Dia das organizações populares
03.09.2021 AL
“É fundamental a organização popular, a gente não pode abandonar ela”, diz Euzébio Cavalcanti, coordenador da Rede de Sementes da Paixão do Pólo da Borborema
Agricultor defende organização para evitar a entrada de sementes transgênicas nas comunidades, que pode ser facilitada pela extinção do PAA Sementes e pelas estiagens dos últimos tempos, que têm reduzido os estoques dos bancos

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Por Adriana Amâncio - Asacom

Banco de Sementes de Lagoa do Jogo onde são armazenadas as sementes de milho oferecidas em troca das espécies suspeitas de contaminação - Foto: Acervo ASPT-A

O Dia das Organizações Populares, celebrado, neste dia 03 de setembro, este ano, tem a necessidade de defesa das sementes da Paixão, como um exemplo da importância da ação coletiva. Com a extinção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e a criação do Alimenta Brasil, que exclui a modalidade de compra de sementes, o integrante da coordenação da Rede de Sementes da Paixão do Polo da Borborema, Euzébio Cavalcanti, teme a entrada de sementes transgênicas nas comunidades, que devem enfrentar dificuldades de renovar os seus estoques devido às últimas estiagens. 

Para reverter o processo, o agricultor sugere beber da própria fonte. “Apesar da luta ser dura, a gente não pode baixar a cabeça, a resistência tem que continuar. É fundamental a organização popular para reverter esse processo”, afirma. O alerta tem o intuito de preservar uma série de conquistas alcançadas, a partir de 1995, com a organização popular, que levou a criação dos bancos de sementes e, em seguida, a criação da Rede de Sementes da Paixão do Polo da Borborema. 

Um Diagnóstico Rápido Participativo (DRP) realizado no ano de 1993, pelos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de Remígio, Solânea, Lagoa Seca e da organização não - governamental ASPT-A, identificou muitas famílias que armazenavam sementes em casa. Mesmo assim, elas viviam reféns da “politicagem de sementes”, ou seja, a troca do voto por  sementes. 

Um processo de troca de sementes foi iniciado, o que reforçou os estoques, estimulando as famílias a tentarem a comercialização para o governo estadual. O Governo classificava as sementes como grãos e o diálogo não teve êxito. “A organização popular foi adotada como uma estratégia para lutar por políticas públicas”, relembra Euzébio.

 

O agricultor Seu Paulo colhe o milho em sua área reconhecida como livre de transgênicos na comunidade Lagoa do Jogo - Foto: Acervo ASPT - A

O ano de 2002 foi decisivo - Um dos primeiros frutos da organização popular pelas sementes foi o batismo das espécies, no ano de 2002, durante o 1º Encontro Estadual das Sementes Crioulas, nome dado às sementes nativas, cultivadas e passadas de geração para geração pelas famílias agricultoras e os povos tradicionais. 

Na ocasião, o agricultor Dodô, do município de Teixeira, conclamou: “o governo pode trazer a semente que trouxer, mas a gente tem Paixão pela nossa semente”, referindo-se ao valor cultural, outro grande potencial das espécies. Assim surgia o termo Sementes da Paixão.

Além do encontro, a catalogação dos guardiões e guardiãs fortaleceu a marcha em defesa das Sementes da Paixão. “Foi um momento muito especial para nós e nos motivou a seguir com lutas maiores. A gente ocupou a Secretaria Estadual de Agricultura e conquistou a 10.711/03, Lei de Sementes e Mudas”, resgata. 

A “Campanha Não Planto Transgênico para não apagar a minha história”, ação de combate  ao uso de sementes transgênicas levou ao reconhecimento de três comunidades livres de sementes geneticamente modificadas, “os assentamentos Oziel Pereira e Irmã Doroty, e a comunidade Lagoa do Jogo”, orgulha-se Euzébio. 

 

Tema do III Encontro da RIS realizado em 1994 abordou o tema sementes é segurança alimentar tema que permanece atual - Foto: Acervo Esplar

Organização pela vida no campo - O ano de 1991 foi decisivo para que as famílias agricultoras que mantinham casas de sementes no Semiárido cearense, definissem demandas como a valorização da agricultura familiar agroecológica, a luta pela manutenção das famílias no campo, o combate às sementes transgênicas e a promoção  da equidade de gênero para avançar no fortalecimento da cidadania no campo. Para o grupo, a resposta a essas demandas estava na organização popular. Dessa forma nascia naquele ano, a Rede de Intercâmbios de Sementes do Ceará (RIS).

A articulação atuou, de forma ininterrupta, entre os anos de 1991 e 2011. Ao retomar as atividades, no ano de 2015, sob o estímulo do projeto Sementes do Semiárido, o grande fórum passa a se chamar Rede Sementes da Vida. A ideia era congregar as casas e realizar  formações, debates e encontros coletivos. A ideia deu certo e com o passar do tempo, os frutos começaram a ser colhidos. 

“Hoje, eu diria que cerca de 60% das casas de sementes são coordenadas por mulheres. A RIS melhorou as condições de armazenamento e a quantidade de casas de sementes. Outro ponto positivo é o uso do cadastro realizado pelos agricultores como prova de atividade para dar entrada na aposentadoria”, destaca a assessora técnica da Cáritas Regional do Ceará, Glória Carvalho.

 

Tradição reconhecida - A tradição de cuidado com as sementes ganhou uma celebração especial. Realizada, entre os meses de junho e setembro, nos territórios, desde a década de 1980, a Festa da Colheita ganhou mais força com a atuação da RIS. O evento é muito esperado  “reúne muita gente, geralmente tem uma celebração da palavra, faz o resgate da cultura, porque tem a música, o teatro, o reisado. Tem o momento da bênção e da partilha dos alimentos ”, explica Glória. 

No raiar do ano de 2020, a trajetória da RIS foi coroada com mais uma conquista, a aprovação da Lei 17.179, que reconhece as sementes crioulas. No Artigo 2º, o texto destaca: a preservação da agrobiodiversidade e a utilização sustentável de componentes, a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos”. 

 
Sonho, que se sonha junto, vira resistência -  Ainda na década de 70 a Forania do Alto Sertão, articulada com as Comunidade Eclesiais de Base (Ceb’s) deflagrou uma luta pela água e pela segurança alimentar. A demanda por alimentos surgiu do Movimento do Fogo Apagado, que tinha o objetivo de levar alimento às famílias que, quando visitadas por freiras e padres locais, encontravam os fogões de lenha apagados por falta de comida. 

Mesa de convidados do 1º Encontro de Bancos de Sementes de Alagoas que reuniu cerca de 32 comunidades - Foto Acervo Cooppabacs

A Roça Comunitária foi uma alternativa para combater o problema. “Começou um processo de doação. Quem puder traz um quilo, traz dois quilos [de sementes]. E aí montaram uma roça comunitária e a colheita deu origem ao primeiro banco de sementes de Alagoas, isso por volta de 1974”, resgata o diretor da Cooperativa de Pequenos Produtores Agrícolas dos Bancos Comunitários de Sementes de Delmiro Gouveia (Coppabacs), Mardônio Alves.

A notícia do banco de sementes ganhou os ouvidos dos coronéis do Alto Sertão, que não gostaram da emancipação das famílias, que passaram não só a cultivar, mas também doar sementes. “A semente era tida ali como uma moeda de troca e quem tinha sementes, detinha o poder sobre os agricultores”, relembra Mardônio. Pressionados, os freis não se renderam às pressões políticas, mas se retiraram da região. 

Tempos depois, os espaços foram resgatados, contando com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Adquiriram registro jurídico e passaram a ser chamados  de Bancos Comunitários de Sementes (Bacs). Unidos a outros bancos, que surgiram na região do Médio Sertão, formaram a Coppabacs.

Em 1999, com o surgimento da Articulação Semiárido Brasileiro em Alagoas, novos bancos de sementes foram surgindo, levando a realização do 1º Encontro dos Bancos de Sementes de Alagoas, no município de Santana do Ipanema. Neste encontro, que reuniu cerca de 32 comunidades, foram batizadas as “Sementes da Resistência”. O nome, escolhido em uma atividade em grupo, representa a visão das famílias agricultoras, confirmada pelo resultado de um Diagnóstico que comprovou a resiliência das sementes crioulas.

 

Do medo dos coronéis ao plenário da Assembleia -  A simbologia da resistência trazida pelas sementes estimulou as famílias agricultoras a se mobilizarem pelo seu reconhecimento legal. Em 2007, uma experiência de um dos bancos de sementes comunitários, foi apresentada em uma audiência pública na Assembleia Legislativa do estado, levando à criação de um Grupo de Trabalho (GT).

O trabalho deste  GT resultou na aprovação da Lei 6.903/09, que criou o Programa Estadual de Bancos Comunitários de Semente. Para vender as sementes, inicialmente, as famílias tinham que fazer um cadastro físico. Em 2019, o programa foi suspenso e só foi retomado, neste ano de 2021, excluindo as sementes da resistência. 

Representantes dos bancos de sementes participam de reunião do GT para discutir o Projeto de Lei que reconheceu as sementes da resistência - Foto Acervo Cooppabacs

Chamado Planta Alagoas, a ação, agora, realiza o cadastro individual e por meio do aplicativo Agro Mais Perto, “ou seja, sem respeitar os processos de organização social e comunitária”, critica Mardônio. O Programa descumpre um acordo de conduta aprovado no Fundo Estadual de Combate e Erradicação da Pobreza (Fecop), que determina a destinação de, inicialmente, 10% e posteriormente 30%, do orçamento para compra de sementes da resistência. 

“O Comitê Gestor do Fecoep é composto por 12 representantes, dos quais só temos quatro votos. O Governo não obedeceu aquela ata e esses  quatro [representantes] não tiveram força política para fazer com que ele cumprisse as diretrizes. A gente tá tentando ver se recupera o debate para, em 2022, elas [as sementes crioulas] retornarem”,  finaliza Mardônio.