Neste dia 8 de Março, enquanto o Brasil vive a triste realidade de ter 19 milhões de pessoas passando fome, das quais, no mínimo 4 milhões estão no Semiárido, é importante destacar a importância e a resistência da produção alimentar das mulheres na região. No estado do Rio Grande do Norte, que possui 27,5% da sua área total afetada por processos de desertificação, segundo dados do último relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e que sofre com estiagens severas nos últimos dez anos, a Rede de Comercialização Xique Xique, coordenada pela jovem agricultora, de 27 anos, Nara Lima conseguiu um feito. O espaço de comercialização garantiu a produção de alimentos suficientes para suprir as necessidades de consumo das próprias agricultoras, mas também para atender às demandas de compras coletivas de cestas emergenciais e dos pedidos feitos via delivery.
“De 2011 a 2019, a Rede sempre fechava no vermelho, não conseguia fechar as contas. Em 2020, em plena pandemia, vendemos 1 milhão e 500 mill reais. Vendemos muito alface, feijão vermelho. Isso foi resultado do isolamento social e das vendas por delivery, que a gente aderiu”, informa a coordenadora geral da Rede Xique Xique, Nara Lima. Em outro recanto do Semiárido, a jovem indígena Raquel Ferreira, que mora na aldeia indígena Tremembé Barra do Mundaú, localizada no município de Itapipoca, estado do Ceará, conta que a sua região sempre teve fartura de água, porém, nos últimos anos, já é possível sentir a escassez hídrica como consequência das mudanças climáticas.
Segundo Raquel, o seu povo sempre adotou práticas agroecológicas no cultivo de alimentos. Mas ela reconhece que a parceria com as organizações para a produção agroecológica fortaleceu a produção alimentar na aldeia. “Melhorou o acesso de água dentro dos quintais produtivos. Com isso, podemos ver que é possível conviver com o Semiárido e mostrarmos a importância dos povos indígenas no combate às mudanças climáticas”, explica Raquel. Na aldeia Tremembé, as famílias indígenas da comunidade cultivam várias espécies de legumes, verduras e frutas nos quintais produtivos para o alto consumo.
Raquel também reconhece que a agroecologia se adequou à forma como ela e o seu povo se relacionam com a alimentação. “Desde pequenos, nós somos ensinados que o alimento é o que nos conecta à terra e aos nossos ancestrais, por isso, cuidar dos nossos solos é fundamental para termos um alimento saudável. Um exemplo disso são os nossos cultivos nos nossos territórios: mandioca, milho, feijão, batata, banana, mamão, plantas medicinais”, pontua Raquel.
Em ambos os casos, a combinação entre valorização da sabedoria popular, uso de técnicas agroecológicas e tecnologias de convivência com o Semiárido formam o alicerce das experiências de produção alimentar relatadas pelas jovens agricultoras. Este alicerce é mais resiliente a dois dos principais efeitos das mudanças do clima, que afetam o Semiárido brasileiro: as estiagens mais severas e a desertificação.
A técnica de campo da organização não-governamental Centro Feminista 8 de Março (CF8), que assessora o grupo de agricultoras do assentamento Mulungunzinho, localizado em Mossoró, no semiárido do Rio Grande do Norte, Arineide Carlos, afirma que “o acesso às tecnologias hídricas fez a diferença para que as mulheres conseguissem manter a produção de alimentos. Algumas delas, usam os sistemas de reúso de água cinza e garantem que o crescimento da planta é maior com a água reaproveitada. A produção dos quintais produtivos das mulheres é que realmente sustenta este país, mas como não é contabilizado, não é visibilizado”, conclui.
O assentamento Mulunguzinho conta com o abastecimento de água de uma adutora, porém, segundo Arineide a “água é de péssima qualidade e custa caro”, o que inviabiliza o seu uso na plantação. O plantio é viabilizado pela água da cisterna de 52 mil litros conquistada pelas mulheres. A produção, que teve início em 1999 com um canteiro de alfaces, hoje, conta com legumes, frutas e com uma unidade de beneficiamento de polpas gerida de forma coletiva pelas mulheres. As mulheres de Mulunguzinho integram a Rede de Comercialização Xique Xique.
Sistematizando e irradiando conhecimentos - A ampliação de experiências resilientes às mudanças climáticas depende do aprimoramento das técnicas agroecológicas, bem como da sua sistematização e difusão. Com esse objetivo, a ASA e a Plataforma Semiáridos da América Latina chancelam o projeto DAKISemiárido Vivo, que abrange três das quatro áreas secas do continente e possui um componente específico dedicado à formação. A Plataforma Semiáridos é outra rede de organizações da sociedade civil que atua nas áreas secas da América Latina.
As ações do DAKI são ancoradas por três organizações: no Brasil, a Associação Programa Um Milhão de Cisternas (AP1MC), entidade jurídica que representa a rede ASA. Na Argentina, a Fundação para o Desenvolvimento em Justiça e Paz (Fundapaz). E, em El Salvador, a Fundação Nacional para o Desenvolvimento (FUNDE). O apoio financeiro vem do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), ligado às Organizações das Nações Unidas (ONU).
De acordo com a coordenadora do componente de formação do Daki, Rodica Weitzman, ao longo de todo o projeto, três eixos irão guiar a ação: a sistematização, a divulgação e o uso das experiências em cursos de formação. “A sistematização é para dar visibilidade às experiências e usá-las como subsídios de uma reflexão crítica no programa de formação”, explica Rodica.
Tanto a experiência da Rede Xique-Xique quanto a da Tribo Tremembé serão sistematizadas no projeto DAKI Semiárido. Elas irão servir como ferramenta pedagógica nas aulas do Programa de Formação em Agricultura Resiliente ao Clima, que se inicia nesta quarta, 9, envolvendo 1,3 mil agricultores(as), povos indígenas, comunidades tradicionais e técnicos e técnicas com experiência em assistência rural, das três regiões de atuação do projeto - Semiárido do Brasil, Chaco argentino e Corredor Seco em El Salvador. A formação conta com 996 mulheres inscritas, ou seja, 58% do total de participantes.
“Ao longo do programa de formação, que possui duração de dez meses, núcleos locais, compostos pelos participantes do curso, irão se reunir para aperfeiçoar a construção de conhecimento em períodos inter-modulares, que ocorrem a cada três meses. Além disso, ao final da formação, os(as) participantes deverão implementar um plano de ação em agricultura resiliente ao clima,” conclui Rodica.
O futuro dos territórios sustentáveis - Na avaliação da Engenheira Agrônoma e integrante do Grupo de Trabalho de Mulheres da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), Elisabeth Cardoso, as experiências das jovens mulheres da Rede Xique-Xique e da Tribo Tremembé recriam o “ambiente diverso, típico da agricultura familiar agroecológica, que é mais parecido com a natureza”, explica. Isso faz com que este tipo de agricultura se adapte melhor às mudanças do clima. Por outro lado, ela avalia que o “agronegócio é mais frágil, mais afetado pelas mudanças climáticas, devido às monoculturas”, destaca.
Olhando para o futuro, ela acredita que a implementação de políticas públicas de valorização da sabedoria das mulheres, bem como das suas experiências produtivas depende, antes de mais nada, do reconhecimento de que elas são produtoras de alimentos. Com isso, “é importante implementar políticas de fomento dos quintais produtivos, oferecer assistência técnica específica para as mulheres e adotar políticas voltadas à comercialização, para ser justo com as mulheres que alimentam o mundo, que são detentoras de direitos”, conclui Elisabeth.
A pesquisadora e integrante da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), Maria Emília Pacheco avalia que o momento atual é ruim para as mulheres agricultoras e enfatiza que experiências como as da Rede Xique Xique e da Tribo Tremembé ocorrem pela “capacidade de resistência das mulheres". Em um ano eleitoral, segundo ela, é importante atentar para o que ocorre no Congresso Nacional onde “o PAA foi extinto, projetos tentam alterar a configuração do Pnae, o PL Assis de Carvalho foi aprovado, trazendo apoio para a agricultura familiar, mas ao que eu sei nada aconteceu ainda”, alerta.
Maria Emília destaca que, enquanto a agricultura familiar foi enfraquecida no governo atual, o agronegócio recebeu vários incentivos. Em um cenário político favorável à agricultura familiar, ela defende que sejam adotadas políticas de incentivo à "auto-organização das mulheres, à formação de redes de comercialização, ao reconhecimento do direito dos povos indígenas sobre a terra, à retomada das políticas de compras públicas. É preciso substituir o verbo ‘destruir’, vigente no governo atual, pelos verbos ‘reconstruir, criar’”, destaca Maria.