Sementes do Semiárido
18.06.2020
Tesouro do Semiárido é depositado no banco mais seguro do mundo, afirma pesquisadora da Embrapa
O Banco Mundial de Sementes em Svalbard, na Noruega, considerado a Arca de Noé das sementes da humanidade, guarda variedades de arroz e pimentas do Semiárido

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Por Verônica Pragana - Asacom*

Portal de entrada para as câmaras de conservação de sementes na 'Arca de Noé' que guarda mais de 1 milhão de variedades de todo o mundo

No início deste ano, o Brasil enviou para o Banco Mundial de Sementes de Svalbard (Noruega), que tem uma estrutura de proteção que resiste até a ataques nucleares, quase 3,5 mil variedades de sementes crioulas. Foram sementes de arroz, jerimum, cebola, pimentas, abóbora, melancia, pepino, melão, milho, entre outras, coletadas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) desde a década de 1970 até pouco tempo atrás.

Destas sementes guardadas no arquipélago de Svalbard, no círculo polar Ártico, algumas são naturais do Semiárido brasileiro. São sementes de pimentas coletadas no Piauí e de arroz colhidas no sertão do Cariri cearense e na Paraíba. Elas ficarão submetidas a condições especiais para sua conservação por tempo ilimitado e só poderão ser resgatadas pela Embrapa em situação de catástrofe que ameace a perda das sementes guardadas no Brasil.

A gestão do Banco Mundial de Sementes é feita por meio de uma parceria entre o governo da Noruega, o NordGen, o banco de genes e o centro de conhecimento dos países nórdicos para recursos genéticos, e o Crop Trust, uma organização não-governamental internacional dedicada exclusivamente à conservação e disponibilização da diversidade de culturas. Segundo o portal da Crop Trust, há 1 milhão, 57 mil e 151 de variedades conservadas no cofre de Svalbard.

Rosa Lía Barbieri, pesquisadora da Embrapa que faz parte do Painel Consultivo do Banco Mundial de Sementes de Svalbard como representante das Américas | Foto: Acervo pessoal

Na entrevista a seguir, Rosa Lía Barbieri, bióloga e pesquisadora da Embrapa, nos conta sobre a estratégia mundial de guardar sementes em bancos. O estoque deste material genético não é, aliás, uma estratégia utilizada só pelas institutos de pesquisa como a Embrapa, mas também por famílias e comunidades rurais que guardam suas sementes para os próximos anos de plantio. Quanto mais equipado o banco, mais condições tem de conservar a semente por mais tempo.
Apesar deste cuidado existir há muitos anos, hoje em dia os bancos de sementes se revestem de outro significado imprescindível para a vida humana no planeta: de suprir comunidades e povos de sementes crioulas que haviam perdido esse material genético por diversas razões.

A entrevista trata tanto do Banco Mundial na Noruega, do qual Rosa Lía é uma das integrantes do Comitê Consultivo Internacional representado as Américas, quanto dos bancos da Embrapa. E a conversa passeia pelos critérios de seleção das sementes guardadas, o que é feito com estas sementes nos bancos de germoplasma da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a devolução delas e a importância das sementes crioulas para a humanidade.

Asacom – No início de janeiro a Embrapa enviou milhares de sementes para o Banco de Sementes em Svalbard, na Noruega...
Rosa Lía - Isso. Só pra te dar o número correto, nós enviamos 3.438 amostras. Na verdade, a grande maioria dessas amostras são variedades tradicionais. Cada amostra de semente era composta por 500 sementes. E essas sementes vieram de vários bancos de germoplasma da Embrapa. As sementes de arroz vieram da Embrapa Arroz e Feijão (Goiânia/GO). Da Embrapa Hortaliças (Brasília/DF), vieram as sementes de abóboras e de pimentas. Da Embrapa Clima Temperado (Pelotas/RS), vieram sementes de cebola, pimentas, abóbora, melancia, pepino e melão. As sementes de milho vieram da Embrapa Milho Sorgo (Sete Lagoas/MG). Nós buscamos, sementes de variedades tradicionais brasileiras coletadas pela Embrapa desde 1973. As coletas mais antigas são as de milho e de arroz. E as mais recentes são as de cebola, pimentas, melão, melancia e abóbora…

Asacom – E as últimas foram feitas quando? E quais são as sementes do Semiárido?
Rosa Lía - Tem coleta de várias épocas. Algumas pimentas que vieram do Semiárido e que foram enviadas para lá, foram coletadas no Piauí em 2015. É uma das mais recentes. Os bancos de arroz e de milho têm coletas bem mais antigas, porque foram criados há mais tempo dentro da Embrapa. Por sua vez, os bancos de pimentas e de abóboras, mantidos no Sul do Brasil têm cerca de 18 anos. Eu não fiz um levantamento sistemático pra ver quais seriam, mas tem várias coletas de arroz da Paraíba, em Tavares, Diamante e Boa Ventura [municípios do Semiárido paraibano]. No Ceará, tem coleta de arroz em Brejo Santo [também do Semiárido]. Tudo lá em 1973. E, no caso de pimentas têm coletas feitas no interior do Piauí.

Com as sementes de milho enviadas pelo Brasil em 2012 | Foto: Acervo pessoal

Asacom – E quais os critérios para o envio dessas sementes para o Banco Mundial na Noruega?
Rosa Lía - A exigência é que tenha uma cópia de segurança dessas sementes no país e que lá seja a segunda cópia de segurança. Então, nós temos uma cópia de segurança desse material no Banco Genético da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia em Brasília. Nós temos um prédio que tem câmaras frias que mantém a temperatura de 18 graus negativos que é o ideal para a conservação de sementes a longo prazo.
Tem mais critérios. Precisa ter um convênio assinado entre o Banco Mundial de Sementes de Svalbard e a instituição que vai mandar a semente. Além disso, as sementes que forem enviadas não podem ter sido enviadas por outra instituição, para lá. É muito comum, nos bancos de germoplasma, a gente fazer importação de sementes ou intercâmbio de sementes com outras instituições de pesquisa no mundo.

Asacom – E as sementes que foram enviadas para Noruega serão acessadas só em casos de catástrofe ou tem possibilidade de serem retiradas por um programa de melhoramento ou alguma empresa?
Rosa Lía - Então, uma premissa do Banco Mundial de Sementes é que a propriedade das sementes é apenas do depositante. Então, só a Embrapa que depositou pode retirar a semente em caso de catástrofe. Ninguém mais pode retirar a semente. Elas estão em caixas lacradas e ninguém pode abrir caixa nenhuma, nem mover caixa nenhuma depois que ela é depositada lá.
Ela não pode ser usada pra um programa de melhoramento, sei lá, da Alemanha que quer usar as sementes brasileiras. Se o programa de melhoramento da Alemanha quer usar as sementes brasileiras, o procedimento é ele entrar em contato com a Embrapa no Brasil e a Embrapa remete ele para o banco de germoplasma de milho, por exemplo, da Embrapa Milho e Sorgo e o banco de germoplasma vai ver se tem sementes disponíveis, se tem condições de mandar para a Alemanha. Mas as sementes lá do banco da Noruega são como um tesouro guardado numa caixa forte, ninguém toca.
O banco começou a funcionar em 2008. Portanto, só tem 12 anos. Em 2015, na Síria, o centro de pesquisa [Agrícola para Áreas Áridas, Icarda na sigla] foi bombardeado. A situação já estava complicada, eles conseguiram remover os cientistas, os pesquisadores para o Marrocos e o Líbano com filiais desse centro de pesquisa. A guerra civil na Síria iniciou em 2012. Antes eram conflitos localizados. E a destruição do centro de pesquisa do Icarda foi em 2015. Mas as sementes já estavam lá [em Svalbard], salvas. E aí, como tinham perdido todas as sementes da pesquisa, todas as variedades tradicionais da Síria adaptadas sob as condições áridas, eles fizeram uma solicitação de retirada das sementes que haviam depositado.
Eles fizeram três retiradas, em 2015, 2017 e 2019. Retiraram as sementes, multiplicaram as sementes, as sementes entraram de novo nos programas de pesquisa e de melhoramento genético e eles conseguiram devolver as sementes pra Svalbard.

Em um lugar tão-tão distante, cercado de neve, situa-se o mais protegido banco de sementes do planeta

A gente espera que jamais o Brasil entre numa guerra. A gente espera que jamais a gente enfrente uma catástrofe. Mas a gente não está livre disso. Em época de mudanças climáticas a gente pode estar sujeito a um apagão de eletricidade o que faria com que nossa cópia de segurança no Brasil ficasse com variação de temperatura que poderia danificar as sementes. Ou, talvez, uma inundação, furacão, qualquer coisa desse tipo e a gente sabe que em Svalbard é o local onde tem segurança máxima disponível.
Svalbard é um arquipélago que fica no norte da Europa, no Círculo Polar, quase no Pólo Norte. Um lugar de acesso remoto, difícil. Ali, as temperaturas ficam a maior parte do ano abaixo de zero. As câmaras de conservação dessas sementes foram construídas no interior de uma montanha rochosa. Era uma antiga mina de carvão, eles aproveitaram a escavação e ampliaram.
Fica a mais de cem metros acima do nível do mar e a mais de cem metros pra dentro da rocha. Então fica super protegido. Para poder destruir uma montanha é um pouco difícil, né? Teoricamente, é à prova de bombardeio nuclea e, de terremotos. Está lá no coração da montanha, atravessa um túnel com mais 100 metros de comprimento pra chegar lá e o sistema de segurança tem muito sensores. Para chegar até as câmaras de conservação das sementes é preciso atravessar muitas portas de segurança. Eles têm toda uma preocupação com ataques terroristas, porque conservam sementes de mais de 200 países.

Asacom - Considerando que foram perdidas, no século 20, cerca de 90% das variedades de sementes crioulas do planeta, em que medida os bancos de sementes podem trazer de volta uma parte dessa biodiversidade?
Rosa Lía - Uma das maneiras de ajudar é divulgando que isso existe. Eu trabalhei durante 17 anos na Embrapa Clima Temperado, em Pelotas, no Rio Grande do Sul. Lá, os responsáveis pelos bancos de germoplasma, muitas vezes, ajudam a organizar feiras de troca de sementes e disponibilizam sementes nessas feiras de troca de sementes, apoiando e estimulando os guardiões de sementes. NO Rio Grande do Sul, destaco o município de Ibarama que, além da Associação de Guardiões de Sementes Crioulas, também tem uma organização de guardiões mirins de sementes.
Então, os bancos de germoplasma ajudam a sensibilizar as pessoas sobre o valor dessa diversidade e até aumentar a autoestima dos guardiões de sementes de algumas comunidades, mostrando que realmente é um tesouro, que é uma coisa muito importante e que tem um papel fundamental pra manter e assegurar a segurança alimentar e nutricional das comunidades.

Asacom - E o que já se perdeu e está no banco? Existe ali uma cópia de segurança que pode retornar pra os locais em que essas sementes já estão adaptadas...
Rosa Lía - Isso é muito importante. Têm coisas que foram perdidas e que a gente não tem mais como resgatar. Essa perda é conhecida como "erosão genética" e aconteceu porque mudou o sistema de produção agrícola. Depois da segunda guerra mundial, na chamada revolução verde, onde o que se buscava era plantas extremamente produtivas e se deixou de lado outras características importantes como a rusticidade, o sabor, a riqueza nutricional.
Graças ao trabalho de vários pesquisadores e de vários agricultores, de associações como a ASA, por exemplo, tem se buscado manter essas sementes e valorizar seu cultivo. Alguns estudos têm revelado que, dependendo da situação de estresse no cultivo, uma variedade crioula vai produzir muito mais do que uma variedade melhorada.
As variedades tradicionais ou variedades crioulas são adaptadas a certos ambientes e não necessitam de tantos insumos como as variedades de alta produtividade. Então, se um híbrido de milho altamente produtivo e uma variedade de milho tradicional no Semiárido forem cultivados no mesmo ambiente em condições de seca (estresse hídrico) e sem irrigação, provavelmente, o milho tradicional do Semiárido vai ter uma produtividade muito maior do que o híbrido.

Asacom - E em quais ocasiões essas sementes podem voltar para os agricultores, pras comunidades de origem ou para outras com interesse?
Rosa Lía -  Isso depende da demanda. Geralmente a Embrapa não atende a demanda de uma pessoa isolada, mas de uma associação, cooperativa, organização, ou um grupo de guardiões de sementes. Comunidades quilombolas, agricultores familiares... o público que tiver interesse precisa estar organizado e fazer uma demanda com uma justificativa. Para citar alguns exemplos. Tem o caso de sementes de milho, que o banco de germoplasma da Embrapa Milho e Sorgo devolvou para aldeias indígenas de Mato Grosso.
Outro exemplo foi a disponibilização de sementes de feijão, melão, abóbora, melancia e milho da Embrapa Clima Temperado para os indígenas Guaranis no Rio Grande do Sul. Essas sementes não haviam sido coletadas nas Aldeias Guaranis, mas eles as tinham cultivado no passado. Eles foram até a Embrapa, eu participei de uma ocasião, quando nove líderes passaram um dia conversando com os responsáveis pelo banco de germoplasma.
Outro caso foi o trigo veadeiro, coletado na Chapada dos Veadeiros antes da Embrapa existir. Era um trigo cultivado no Cerrado no início do Século 1920 e que depois deixou de ser cultivado. Foi devolvido para a comunidade da Chapada do Veadeiro há alguns anos. E a Cooperativa de Agricultores Familiares da Chapada dos Veadeiros está conservando esse trigo, que já estava adaptado àquelas condições.

Asacom - Ainda sobre as sementes conservadas pela Embrapa, existe algum estudo pra saber se essas sementes permanecem no campo ou se elas estão sendo conservadas no lugar da coleta delas?
Rosa Lía - Isso seria uma coisa muito interessantes, mas temos pouquíssimos dados sobre isso. É um trabalho que ficaria lindíssimo. Comparar o que está no banco de sementes e o que ainda os agricultores estão conservando.

Asacom - E como é feita a escolha pras sementes serem guardadas na Embrapa?
Rosa Lía - Hoje nós temos 164 bancos de germoplasma espalhados pelas várias unidades da Embrapa em todas as regiões do país. Então, esses bancos estão nas unidades de acordo com o que é importante na região.

Asacom - E, pra fechar, queria que falasse o que as sementes significam pra sobrevivência da humanidade?
Rosa Lía – As sementes são essenciais pra nossa vida. Antes de existir a agricultura, durante milhares de anos, a espécie humana existia e não conhecia a agricultura. Não sabia que podia pegar uma semente de uma planta, colocar no solo e essa semente ia originar uma planta e que poderia ser consumida. Passou muito tempo para que a humanidade descobrisse isso, que foi a origem da agricultura. Pelos dados arqueológicos e estudos das civilizações antigas, se estima que a origem da agricultura aconteceu de modo independentemente em diferentes locais do mundo há mais ou menos 12 mil anos, quando as pessoas descobriram que podiam cultivar plantas.
O fato de poder cultivar plantas trouxe um avanço imenso para as pessoas, porque permitiu que elas parassem de ficar mudando de lugar a toda hora, perseguindo a comida. Como é que era antes? As pessoas eram caçadoras e coletoras. Tinham que perseguir a caça e coletar frutos, raízes e folhas onde tivesse. Então, os grupos humanos consumiam e tinham que procurar comida o tempo todo. Com a origem da agricultura, as pessoas domesticaram as plantas.
Elas trouxeram as plantas para perto de onde moravam e puderam se estabelecer e formar as primeiras vilas, os primeiros agrupamentos fixos de pessoas que deixavam de ser nômades. O que aconteceu com isso? Começaram a surgir vilas, houve a necessidade de dividir as tarefas de uma forma diferente e aí começaram a florescer as artes, surgiram os governos mais organizados, nações mais organizadas. Começou a surgir as formas de escrita.
Então, graças à agricultura, ao cultivo das sementes é que surgiram as civilizações e chegou no que a gente tem hoje. As cidades no mundo moderno só se mantém porque os agricultores produzem comida pra manter essa cidade funcionando. Como é que eu vou comer hoje? Eu vou lá no supermercado, compro a comida, mas essa comida veio de onde? Veio dos agricultores que plantaram as sementes, cultivaram, colheram e tudo isso chegou até os mercados nas cidades. Então, a gente é totalmente dependente da semente. Todas as pessoas são, só que elas não se dão conta disso.

* Com colaboração especial de Ana Cláudia de Lima e Silva, Projeto Agrobiodiversidade do Semiárido, e Adriana Sá, da ONG Arcas.