambientais, sócio-culturais e econômicas.