“Criaram aquelas políticas de máquinas agrícolas, aqueles pacotes e, consequentemente, naqueles pacotes vieram as sementes transgênicas”, explica Dona Josélia Inácio, agricultora do interior do Rio Grande do Norte. A história é bem fácil de compreender: as sementes que sempre garantiram a reprodução das espécies vegetais e, assim, alimento para as pessoas e animais, foram impactadas com a revolução verde e foram perdendo suas características, sendo substituídas por sementes produzidas em laboratórios à base de agrotóxicos, necessitando cada vez mais destes para serem cultivadas.
Quem tinha paixão pelas sementes nativas se preocupou em guardar, proteger, daí a origem do nome “sementes da paixão” no estado da Paraíba. Também conhecidas como sementes crioulas, elas podem possuir diferentes nomes em outras regiões do Semiárido, onde são preservadas e protegidas por guardiãs e guardiões. Existem diversas experiências desta natureza no Semiárido brasileiro, espécies que não se perderam graças à ação de agricultores e agricultoras que mantêm Bancos e Casas de Sementes.
Esta prática tem sido reconhecida e impulsionada por diversos governos a partir da proposição de organizações sociais e populares. O estado do Rio Grande do Norte, por exemplo, ouvindo as reivindicações dos movimentos sociais e instituições que defendem a Convivência com o Semiárido, a exemplo da ASA, tem investido recursos públicos na compra e distribuição de sementes livres de transgênicos, conforme explica o coordenador de agroecologia e Convivência com o Semiárido da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Rural e da Agricultura Familiar – Sedraf, Alessandro Nunes.
“Esta ação com sementes crioulas não é nova no Rio Grande do Norte, como também não é uma ação recente no Nordeste como um todo. Essa experiência já estava acontecendo no estado (…) e isso foi uma reivindicação da sociedade civil”, esclarece Alessandro. A coordenadora da ASA Potiguar, Ivi Aliana Carlos, confirma: “Ela [a Política] é produto das sementes semeadas pelos movimentos sociais (…), é uma política que é resultado desse processo de mobilização e de luta”, especialmente os encontros, trocas de sementes, Bancos e Casas de Sementes, intercâmbios, ou seja, “a política pública é a concretização desse trabalho de organização da sociedade civil”, reforça.
Em 2019, foi lançado edital público com orçamento de R$ 500 mil para compra de sementes nos dez territórios do estado. Para fortalecer esta ação e garantir continuidade, em 2021, a deputada estadual Isolda Dantas (PT) conseguiu a aprovação da Lei estadual Nº 10.852/21 , que cria a Política Estadual de Sementes Crioulas.
A partir de então, o governo do estado lançou edital para compra de 96 toneladas de sementes de feijão, arroz vermelho, milho, sorgo, fava e gergelim, produzidas de forma agroecológica em propriedades da agricultura familiar. Uma meta que deve ser concluída este ano e corresponde a um investimento de quase um milhão de reais, segundo Alessandro Nunes.
Agroecologia e economia: As sementes vendidas ao estado devem ser livres de transgênicos e o processo de comercialização é mediado pela União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes), que compra a produção dos/das agricultores/as e vende à Sedraf. Atualmente, cerca de 40 famílias fornecem as sementes, fortalecendo o trabalho de multiplicação das sementes crioulas e gerando renda.
O agricultor Francisco Edjarles Fernandes, que é um dos fornecedores de arroz vermelho, conta que recebe R$ 9,30 pelo quilo de arroz, um valor que considera justo. Ele também conta que a palha de arroz é aproveitada para alimentação dos rebanhos e fornece ainda alimentos para a merenda escolar no município de Apodi, onde mora com sua família na comunidade de Santa Rosa II.
Para Ivi Aliana Carlos, os valores pagos pelas sementes são considerados justos, visto que é muito comum agricultores/as serem lesados no processo de comercialização quando não há preocupação social e valorização de quem produz, prevalecendo, em muitos casos, o favorecimento de atravessadores.
Público-Alvo - As sementes adquiridas pela Sedraf são distribuídas pelo Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte (Emater) e a meta atual é atender seis mil famílias. A agricultora, cisterneira, artesã e pescadora Ana Maria da Silva, da região de Maurício de Oliveira, município de Assu, é uma guardiã nata de sementes e desde 2010, com incentivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT), guarda as sementes nativas da Caatinga. Ela possui um viveiro com 23 espécies da Caatinga, além de plantas frutíferas. Em sua propriedade, Dona Ana comercializa mudas e sementes e é uma das beneficiárias do Programa de Sementes Livres de Transgênicos. “Recebi o ano passado uma bela de uma semente, eu fiquei muito grata, inclusive eu tinha perdido essas sementes (…), que foi a semente do pingo de ouro e da costela de vaca”, conta.
Já Josélia Inácio, ainda espera ser contemplada. “Eu sou uma defensora das sementes crioulas”, afirma a agricultora, que coordena uma Casa de Sementes desde 2018 na região de Mato Grande, município de Bento Fernandes. “Eu sou uma semente da ASA (…), me identifico muito com esse trabalho, acho que o caminho é esse”, diz ela preocupada com a necessidade de ajudar as/os agricultores/as a diferenciar o que é semente e o que é grão. Nas palavras dela, “tem pessoas, até com certa idade, que não compreendem” e acabam multiplicando a mesma semente que compra para finalidades como ração animal, em sua maioria, vindas de outras regiões ou mesmo contaminadas, principalmente o milho.
Para ajudar a mudar esta realidade apontada por Dona Josélia, o acompanhamento às famílias envolvidas no Programa é feito pela Emater e por organizações sociais que prestam serviço de assessoria técnica e extensão rural. Via editais da Sedraf, entidades filiadas à ASA, fazem mapeamento, mobilização das famílias agricultoras e mediação com as cooperativas, além do trabalho de incentivo à produção e transição agroecológica.
Desafios - As sementes devem ser distribuídas na mesma região onde são produzidas, pois deve-se considerar a adaptação às condições locais de clima e solo. Ivi Aliana destaca que esta prática é essencial, uma vez que é indispensável entender que nem toda semente se adapta em todos os lugares. Ela ressalta que os Bancos Comunitários de Sementes já experimentavam isto, uma forma de guardar “as questões culturais, os aspectos climáticos de cada território, de habitat daquela semente”, pontua.
Outro aspecto que desafia a gestão e as famílias agricultoras é o alto índice de contaminação das sementes hoje existentes nas comunidades, o que tem exigido todo um trabalho de assessoria técnica para transição agroecológica. O milho, por exemplo, é uma semente que é testada e cerca de 70% das amostras registram que não são mais crioulas, não podendo serem compradas pelo Programa. “O agronegócio é o grande responsável por esta contaminação”, destaca o coordenador de agroecologia e Convivência com o Semiárido do governo potiguar.
Ivi Aliana lembra que “a ASA já denunciava a ameaça, o ataque da contaminação transgênica sobre as sementes crioulas, especialmente o milho (...), agora a gente percebe que é inclusive maior do que a gente esperava”. Para ela, que é agrônoma da equipe do Centro Feminista 8 de março (CF8), isso ajuda a pensar quais as estratégias para romper isso, além do Programa de Sementes. Alessandro defende que é necessário ampliar as formas de enfrentar esse problema, a exemplo de uma ação parlamentar mais incisiva, com a aprovação e implementação de leis e políticas que protejam minimamente essa biodiversidade.
O agricultor Francisco Edjarles também considera um grande desafio enfrentar o uso do veneno, que tende a crescer, caso o chamado Pacote do Veneno seja aprovado no Senado e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro. “Eles [deputados] aprovam porque muitas vezes as empresas patrocinam eles”, opina. O agricultor reivindica ainda maior investimento em assessoria técnica e destaca a necessidade de financiamento público para a agricultura familiar no país.
O chamado Pacote do Veneno (PL 6299/02) foi aprovado na Câmara Federal este mês e tem como objetivo flexibilizar ainda mais o uso de agrotóxicos no Brasil. “Não temos necessidade desse Pacote [do Veneno], esse pacote extremamente pernicioso às pessoas, à saúde e à questão ambiental. (...) Fica mais do que provado que é possível a gente produzir com qualidade, respeitando a natureza, os aspectos ambientais e sociais.”, conclui Alessandro.
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