Mulheres
31.08.2020
“Não imaginava que seria tão maravilhoso”, revela agricultora de Esperança sobre impacto do programa P1+2 Fomento na vida da família

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De consumidora de poucas verduras e hortaliças compradas na feira tradicional, Analice e família passaram a produzir e vender alimentos livres de veneno | Foto: Arquivo ASPTA

“Nesta etapa do P+1, a gente olhou para as famílias em situações mais difíceis, mais vulneráveis”. Esta foi uma das primeiras afirmações que Leda Gertrudes, da equipe técnica da AS-PTA, disse na conversa sobre a execução do Programa Uma Terra e Duas Águas na etapa conhecida como P1+2 Fomento. Nesta fase, as famílias atendidas receberam, além de capacitações e a tecnologia para guardar a segunda água – usada para aguar o canteiro de hortaliças e legumes, as fruteiras e dar água aos animais – um valor de R$ 3mil para investir na propriedade e, assim, impulsionar, fomentar a sua produção de alimentos e a criação de animais.

“Eram famílias que, muitas vezes, as organizações não alcançavam. Eram as excluídas das excluídas”, continuou Leda, acrescentando que o projeto possibilitou grandes conquistas para as famílias envolvidas. E a primeira que citou foi o “impacto significativo na vida das mulheres”.

Numa fala empolgada, sem cortes e bem costurada, Leda vai lembrando de cenas e relatos das mulheres, que demonstram como pequenas ações podem gerar grandes mudanças. “Elas me diziam ‘nunca ninguém tinha ido na casa dela para me ouvir’ e as lágrimas escorriam enquanto falavam. Eram mulheres que não iam para reuniões e não abriam a boca. Nos primeiros encontros do projeto, quem a apresentava era o marido. Eram mulheres que se escondiam quando a gente chegava na casa delas.”

Outro impacto muito evidente do projeto de dois anos é a mudança no hábito alimentar das famílias. “Não comiam hortaliças, por falta da construção coletiva deste ato que garante a vida, que garante o acesso à alimentação saudável. Eram famílias que viviam passando fome. Hoje, elas têm ao redor de casa galinha, guiné, criação suína, ovina. Uma das mulheres me disse um dia ‘sempre tive vontade de criar uma ovelha e nunca tive condições de comprar’. Mas eram famílias que não tinham estrutura e, por isso, não criavam. Com terras muito pequenas e muito próximas umas das outras, se criassem animais, eles invadiriam a propriedade vizinha.”

Analice Andrade, do Sítio Campo Formoso, na zona rural do município de Esperança, é uma das mulheres que passou por várias destas transformações contadas por Leda. Antes de participar do programa, Analice, os três filhos e o marido, consumiam poucas verduras. Todas compradas na feira. “Não sabia que não eram saudáveis, que tinham veneno. Procurava o tomate grande, o pimentão bonitão. Eu guardava para usar durante a semana e tinha coisas que não durava este tempo. Eu comprava só o necessário. Meus filhos não gostavam de verdura.”

A agricultora, que antes só ia ao sindicato rural, ao qual era sócia, movida por uma precisão, como a solicitação do seguro-maternidade, disse que nem imaginava que [o projeto] seria tão maravilhoso para vida dela. Com a água na sua cisterna-calçadão, a primeira coisa que fez foi plantar coentro e já percebeu a diferença daquele que costumava trazer da feira.

“Não sabia o mal que estava me fazendo. A gente não sabe a qualidade da água usada no plantio, não sabe o agrotóxico que colocam. Um dia, tive a curiosidade de perguntar para um conhecido meu que compra verdura na Ceasa e vende na feira: ‘Por que o pimentão daqui é tão bonito? O que eu planto na minha casa não fica assim’. E a resposta que escutei foi essa: ‘É muito veneno que eles colocam. O do meu consumo eu planto lá casa.”

Pratos coloridos – “Hoje, meu filho pequeno é fanático por tomate. Come tomate como se estivesse comendo maçã”, diz ela cheia de orgulho de Arthur, de seis anos. E o que aconteceu com os outros filhos? “A filha do meio, Ana Lívia, de 12 anos, não comia verdura. Hoje, come tomate, alface, repolho. Guilherme, o mais velho, de 17 anos, só come mais a alface mesmo. Não teve conversinha. Ele só come o que já comia mesmo. A gente não comia couve, mas arrumei um método e a gente aprendeu a comer. Faço uma sopa, quando está quase pronta, ponho para a couve pra cozinhar.”

Hoje, os leirões ao redor da cisterna da família de Analice é rico em variedade de alimentos que vão direto para mesa da família. Tem coentro, alface, pimentão, tomate, repolho, couve, cenoura, cebolinha, cebola branca, cebola roxa, macaxeira. “Quando comecei, o que plantava no canteiro era para consumo. Com a produção aumentando, tiro a parte da gente com gosto mesmo e o que sobra eu vendo para a família, na comunidade. Tenho também dois pezinhos de maracujá que estão dando bastante, mas não estou vendendo. Estou dando para meus oito irmãos e minha mãe.”

“Eu imaginava que o projeto só ia trazer a cisterna e pensava quando tiver condições vou comprar meio metro de tela pra cercar o plantio e ter alimento, pelo menos, pro consumo”. Foi quando soube que além da cisterna, teria em mãos R$ 3 mil reais, dividido em duas parcelas, para investir na propriedade. “Com a primeira parcela, comprei tela, arame, estacas. Com a segunda, terminei as compras e paguei a mão-de-obra.”

Apesar de não ter usado o recurso para comprar animais, terminou que uma economia que fez ao não precisar mais comprar a extensão, adquirida com a recurso do fomento, para levar energia de casa para bombear a água da cisterna para a caixa mais próxima do plantio, permitiu que a agricultora comprasse sete galinhas. Hoje, um ano depois, são 27 cabeças. Os ovos são para consumo da família e para venda. A carne vira fonte de proteína na dieta familiar. O milho que alimenta as galinhas é comprado com o dinheiro da venda dos ovos. “Não estou tirando do meu bolso. Já é uma renda”, assegura ela que recebe o Bolsa Família há mais ou menos 14 anos.

Hoje, com o filho mais velho adolescente, recebe também o Bolsa Jovem. Juntando as duas rendas dá R$ 307 precisos. “Quando meu esposo tem recebido dos bicos, compro o que está faltando pros meninos. Quando não, compro comida mesmo”. Atualmente, a família dela tem recebido o auxílio emergencial devido à pandemia. Atualmente, eles têm uma renda semanal de cerca de R$ 40 que vem das vendas do alimento que a terra dá a mais do que a família precisa para comer.

O bom investimento do recurso de fomento foi repetido nas 70 famílias acompanhadas pela AS-PTA nos municípios de Casserengue e Esperança. E Leda credita este fato ao bom trabalho de sensibilização feito pela equipe. “Muitas famílias tinham o sonho de ter um banheiro. Muitas delas ainda fazem suas necessidades no mato. Outras tinham o desejo de construir mais um quarto na casa porque dormia os pais e os três filhos no mesmo ambiente. Mas, a gente falou que o investimento na produção geraria renda e, poupando, eles poderiam fazer o que desejassem.”

Outra adesão incrível que o projeto teve no território foi a participação das mulheres nos cursos e intercâmbios previstos ao longo dos dois anos de execução. Elas eram 90% dos participantes. Um dado ainda mais expressivo quando se tratava de mulheres que nunca tinham saído de casa, nem dormido fora. E o que estava por trás deste desempenho?

“A prática já adotada na Borborema pelo Polo [um coletivo de 13 sindicatos rurais e organizações da agricultura familiar dos municípios do território] e pela AS-PTA de priorizar, nos cadastros do projeto, a titularidade das tecnologias no nome das mulheres. Além disso, a gente dialogava com as famílias, convidava diretamente as mulheres, que estão à frente dos seus quintais, da gestão da água e também estão no roçado da família”, conta Leda. Nas viagens paras os intercâmbios, a farmácia da equipe técnica para socorrer as agricultoras estava caprichada e adaptada para as necessidades femininas. “Teve intercâmbio que levamos mulheres para o hospital. Passaram mal pela emoção de nunca terem saído de casa.”

Outra delicadeza da AS-PTA é ter escolhido duas técnicas mulheres para fazer o acompanhamento com as famílias. Além de Leda, a jovem Nirley. Aos dois técnicos homens, Afrânio e Paulino, cabem o trabalho de acompanhar a construção das tecnologias de captação da água da chuva.

Leda revela que ter mulheres técnicas fez diferença para criar uma relação de confiança com as mulheres das famílias atendidas no projeto. “Ao ponto de várias delas chegarem a contar da vida pessoal e falar da violência que sofrem em casa. Elas mandam áudio pra gente, chorando, pedindo ajuda. Tem marido que vai beber e, quando chega em casa, quer dormir sem tomar banho, fazendo com que a mulher corra risco de ser contaminada com o Covid.”

E o que acontece? O que vocês fazem a partir disto? “No território, tem um movimento de mulheres que faz o enfrentamento das violências contra nós, mulheres”, anuncia Leda, dizendo que criaram condições para levar as mulheres atendidas pelo P1+2 para estes encontros de mulheres, como os debates municipais e regionais preparatórios da 11ª Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia. “Mesmo sem falar uma palavra, a gente vê que estão se vendo nas histórias de outras mulheres.”

Nem tudo são flores – Foi com esta frase que Leda iniciou o relato das dificuldades deparadas pelo projeto. Desafios que estão fincados na estrutura social do território e têm a ver com o pequeno pedaço de chão de cada família. “Tem família que quando colocamos a cisterna ao lado de casa, a tecnologia quase toma conta de tudo. Sem acesso à terra, como vou produzir e diversificar a produção?”, indaga Leda.

Atualmente, as 70 famílias que receberam o recurso do fomento produtivo e mais 30 outras também atendidas pelo P1+2 e que receberam a metade do valor [R$1,5mil] para investir na sua área produtiva no arredor de casa, continuam sendo acompanhadas pela AS-PTA. Trata-se de mais uma etapa do P1+2, que se centra no tema da comercialização para facilitar o acesso ao mercado pelas famílias que passam a ter produção excedente ao necessário para consumo familiar.

Fomento produtivo – O valor de R$ 3 mil reais parece irrisório para um investimento. Mas, se bem empregado, é um montante capaz de transformar em produtora de alimentos saudáveis uma família que vivia uma situação de insegurança alimentar tanto pela quantidade de alimentos consumidos, quanto pela qualidade. Como o que aconteceu com a família de Analice, seu esposo Givanildo e seus três filhos, Arthur, Ana Lívia e Guilherme.

O recurso do fomento, associado à orientação dada por uma assessoria técnica agroecológica, fazem os benefícios se multiplicarem. E isso não acontece só na região da Borborema paraibana. O P1+2 Fomento, apoiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e pelo extinto Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), foi executado em nove estados do Semiárido brasileiro – Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí, alcançando mais de 2,3 mil famílias abaixo da linha de pobreza em 2018 e 2019 .

Quem vive abaixo da linha de pobreza são famílias que sobrevivem, por pessoa, com até R$ 178 mensais que são tidas como em situação de pobreza. Se o valor mensal per capta for inferior a R$ 89, a família está em situação de extrema pobreza. Estes eram os valores de referência do programa Bolsa-Família adotados em 2018.

Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ligada ao Ministério da Saúde do Brasil, das 800 milhões de pessoas em situação de fome no mundo, metade são agricultores e agricultoras que vivem em regiões semiáridas, cuja realidade se agrava ainda mais com o fenômeno da crise climática.