O Brasil vive num caminho de retrocessos em busca de uma suposta eficiência econômica. O biênio de recessão do PIB tornou-se o mote para o show diário da imprensa que corrobora com a ideia de que aquilo é bom para o país. O novo cenário para a educação traduz muito desse caminho. Com investimentos congelados e uma lei que reforma as bases do ensino médio aprovada às pressas e sem participação popular (baseada numa medida provisória), a educação pública segue o rumo da educação técnica, voltada a formar mão de obra para a terceirização, contribuindo para enfraquecimento do modelo de trabalho que estabelece mais seguridade. Um cenário perfeito para a exploração da trabalhadora e do trabalhador que é mais profundo do que se imagina.
Sigamos a lei que reforma o Ensino Médio. Ela vai permitir um aprofundamento nas desigualdades através de uma educação que não prepara para uma reflexão humana e política em torno dos contextos sociais. Ela entende sua função como algo com fim técnico, para formar bons técnicos que não serão provocados a entender lugares sociais. É o que percebe a jovem agricultora Mônica Cabral, 19 anos, do Assentamento Caiana, no município de Massaranduba, no Semiárido paraibano. “É desafiador pensar num projeto de continuidade no campo numa conjuntura em que a proposta de educação que esse governo coloca, por exemplo, tira o direito dessa geração de poder escolher o que ela quer pra vida dela. Você sai capacitado pra assumir uma determinada função em que não vai ter mais tempo de estudar, em que vai estar desenvolvendo aquele trabalho pro resto da vida. Isso mostra como esse governo não está para nós e está para uma burguesia que quer ditar como que a gente quer viver”.
Segundo a nova lei, será possível um desmembramento do currículo comum do ensino médio. Ele será dividido entre um conteúdo comum reduzido e assuntos específicos, no qual a educanda e o educando poderão escolher um roteiro para cursá-lo (linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas ou formação técnica). Com isso, a formação política e humana será separada de um conteúdo voltado à formação técnica. É justamente o contrário do que se construiu, ao longo dos anos, pelas ações de educação contextualizada para convivência com o Semiárido, cujas continuidades estão ameaçadas pelas reduções federais.
A proposta da educação contextualizada parte do princípio de trazer para a sala de aula e para as vivências da escola a riqueza social, a cultura e a biodiversidade da região Semiárida, além dos desafios políticos enfrentados pelos diferentes povos e territórios. Para tornar essa proposta uma realidade, é preciso, dentre outras ações, investir na formação continuada de educadores/as e professores/as. “Conheci professores que ao olharem pelas janelas de suas salas para os roçados do lado de fora, não enxergavam ali um conteúdo educativo”, observa Manoel Roberval da Silva, da coordenação do Programa Paraíba, da AS-PTA, no Polo da Borborema, no Semiárido paraibano. “O que a gente fez desde 2002 foi provocar e promover uma educação que fosse contextualizada para crianças e para a juventude através de uma educação que chamamos de ‘não escolar’. Conseguimos dialogar com mais de 400 professores e professoras, coordenadores pedagógicos, diretores de escola, secretários de educação e outros para refletir sobre a educação contextualizada e isso tem um significado importantíssimo para o Território da Borborema porque o trabalho que estava sendo construído como ‘não escolar’ passou a ser realizado nas escolas a partir desse diálogo.”
Para a jovem Janaynna Marques, 19 anos, moradora da zona rural do município de Tianguá, no Semiárido cearense, e ex-educanda da Escola Família Agrícola (EFA) de Ibiapaba, localizada no mesmo município, a formação precisa possibilitar ao jovem a percepção que tem vez e voz. “Na EFA a gente percebeu que podia dar nossa opinião.”
O surgimento da escola, que traz muito das vivências de outras EFAs presentes no Semiárido brasileiro e trabalha na perspectiva de uma educação contextualizada, só foi possível pelo desejo das famílias agricultoras da região de investir na formação das e dos jovens para a convivência com o Semiárido. Para as famílias, o ensino formal reduzia as chances da permanência da juventude enquanto agricultora já que a orientação do ensino formal indicava a busca de emprego fora do campo. Na EFA de Ibiapaba, o curso percorrido por Janaynna teve duração de três anos e terminou no final de 2016. Voltado para a convivência, a jovem passava quinze dias na escola e, em seguida, voltava para o contato familiar e da comunidade por quinze dias, num movimento de aprendizagem escola-comunidade. Durante o período, Janaynna construiu uma percepção política de ser sujeito na aprendizagem, o que contribuiu para voltar como voluntária no processo seletivo da nova turma, em 2017.
“A gente vinha de um estudo que o professor chegava em sala de aula, dava o assunto e depois prova. Na EFA não, o professor chega com um determinado assunto e se preocupava de que forma era melhor pra gente aprender, de que forma a gente podia ver o assunto na realidade da gente. A partir do momento que você é educando de uma EFA, você sabe se posicionar sobre os assuntos. No final do terceiro ano, todo mundo sabia falar sobre política pública para o campo, sabia o que era gênero e sexualidade, sabia o que era agroecologia, que é o ponto forte da EFA.”
Nesse sentido, projetos como o da Escola Família Agrícola são fundamentais para permanência do jovem no campo e para a segurança alimentar, como afirma Mônica Cabral. “A gente tem uma produção alimentar em que 70% da alimentação vem da agricultura familiar. Então se não houver uma continuidade, se não houver sucessores, então a gente não vai ter uma garantia de alimentação.” Ainda, a juventude do campo sente a necessidade de ocupar os espaços políticos para evidenciar seus anseios. Para Mônica, “representação não é tudo, mas representação já é muito. Ter representatividade num determinado espaço político de construção já ajuda a debater o tema. Na educação contextualizada, eu vou saber quem eu sou, eu vou ter uma identidade, eu vou aprofundar sobre a cultura de onde eu vivo. Isso ajuda a fortalecer a nossa ideologia, a realidade do campesinato. Quando é uma juventude empoderada, ela vai defender sua identidade em todos os espaços.” A contramão, por fim, é o projeto defendido pelo governo de Michel Temer.
Durante o IX Encontro Nacional da Articulação Semiárido Brasileiro, realizado em Mossoró/RN em novembro de 2016, as juventudes do Semiárido estiveram presentes e organizaram uma Plenária que proporcionou espaço de debate e elaboração de uma carta sobre os anseios dos jovens do campo e da cidade. Entre as temáticas levantadas, estavam a educação contextualizada para a Convivência com o Semiárido e as políticas públicas de crédito pra juventude.
“As juventudes camponesas do Semiárido brasileiro, compostas de diversas etnias e gêneros, são protagonistas de sua própria história. Hoje, os/as jovens vivenciam novamente uma conjuntura política repressiva que, a todo o momento, nos tira direitos básicos de viver e permanecer no campo. Dentre os fatores que nos “obrigam” a sair do campo, é possível destacar o modelo de educação descontextualizada que desvaloriza nossa realidade semiárida, além de não formar cidadãos/as conscientes, deixando em última instância a formação política. (...) Sem comentar as politicas públicas, cuja burocracia nos impede de acessar créditos rurais e políticas de comercialização nos mercados de consumo popular (FA, PAA, PNAE, etc.), extraviando nosso direito ao processo de autonomia econômica”, evidencia um trecho do documento.
Para Lucas Martins, coordenador regional de Juventude Rural da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetaemg), no Norte de Minas, que tem 24 anos e é morador do município de Francisco Sá, o atual governo cortou verbas já garantidas pela antiga estrutura do governo de Dilma Rousseff para a execução de projetos locais que pudessem estimular a autonomia dos jovens na concepção e na gestão de pequenos empreendimentos. “No curso de agroecologia que estamos fazendo pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, tínhamos 60 jovens formadores e cada um deles mais 15 jovens de base organizados em turmas que deveriam montar um projeto para executar no final do curso. E cada jovem foi sonhando: o que nós estamos precisando? O que nossa comunidade está precisando?... Com o fim do governo Dilma, o recurso separado no antigo MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário] foi a quase zero. A juventude ficou desacreditada se vale a pena sonhar ainda...” Para Lucas, esses retrocessos geram incertezas para os e as jovens que querem permanecer no campo. “Da minha região, havia 32 jovens no curso, mas só 17 continuaram – muitos foram trabalhar em fábricas no sul [de Minas Gerais].”
Lucas participa hoje, 31 de março, junto a outras lideranças da juventude do Norte de Minas Gerais, das manifestações contrárias às reformas trabalhista e da Previdência propostas pelo atual governo federal e que estão programadas em todo o país. “A luta não pode parar não, a gente tem que unir forças!”. Os atos e protestos de hoje fazem parte de uma preparação para uma greve geral marcada para o dia 28 de abril.