Série Novos Retratos do Velho Chico
22.03.2021
Em vez de esperança, águas transpostas do Velho Chico para o Castanhão, no Ceará, podem trazer doenças
Série Novos Retratos do Velho Chico

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Por Adriana Amâncio - Asacom

Águas dos rio São Francisco rumo ao açude Castanhão no Ceará - Foto Arquivo Diário do Nordeste

Celebrando o Dia Mundial da Água, 22 de março, a Articulação Semiárido Brasileiro, Asa Brasil, lança a série Novos Retratos do Velho Chico. Ao longo de três reportagens, é traçado um cenário sobre o cenário atual do Rio São Francisco, com foco em três grande fatos recentes: os dados das três últimas Expedições Científicas no Baixo Rio São Francisco, o início da transposição das águas Velho Chico para o açude Castanhão, no Ceará, e por fim, a retomada dos debates na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) sobre a implementação da Usina Nuclear de Itacuruba.

Na primeira reportagem, apresentamos os dados das três últimas Expedições Científicas no Baixo Rio São Francisco, que alertaram para o agravamento do assoreamento, da intrusão salina e da contaminação das águas do rio, trazendo impactos para as comunidades, que sobrevivem desta fonte hídrica. Nesta segunda matéria, publicada no Dia Mundial da Água, seguimos para o estado do Ceará, onde as águas do rio São Francisco já começaram a abastecer o açude Castanhão. O pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), João Suassuna, comenta o risco do aumento dos casos de parasitoses nas populações que irão receber essas águas, fazendo com que o recurso, essencial para a proteção contra o novo coronavírus, se torne um vetor de contaminação de outras doenças.

Já no estado de Pernambuco, analisamos o impacto da ampliação das áreas irrigadas no Vale do São Francisco em cerca de 70 mil hectares, a partir da conclusão do Projeto Pontal, em Petrolina.

No estado da Bahia, um problema, há tempos, alertado por pesquisadores e colaboradores da ASA Brasil, já se concretizou: a perda da perenidade no Velho Chico. Na região oeste do estado, os canais abastecidos pelo rio Arrojado, além de outros afluentes, secaram, levando insegurança alimentar às comunidades locais.

 

Esperança frustrada

A bacia do rio São Francisco possui 507 municípios, 74 são ribeirinhos, estes últimos lançam os seus esgotos, sem tratamento, direto no rio. Com a transposição dessas águas, aumenta o risco de contaminação com parasitoses e doenças virais


Para uma parcela da população da região Nordeste em especial, o sonho de contar com água nas torneiras para reforçar o combate à Covid-19 parece ter se tornado realidade. As comunidades abastecidas pelas águas do Açude Castanhão, no Ceará, um dos estados do Nordeste Setentrional, já contam com as águas do rio São Francisco, que começaram a chegar no açude com o início das atividades da transposição, ocorrida no último dia 10 de março.

Isso seria um bom motivo para comemorar neste 22 de Março, Dia Mundial da Água, em meio a uma das maiores crises de saúde pública do país. Esta alegria deve ser dividida com uma preocupação com a qualidade dessas águas. De acordo com o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, Fundaj, João Suassuna, ao longo do seu curso, o Velho Chico recebe esgotos in natura. O transporte dessas águas contaminadas eleva o risco da população abastecida contrair parasitoses e outras doenças. Sendo assim, o líquido que serviria ao combate à Covid-19, na verdade, torna-se um potencial vetor de enfermidades.

“O rio São Francisco possui 507 municípios em sua bacia. Cerca de 74 municípios têm contato direto com o rio. E esses municípios estão lançando os seus esgotos sem o menor tratamento, na calha do rio. Com o início da transposição das águas do rio São Francisco, as principais represas vão ser abastecidas com esta água de péssima qualidade. Vai começar a acontecer um problema de saúde pública! Populações inteiras vão começar a ser acometidas com hepatites, esquistossomose, parasitoses, aquelas oses todas, por meio do uso desta água,” alerta o pesquisador da Fundaj, João Suassuna.

Canal por onde corriam as águas do rio Arrojado, que eram usadas no cultivo de alimentos da comunidade Buriti, no Vale do Arrojado - Foto: Jamilton Magalhães

Uma ameaça que virou realidade - Nas pautas das organizações integrantes e parceiras da ASA Brasil, há décadas, figuram problemas ambientais muito além daqueles mencionados nos relatórios da Expedição no Baixo Rio São Francisco . Em 2015, por exemplo, o assessor da Comissão Pastoral da Terra e colaborador da ASA Brasil, Roberto Malvezzi, chamava a atenção para a fragilidade da perenidade do São Francisco.

O seu alerta foi profético e o rio Arrojado, que integra o Vale do Arrojado, na região Oeste da Bahia, viu os seus canais criados para garantirem o cultivo de alimentos para as famílias ribeirinhas, secarem completamente. Os relatos feitos pelo professor e colaborador das organizações populares locais que mora às margens do Arrojado, Iremar Pessoa, dão conta de que, com a perda da água, as famílias passaram a "comprar alimentos ultraprocessados e estão perdendo o seu patrimônio genético, ou seja, aquelas sementes guardadas e cultivadas há anos na comunidade”, denuncia

No Vale do Rio Arrojado há seis rios: Arrojadinho, Arrojado, Rio das Éguas, Rio Santo Antônio, Rio do Meio e Rio Guará. No entorno dessas fontes hídricas, habitam 10 mil famílias, que tinham como principal atividade econômica a produção de alimentos com base na agricultura familiar.

“Antes, as famílias daqui só compravam sal e querosene, praticamente todo o resto era cultivado aqui. Agora, sem água para plantar, as famílias precisam comprar tudo de fora. Nós comemos cebola da Argentina, melão do Rio Grande do Norte e outros produtos de fora. Aquele patrimônio genético das espécies que cultivavamos aqui, estamos perdendo. Outra consequência da falta de água é o êxodo rural, que levou muitas famílias a saírem daqui e seguirem para capitais como Brasília e Goiana”, explica o professor Iremar Pessoa.

 

Ocupação maciça do Aquífero Urucuia - Os canais, cuja água era utilizada pelas famílias ribeirinhas no cultivo de alimento, são alimentados com as águas do rio Arrojado construídos pela população, explica Iremar. Além deles, os rios tributários, ou seja, aqueles que alimentam rios maiores, no Oeste da Bahia, também secaram, reforça o ribeirinho.

A ocupação maciça, marcada pela retirada das matas nativas do Aquífero Urucuia, está diretamente relacionada com a escassez de água nos rios do Vale do Arrojado. “O Aquífero Urucuia é o principal responsável pela recarga dos rios do Arrojado. O desmatamento, promovido pela ocupação maciça no local, interfere na penetração da água que fica armazenada no subsolo. Com isso, os rios que recebiam esta água secaram e não recebem mais água”, explica Iremar.

“O rio São Francisco era um rio perene e de alguma forma ainda é um rio perene, mas cada vez mais fragilizado. Quando a gente entra nesta situação recessiva das chuvas permanentemente, é sinal que aqueles mecanismos naturais dos aquíferos e dos afluentes que alimentavam o São Francisco, mesmo em tempo de seca, já estão comprometidos,” aprofunda o agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Roberto Malvezzi. O cenário ao longo da bacia do rio São Francisco é de 178 afluentes, sendo que apenas 99 são perenes, completa o pesquisador, João Suassuna.


Conflitos por água - De acordo com Iremar, a região Oeste da Bahia é marcada por conflitos entre as populações ribeirinhas, o poder público e os fazendeiros. As famílias que vivem no rio, desde a década de 1980, reivindicam justiça nos critérios de licenciamento de terras e ocupações na região. “O Oeste da Bahia é uma grande fronteira agrícola, região de grande produção do agronegócio, que possui propriedades com milhares de hectares de produção”, explica Iremar. Estes usos impactam na garantia dos recursos naturais para as comunidades.

Perenidade, uma questão histórica - Em outras regiões e estados cortados pelo São Francisco, o problema da perda da perenidade se repete. Os rios Pacaratu e Verde Grande, que banham os estados de Minas Gerais e Bahia, já se tornaram intermitentes. Estes são dois importantes afluentes do rio São Francisco. A perenidade é um dos frutos de um processo histórico do uso do rio como recurso para um modelo de desenvolvimento sem ações constantes de conservação, destaca o agente da CPT, Roberto Malvezzi. “Na verdade, a leitura que a gente faz do rio é de uma degradação histórica, que começa com os vapores ainda no século 19, levando ao desmatamento das matas ciliares para abastecer os vapores. Em seguida, com a chegada da Chesf, a construção das barragens e os grandes projetos de irrigação do Vale do São Francisco, até chegar onde estamos hoje”, reflete.

Gestão hídrica, um caminho urgente - Uma política de gestão hídrica adequada, reforça João Suassuna, é o principal caminho para assegurar a recuperação e a saúde do rio São Francisco de modo que ele possa atender aos mais diversos e múltiplos usos feitos do seu curso. “Primeiro, é necessário estabelecer critérios para esses usos que estão sendo dados ao rio nos projetos de irrigação no Oeste da Bahia. Segundo, a gente tem que partir para olhar a revitalização do rio, que já não tem matas ciliares. O rio São Francisco é um rio de barranco, portanto, se você tira as árvores da margem do rio, os dejetos caem no rio, causa assoreamento, o que impede a navegação, causa a morte dos peixes,” reforça João.

Na contramão das políticas de revitalização - De acordo com o pesquisador titular da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), João Suassuna, ao contrário de se pensar em políticas de gestão hídrica, os fatos apontam para a intensificação do uso desta fonte hídrica. A estimativa da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do Rio São Francisco e do Parnaíba (Codevasf ), segundo o Gerente Regional de Irrigação, José Costa, envolve a ampliação em 70 mil hectares da área total irrigada no Vale do São Francisco com a conclusão do projeto Pontal. O pesquisador da Fundaj, João Suassuna, rebate, questionando que o rio São Francisco não tem água para bancar este projeto.

“Estes 70 mil [hectares] são de áreas a serem irrigadas, mas já irrigadas há 120mil. Some isso daí[…]dá 190 mil hectares de irrigação. Agora, a pergunta que eu deixo no ar é: o rio São Francisco vai ter água para garantir isso daí? Na minha experiência de vida, não vai ter não! É por isso que eu digo que é preciso ir atrás de se fazer uma gestão hídrica eficiente do que ir atrás de novas áreas para serem irrigadas, sabendo que o rio São Francisco já possui uma capacidade hidrológica limitada”, analisa.

Uma gestão adequada do rio São Francisco - De acordo com o pesquisador João Suassuna, há elementos essenciais que devem nortear uma gestão hídrica adequada. O primeiro deles é a adoção de critérios para o uso das águas do rio nos diversos projetos que estão em curso. João alerta que os critérios servem para pensar que a água é um recurso finito, desde que não haja respeito. “Tá todo mundo pensando que a água é um bem infinito e, portanto, pode ser utilizada a bel prazer, assim, sem maiores problemas. Não pode ser encarado dessa forma! Isso tem que ser medido, contado, tá entendendo, porque senão acaba”, alerta.

“Tem que estabelecer critérios para se promover essas irrigações pesadas, que estão sendo feitas não só no Oeste da Bahia, mas na Bacia do São Francisco como um todo. Segundo, a gente tem que partir para olhar a revitalização do rio, no que diz respeito à plantar árvores nas margens. Outra coisa, cuidar da qualidade das águas contaminadas pelos esgotos in natura, lançados direto no rio São Francisco(...) Então são essas coisas que a gente precisa ter o máximo de cuidado para oferecermos às gerações futuras uma água de boa qualidade e em quantidade suficiente”, conclui João.