Desertificação
30.08.2017
Combate à desertificação: lições das comunidades rurais

Voltar


Por Luciano Marçal da Silveira*

A desertificação é um dos mais relevantes processos de degradação ambiental e atinge diretamente mais de um bilhão de pessoas no mundo, em sua grande maioria, famílias camponesas, povos e comunidades tradicionais. Pelo menos metade do Semiárido Brasileiro (SAB) já é afetada pela desertificação em variadas intensidades, sendo que 20% dele (181 mil km2 ) encontra-se em situação grave e muito grave (MMA – PNUD, 2004). Essa cifra é particularmente preocupante quando consideramos que o nosso semiárido é o mais populoso do planeta: com 22,6 milhões de habitantes (12% da população brasileira), 38% dos quais residindo nas áreas rurais (IBGE, 2010). As mais de 1,5 milhão de famílias agricultoras que vivem no SAB representam mais de um 1/3 dos estabelecimentos agrícolas familiares do país. Embora as unidades familiares com menos de 10 hectares representem 60% (um milhão de estabelecimentos) do total da região, ocupam apenas 6% das terras, evidenciando um contexto de enorme concentração fundiária. Também é no SAB que se localizam 750 dos mil municípios de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e 2/3 dos pobres rurais do país (IBGE, 2000). Não há no Brasil outro problema ambiental que coloque em risco tamanha área e tal contingente de pessoas.

O SAB é marcado pela predominância do bioma Caatinga, o mais vulnerável à desertificação do país em razão da conjugação de características edafoclimáticas, como baixos índices pluviométricos, irregularidade das precipitações, alta incidência de radiação solar e solos rasos, com baixa capacidade de retenção de água e muito suscetíveis à erosão. À fragilidade natural do bioma, somaram-se os impactos das pressões antrópicas sobre os ecossistemas e, mais recentemente, os efeitos das mudanças climáticas globais.

Entretanto, pode-se atribuir a magnitude que a desertificação vem assumindo no SAB, em maior medida, ao modelo de desenvolvimento que orientou a ocupação da região, caracterizado pela histórica concentração de riquezas (terra, água) e, mais recentemente, pela imposição do paradigma técnico científico da Revolução Verde. Essa combinação, que integra elementos estruturais arcaicos/conservadores e “modernizadores”, tem sido responsável pela profunda alteração da paisagem e pelo rompimento dos ciclos naturais que garantem a reprodução da fertilidade dos ecossistemas. Os padrões de intensificação produtiva baseados nas monoculturas e na agroquímica levaram à simplificação exacerbada dos sistemas de produção, distanciando muito o funcionamento dos agroecossistemas em relação aos ecossistemas naturais. Como resultado, assistimos a ritmos acelerados de degradação dos recursos naturais associados a processos de exclusão social sem precedentes.

No semiárido, esse padrão de modernização conservadora se expressa principalmente por meio de duas frentes. De um lado, temos a constituição de perímetros irrigados viabilizados pela construção de grandes obras hídricas públicas voltadas a atender a demandas do setor agroexportador (principalmente a fruticultura). Nesse caso, a conjugação do uso intensivo de água e insumos químicos, num ambiente de solos rasos e com níveis elevados de evaporação potencial (3.000 mm/ano), vem gerando processos alarmantes de salinização, poluição e degradação ambiental. Segundo dados do Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN-Brasil), de 2005, cerca de 15% das áreas dos perímetros irrigados já se encontravam em estágios avançados de salinização. De outro lado, na maior parte da região, a modernização orientou-se para a expansão e a intensificação dos sistemas pecuários, com forte ênfase na bovinocultura. Ignorando o enorme potencial forrageiro da caatinga, essa atividade econômica foi responsável pela marcante destruição da cobertura vegetal nativa para a formação de pastagens¹ . Segundo o IBGE (2006), 43% da área ocupada com fins agropecuários são cobertos por pastagens. O sobrepastoreio provocado pela elevada carga animal é regra e exerce forte pressão sobre os recursos naturais. A insustentabilidade desse modelo se expressa principalmente durante os episódios de seca extrema, como o que estamos vivenciando no ano agrícola de 2012-2013, com a morte de milhares de animais, sobretudo bovinos, e a diminuição do efetivo pecuário do semiárido (ovinos, caprinos e bovinos) em mais de 30%.

Cabe destacar que a maioria da população que vive nas áreas rurais do SAB esteve à margem dos processos de desenvolvimento implementados na região. Com propriedades cada vez mais fragmentadas e diminutas, em função dos mecanismos hereditários de partilha, no decorrer das gerações, as famílias agricultoras foram levadas a intensificar o uso do solo e da vegetação natural sem que, para tanto, introduzissem ajustes na base tecnológica, que permaneceu fundamentada em métodos extensivos de uso e de manejo ambiental. Nessas condições, os sistemas familiares de produção passaram a pressionar os recursos naturais além dos limites de sua tolerância ecológica, induzindo a processos degradativos dos ecossistemas em níveis incompatíveis com a geração de rendas satisfatórias. Estabeleceram-se assim círculos viciosos em que a pauperização social e a degradação ambiental se retroalimentam e se reforçam mutuamente, levando a situações-limite de miséria e desertificação.

Ao longo dos séculos, em decorrência do progressivo adensamento populacional, as sucessivas secas no semiárido, embora características do clima regional, foram se traduzindo num problema socioambiental cada vez mais agudo. Como ressaltam Marengo et. al. (2007): As mudanças climáticas globais anunciam para a região semiárida um aumento dos extremos climáticos e o agravamento do seu caráter errático, ampliando a vulnerabilidade dos sistemas de produção e comprometendo ainda mais seus mecanismos internos que conferem resistência a essas flutuações.

O enfrentamento dessa tendência, em que a agricultura no semiárido se apresenta a um só tempo como causadora e vítima dos processos de desertificação, exige transformações no estilo de desenvolvimento rural na região, o que necessariamente implica a reversão do enfoque hoje ainda dominante, centrado exclusivamente na busca do crescimento econômico. Trata-se, em primeiro lugar, de construir uma perspectiva voltada para valorizar as potencialidades naturais do bioma Caatinga, desenvolvendo métodos de manejo agrícola que permitam o alcance de um crescente equilíbrio entre a necessidade de intensificação do uso dos solos e a capacidade de regeneração das condições biofísicas que subsidiam a fertilidade dos agroecossistemas.

Nesse sentido, as características singulares da Caatinga, entre elas, a enorme biodiversidade e a grande heterogeneidade ambiental, impõem a necessidade de geração de formas inéditas de uso e manejo produtivo mais ajustadas às condições ecológicas do semiárido brasileiro. As bases para seu desenvolvimento se encontram em maior medida no amplo acervo de conhecimentos acumulados pelas comunidades locais ao longo da história a partir de sua convivência estreita com as limitações e potencialidades desse ambiente/bioma e na experimentação de múltiplas variantes de uso e manejo dos recursos locais. Nesse processo de transformação e inovação, não se pode, portanto, prescindir da participação ativa das milhares de famílias agricultoras que vivem na região, fortalecendo o protagonismo das agricultoras e agricultores como gestores do conhecimento e dos recursos locais e incentivando a construção de estratégias dirigidas a ativar redes locais de inovação e gestão coletiva de bens comuns (água e biodiversidade). É também imperativo que esse processo esteja acompanhado de reformas profundas na base fundiária e na estrutura hídrica de forma que a agricultura familiar camponesa possa efetivamente se constituir como base econômica e sociocultural capaz de promover formas de manejo produtivo condizentes com as especificidades ecológicas do semiárido brasileiro.

Fonte: Revista Agriculturas | v. 9 - n. 3 | dezembro de 2012

--
* Membro da Coordenação da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia
¹ As práticas extrativistas de lenha de caráter predatório para fins não agrícolas (siderurgia, olaria, padarias, etc.) também exercem papel relevante nos processos de desmatamento da vegetação nativa.