Exercendo o controle social
20.11.2020
Audiência popular sobre a execução do PNAE no Nordeste faz valer o refrão “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”

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Por Verônica Pragana - Asacom

Em roda, de mãos dadas e juntas, as crianças ensinam os adultos a encontrar caminhos para superar problemas | Foto: Manuela Cavadas /Arquivo ASA

“Vem vamos embora que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora não espera acontecer.” Este trecho da conhecida e antiga canção de Geraldo Vandré “Para não dizer que não falei das flores”, hino da resistência popular desde os tempos da ditadura civil-militar, me veio à mente ao fim da audiência popular de quarta-feira passada (18) sobre a execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) no Nordeste e no Semiárido mineiro.

A audiência, assim como a canção, tem um simbolismo forte. Acontece justo no momento em que a fome se alastra entre os/as brasileiros/as mais pobres e quando os espaços nacionais de controle social das políticas públicas de segurança alimentar foram esvaziados, desarticulados, desmontados. Foi assim com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e, no caso mais específico do PNAE, foi assim também no Conselho Consultivo nacional desta política.

Sem espaços formais para acompanhar esta política que garante o acesso às crianças e adolescentes de baixa renda a alimentos saudáveis, a sociedade civil organizada ‘fez a hora’. Representada pela ASA, Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN) e pela Plataforma Dhesca Brasil, criou um espaço para exercer o seu papel como ente que acompanha a gestão pública, defendendo os direitos violados na vida de milhares de pessoas neste Brasil tão desigual socialmente.

E convocou agentes públicos dos âmbitos estadual e municipal que se fizeram presentes, ouviram dados e depoimentos, e também tiveram oportunidade de se pronunciar. Tudo como manda o protocolo de uma audiência pública.

“Estamos aqui para fazer o controle social sobre o processo desta política para que possa se desenvolver a contento”, anunciou Naidison Baptista, da coordenação nacional da ASA pelo estado da Bahia e membro do Consea nacional [apesar de desativado]. “Queremos saber por quê a legislação não foi cumprida e como remodelar este processo para que nossas crianças tenham seus direitos garantidos”, complementa ele nos seus primeiros minutos de fala que abriram a audiência.

Neste momento, Naidison trouxe também uma pergunta: “Por onde caminhar diferentemente para construir uma realidade favorável à vida das crianças e adolescentes que estão nos lares mais afetados pela pobreza e miséria?”

O tempo que transcorreu a seguir foi dividido entre falas diversas. A de Mariana Santarelli, do FBSSAN e Plataforma Dhesca Brasil, que apresentou os dados levantados na escuta a 168 grupos produtivos de 108 municípios do Nordeste e Semiárido de Minas Gerais e ampliou o foco para o caso da execução do PNAE no município de Remanso, na Bahia, que não efetuou nenhuma compra para as famílias agricultoras e pescadores/as artesanais.

Em seguida, foi a vez do depoimento de Lucília Freitas, da Associação de Pescadores e Pescadoras de Remanso, que testemunhou a importância do PNAE para a autonomia financeira das mulheres e, ao final, resumiu o impacto da exclusão social na vida das crianças assim: “Nossos filhos não tiveram educação por direito [devido às aulas via internet para uma população excluída – também – digitalmente] este ano e nem tiveram alimentação adequada.”

A próxima pessoa ouvida foi Neneide Lima, representante de uma cooperativa no Rio Grande do Norte, a CooperXique, que ao contrário da situação em Remanso, teve aumento de venda para o PNAE em 2020. “Esse foi um dos anos que mais vendemos para o Estado. E isto faz parte de um governo que a gente elegeu e que é um governo popular. A orientação é fazer tudo a partir do diálogo”, disse no início de seu pronunciamento. Ao longo de sua fala, destacou o diálogo como algo preponderante para a ampliação das vendas de seus produtos. E, ao final, arrematou com um recado: “Onde tem pressão política, as coisas acontecem”.

Na sequência, foi a vez dos representantes dos governos municipais e estaduais se pronunciarem. Alexandre Lima, secretário de Agricultura Familiar do Rio Grande do Norte, apresentou o processo que alicerçou o caminho para o desempenho do Rio Grande do Norte no PNAE. Vale destacar que o estado tem 92% de sua área com características semiáridas.

Em meio a vários números apresentados, Alexandre contou que as compras dos produtos da agricultura familiar e da pesca artesanal passou dos R$ 5 milhões em 2019 para R$ 7,8 mi este ano. “A pandemia foi fator fundamental para ampliar a compra em 63%”. E mais à frente, ressaltou: “Não é uma construção só do governo do Estado, mas de uma rede articulada que se conecta com o Consórcio Nordeste”. A experiência do Rio Grande do Norte tem sido referência para outros estados da região, articulados via o Consórcio.

O próximo a falar foi o representante da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Natanael da Silva. Agradecendo pela iniciativa da audiência popular, Natanael anunciou o valor per capito pago à administração municipal para a alimentação escolar, denunciando que não representam a necessidade de investimento. Ele também lembrou que os Conselhos de Alimentação Escolar (CAE) – instância deliberativa que aprova as contas públicas relativas à alimentação dos/as estudantes e que exerce o controle social sobre o PNAE em cada município – precisam ser fortalecidas.

Apresentando mapas coloridos que evidenciavam a concentração de pessoas em situação de pobreza e miséria na zona rural do Nordeste, Eugênio Peixoto, que representava o Fórum de Gestores e Gestoras da Agricultura Familiar do Consórcio Nordeste, abriu sua fala. O segundo mapa que apresentou foi feito com dados extraídos da Pesquisa de Orçamento Familiar, divulgado meses atrás pelo IBGE. “As famílias com pessoas mais jovens são maioria na situação da insegurança alimentar”, reforçando a seguir que quem tem entre 5 a 17 anos é, justamente, o público atendido pelo PNAE. A fala do secretário-executivo do Consórcio Nordeste reforçou o caminho da integração, defendendo a necessidade de integrar as diversas políticas e os diversos atores sociais.

Ao fim, Vanessa Schottz, do FBSSAN, fez uma série de recomendações aos presentes reforçando sempre uma postura de diálogo: Que as soluções das organizações da agricultura familiar sejam ouvidas pelos governos; que se formem grupos de trabalhos intersetoriais (agricultura familiar, educação, assistência social, sociedade civil) para pensar a retomada das compras; propôs uma parceria entre FBSSAN e Undime para sensibilizar e formar as equipes dos novos governos municipais; que se discuta o uso dos recursos não gastos com a compra dos alimentos da agricultura familiar em 2020. E recomendou também a defesa de crédito suplementar para apoio à logística de entrega dos kits para as famílias.

Na reflexão final, o facilitador e representante da ASA Brasil, Naidison Baptista, fez dois destaques de forma bem didática, como é sua característica. O primeiro foi que “as experiências que deram certo envolvem vários atores. Não são de ‘A’, nem de ‘B’. As soluções não passam por ou outro iluminado, mas por uma construção coletiva”. O segundo destaque apontou para a integração na gestão pública, entre as várias secretarias, e a integração das políticas.

“Esse é um recado para levarmos para nossas secretarias e nossas organizações: Como integrar atores, processos e políticas? Precisamos disto para superarmos a crueldade do não funcionamento do PNAE. Manter as crianças sem alimentação é manter a fome. Nós estamos comprometidos com esta modificação. Podem contar conosco”, convoca Naidison abrindo, como ele disse no início, uma estrada para a caminhada coletiva.

E como diz a música… “quem sabe faz a hora, não espera acontecer.”