PROTEÇÃO DO CERRADO
30.08.2022
Tribunal Permanente dos Povos condena Estado brasileiro e empresas pelos crimes de ecocídio e genocídio dos povos do Cerrado
Ecocídio significa a morte de um ou mais ecossistemas, já o genocídio é caracterizado por impedir um povo de existir de acordo com o seu modo de ser; uma das causas do ecocídio, por exemplo, é o desmatamento do Cerrado, que atingiu a marca de 100 milhões de hectares

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Por Adriana Amâncio

O agricultor Jamilton Santos cultiva alimentos de forma sustentável na área de fecho de pasto Gado Bravo; avanço do desmatamento ameaça oferta de recursos naturais para a sobrevivência das famílias na localidade - Acervo Pessoal Jamilton Santos

Há 70 anos, o Cerrado brasileiro era transformado em celeiro de produção de grãos ocupado por grandes empresas internacionais do agronegócio. Essa intensa atividade de produção de commodities, ou seja, matéria - prima, tem como base o desmatamento, que já pôs abaixo 100 milhões de hectares, o equivalente à metade de toda a vegetação nativa do bioma. Os dados foram divulgados pelo advogado popular da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia (AATR), Maurício Correia,

Além disso, o uso massivo de agrotóxicos, que soma cerca de 600 milhões de litros por ano, tem inviabilizado a vida das comunidades tradicionais. Por essas práticas, o Estado brasileiro e empresas do agronegócio foram condenados pelos crimes de ecocídio e genocídio, durante sessão especial do Tribunal Permanente dos Povos, realizada na Universidade Estadual de Goiana (UEG), no mês de julho. A condenação é simbólica e busca mobilizar e chamar a atenção de toda a sociedade para a ocorrência de tais crimes.

“O Tribunal reconhece como crime de genocídio quando o povo é obrigado a se assimiliar a um projeto colonial, sendo impedido de existir como um povo diferenciado. [Também] são destinatários desta condenação, os governos estaduais do Cerrado, o Japão, por ter se aliado a esse projeto que iniciou a exploração do Cerrado, e a China, principal compradora dos produtos oriundos dessa atividade”, afirmou a ex- procuradora da República e integrante do Júri, Deborah Duprat. A sessão foi peticionada pela Campanha em Defesa do Cerrado, que apresentou 15 casos de violação de direitos humanos de comunidades tradicionais, distribuídos em nove estados das regiões Norte, Nordeste, Centro - Oeste e Sudeste.

A concentração da água é outro problema que afeta a região e inviabiliza as condições de vida e produção alimentar dos povos tradicionais. Considerado o berço das águas, o Cerrado abriga as nascentes de nove das doze bacias hidrográficas brasileiras. Segundo dados divulgados durante a sessão, 50% de todas as outorgas da Agência Nacional das Águas (ANA) estão concentradas na região. Deste total, 60% estão em nome de empresas do agronegócio.

Matopiba: um bom exemplo - No Oeste da Bahia, a mais antiga fronteira de expansão agrícola do Matopiba, região essencialmente formada por Cerrado e que engloba os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, comunidades de fundo e fecho de pasto sofrem com a violência, o desmatamento, o uso massivo de veneno, e a captura de água.

O ambientalista Marcos Rogério dos Santos, estima que mais de oito milhões de hectares de vegetação tenham sido desmatados, entre os municípios de Formosa do Rio Preto e Côco, no oeste da Bahia. “Além de comunidades de fundo e fecho de pasto, nestas áreas vivem indígenas, quilombolas e geraizeiros”, complementa ele.

O avanço do monocultivo de soja na região é composto por um combo, que envolve a grilagem - processo de aquisição de terras por meio da falsificação de documentos - e a violência para a tomada do território. Marcos Rogério afirma que o cercamento das terras é um processo violento. “Já houveram assassinatos de agricultores [lideranças]. Um dos mais impactantes foi o do advogado Eugênio Lyra, ocorrido, em praça pública, um dia antes dele depor na CPI da Grilagem da Bahia”, relembra Marco. O advogado foi assassinado, à luz do dia, em 22 de setembro de 1977, há 45 anos.

Uso massivo de agrotóxicos - O uso extensivo de agrotóxicos também integra o combo, inclusive com substâncias proibidas por lei no Brasil. Marcos relembra que, após o surgimento de uma lagarta misteriosa em uma lavoura de soja, as empresas começaram a importar um tipo de agrotóxico proibido pela lei brasileira.

Membros das comunidades reivindicaram na justiça a proibição do uso desse produto, entretanto, o Ministério Público concedeu uma liminar, permitindo que as empresas continuassem fazendo uso da substância. Vale lembrar que a contaminação com agrotóxicos não se resume ao local da aplicação. Com o efeito deriva, essas substâncias caem no lençol freático e contaminam as águas, o solo e o ar, chegando às áreas de produção alimentar das famílias tradicionais e contaminando a colheita.

Por fim, a captura da água fecha o combo. Os pivôs centrais que irrigam os monocultivos de soja concentram um grande volume de água, além disso, revela Marcos, as plantações estão concentradas nas áreas de recarga do Aquífero Urucuia, principal fonte de abastecimento dos rios da região. “Sem vegetação, a capacidade do solo de reter água diminui. Com isso, riachos que eram perenes se tornaram temporários e muitas nascentes secaram”, denuncia o agricultor.

Essa combinação criou no Cerrado baiano um cenário de fome e insegurança alimentar, de medo e violação dos direitos humanos, promovido por conflitos constantes, avalia Marcos. ”Todas as comunidades que perderam o seu rio, hoje, estão empobrecidas. As cidades também estão afetadas, pois os caminhões chegam do campo vazios, sem nada para vender. É preciso regularizar e garantir o direito das comunidades aos territórios e recuperar a capacidade de recarga dos aqüiferos”, defende Marcos.

Um pouco de história - O Tribunal Permanente dos Povos é um fórum internacional de opinião, que debate e julga simbolicamente violações aos direitos humanos praticadas contra os povos e minorias. Surgiu em 1979, inspirado no Tribunal Russell, dedicado a julgar crimes de guerra.