Em defesa da vida das mulheres
28.05.2020
“Nem sempre a casa é um lugar de segurança”
Em entrevista, Graciete Santos, fala sobre a situação de vulnerabilidade das mulheres nessa pandemia e a importância das diversas estratégias postas em prática pelas organizações e movimentos do campo, especialmente, as feministas.

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Por Fernanda Cruz

Uma das estratégias para combater a violência durante a pandemia é a retomada da Campanha Pela Divisão Justa do Trabalho Doméstico

Desde o início da pandemia pelo novo Coronavírus tem se falado do impacto na vida das pessoas, sobretudo, na vida das mulheres.
Segundo a ONU Mulheres, os motivos são inúmeros: elas estão mais expostas ao coronavírus e uma das razões é que lhes cabem os cuidados com os outros membros da família, inclusive, aqueles que estão infectados e se tratam em casa. As mulheres também representam 70% dos profissionais que atuam na área de saúde em todo o mundo.

E a sobrecarga com tarefas domésticas, somada ao fechamento de escolas e creches, eleva ainda mais a carga de estresse. Ou seja, são muitas barreiras extras a enfrentar quando se pensa em acrescentar um trabalho remunerado a essa rotina. O que se vê é que as medidas de isolamento social estão contribuindo para elevar a violência doméstica e o feminicídio.

Pensando nisso, grupos e redes feministas, junto a movimentos e organizações sociais e populares, lançam amanhã (28) a reedição da Campanha Pela Divisão Justa do Trabalho Doméstico, com o mote ‘Ficar em casa é questão de saúde. Dividir tarefas e viver sem violência também’. A ideia é que ela possa provocar uma redivisão do trabalho, que nos tempos de pandemia vem sendo bem injusta.

Para refletir sobre essas questões e contar o que vem sendo feito também em Pernambuco para minimizar o impacto da pandemia na vida das mulheres, conversamos com Graciete Santos, integrante da Casa da Mulher do Nordeste, da Rede Feminismo e Agroecologia e coordenadora da Articulação Semiárido Brasileiro pelo estado de Pernambuco (ASA).

Na próxima quinta-feira, 4, a partir das 15h, ela estará numa live de lançamento de uma nova edição desta campanha, junto a Beth Cardoso, do Centro de Tecnologias Alternativas (CTA/ZM) e do GT Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), e com Adriana do Nascimento, diretora de mulheres da Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape).

Quem quiser acompanhar a Live, pode acessar via Facebook: facebook.com/peladivisaojustadotrabalhodomestico ou YouTube: https://www.youtube.com/articulacaonacionaldeagroecologia/

Acompanhe a entrevista!


Asacom - Segundo a ONU Mulheres, a pandemia tem afetado as mulheres de forma muito similar em todo mundo. O que você tem visto em Pernambuco?

Graciete destaca como aprendizado desta pandemia a forma das mulheres de enfrentá-la | Foto: Divulgação

Graciete - A pandemia tem afetado diretamente as mulheres nas suas diferentes situações, em especial as mulheres pobres das periferias, as mulheres que estão mais isoladas em áreas rurais. Tem afetado porque as mulheres estão entre as mais pobres, porque as mulheres estão entre os trabalhos mais precários e, sobretudo, porque são as mulheres as responsáveis pela linha de frente de sobrevivência das suas famílias.
Então, são elas que estão nesse momento, também vem sofrendo ou se preocupando ou tentando garantir o mínimo, não só de alimentos, mas também da questão da saúde, das exigências de limpeza das suas casas e de seus familiares. Isso requer uma sobrecarga enorme para as mulheres, de trabalho, neste momento.
Além da questão que tem nos preocupado bastante com esse isolamento social que é exatamente o aumento da violência doméstica, tendo em vista esse isolamento. Muitas dessas mulheres estão vivendo, no seu cotidiano, junto com seus companheiros. Essa convivência diária, muitas vezes em espaços pequenos, em situações bastante difíceis, com essa crise, tem acirrado reações violentas, tensões, criado situações de muitos conflitos e de violências físicas e também psicológicas, quando os companheiros não querem seguir as regras de limpeza, saem de casa, saindo para beber. Isso tem afligindo muito as mulheres.
A gente tem ouvido relatos, principalmente das mulheres na cidade sobre essa questão. Então, o que a gente precisa refletir é que nem sempre a casa é um lugar de segurança. E é preciso a gente entender também que essa crise ela já vinha sendo anunciada. Essas desigualdades sociais, econômicas, essas desigualdades de gênero elas já existem. Em tempos de crise, elas são acirradas e as mulheres tomam um lugar de muita vulnerabilidade. As mulheres também são maioria como enfermeiras nos hospitais e, portanto, elas estão correndo mais riscos de saúde e de contaminação.


Asacom - Há diferença no impacto na vida das mulheres a depender de onde ela esteja: campo ou cidade?


Graciete -
Vejo que há diferença sim no impacto para as mulheres das cidades e do campo, a partir da nossa experiência com as mulheres e do nosso contato. Nós temos, nesse período, mantido o contato através do Whatsapp, conversado com as mulheres, sabendo de suas vidas, fazendo essa escuta que tem sido muito importante pra gente e pra elas. O que a gente percebe aqui na cidade [Recife], nas três comunidades que nós estamos que são Passarinho, Córrego do Euclides e Totó, é que são as mulheres que estão na linha de frente. São elas que estão buscando alternativas para manterem suas casas limpas, para terem os equipamentos de máscaras, de luvas, são elas que estão o tempo inteiro nesse alerta, aí muitas vezes acontece o conflito com os companheiros. São elas que estão buscando o alimento para casa. Muitas vezes os homens têm se colocado apáticos e as mulheres da cidade, por não terem alternativa de produção de alimento como têm as do campo, se veem reféns dessa situação.
Então, a gente vê que a pobreza tá mais acirrada, as mulheres já estão passando mesmo necessidades. Também, nessas comunidades não há um controle dessas orientações de isolamento, porque tendo em vista a própria organização social dessas comunidades periféricas, as casas são juntas, o modo de convivência é na rua, é tudo muito próximo, muitas pessoas morando em um mesmo espaço, espaço pequeno, fechado, sem ventilação. O saneamento que não existe, a questão da água é também muito forte. Como manter o local limpo quando não se tem água? Isso é uma questão na cidade também, embora a gente vai perceber que isso é um problema também nas áreas rurais.
As mulheres rurais, o que a gente tem observado, lá na nossa realidade, no Sertão do Pajeú [em Pernambuco], é que a situação está começando a indicar uma situação de mais emergência. É claro, que essas chuvas grandes que aconteceram, que não foram em todo Pajeú, mas em alguns municípios, é claro que isso também levou a perda de produção, alagamento. As mulheres estão tirando alguma coisa dos seus quintais, a gente ainda percebe que tem feijão, frutas. Então ainda há algo para se comer, não é uma pobreza total, mas existem ainda aquelas mulheres que não têm acesso à água, não têm as tecnologias [de captação de água de chuva]. Essa situação é mais problemática em alguns municípios. Há mulheres que não têm realmente a produção, que estão sem comer, já se começa a perceber isso.
Então, há, de fato, uma necessidade, nesse momento, de uma ação emergencial que possa complementar a alimentação dessas mulheres. No campo, também estão com essa medida de isolamento. Elas diminuíram a sua condição para comercializar os seus produtos. Muitas dessas mulheres comercializam no porta-a-porta, na própria comunidade. Tendo em vista que as pessoas não querem sair, isso [as vendas] tem diminuído. As feiras [livres em Pernambuco] ainda permanecem. Mas diminuiu a quantidade de pessoas que estão indo às feiras, por receio mesmo, por medo.
É importante dizer que esse impacto tem atuado muito na condição mental das mulheres. Sejam elas na cidade, sejam elas no rural, porque elas têm se preocupado muito, porque as mulheres estão muito nesse lugar da solidariedade. Elas pensam primeiro no seu filho, no seu companheiro, na sua mãe, no seu vizinho e essa condição também há um desgaste muito grande. Há um medo, um sentimento de medo, de incerteza de quando é que isso tudo vai passar, da falta de alimento. Isso tem adoecido muitas mulheres. Elas falam isso, que não estão dormindo bem, que estão com muitas dores de cabeça, muitas se queixam que estão tendo os sintomas.


Asacom - Tendo em vista o histórico de desigualdade na relação entre homens e mulheres, que aprendizados você acredita que podemos colher após esse período de isolamento e quarentena?

Graciete - Enquanto aprendizado nesse período, a gente ainda tá vivendo sob o efeito [da pandemia]. Mas o que a gente analisa que essa situação vem acirrar as desigualdades que já existem. As desigualdades de classe, as desigualdades de gênero estão mais explícitas. Para as mulheres já envolvidas com o movimento e que podiam participar de oficinas, de intercâmbios, [de reuniões] da associação, sair de casa era um momento também pra que elas pudessem construir sua autonomia, para que elas pudessem ter uma vida própria. E isso tá sendo cerceado.
Então, as mulheres estão, realmente, numa situação bastante difícil nesse momento, porque elas não têm umas as outras pra contar e elas têm ali que viver cotidianamente essa situação de aprisionamento e também de muitas preocupações.
Uma outra questão que eu acho que traz como uma lição pra gente pensar e refletir é essa consciência do coletivo, essa consciência do solidário. A gente tem experiência, lá no Pajeú, que a gente tá nessa campanha de doação de cestas para esse momento de emergência e muitas mulheres dizem: - Olha, nós recebemos quatro cestas, mas transformamos em oito, porque a gente identificou e a gente vai dar pra outras mulheres. Elas se disponibilizam a sair, de ir pro local pra pegar, pra fazer essas feiras, ficam preocupadas com as companheiras que já sofrem violência, que tá isolada, que não tá podendo sair. Então, eu acho que essa é uma coisa de a gente pensar o quanto as mulheres têm um olhar e uma forma de enfrentar o problema de um outro jeito, que traz muitas reflexões para a humanidade, que a gente tanto precisa nesse momento.

 

Asacom - Como é possível contribuir com a campanha que a CMN está fazendo?

Graciete - Quem quiser ajudar na campanha pode ir lá no site da Casa da Mulher do Nordeste (CMN), www.casadamulherdonordeste.org.br e escolher a forma. Tem o boleto, tem Paypal, enfim. Tem uma conta também pra fazer o depósito. A quantia é depende da condição de cada um. Qualquer ajuda é bem vinda e a gente fica muito grata nesse momento, porque a gente precisa realmente ampliar e fortalecer essa rede de solidariedade das pessoas com essas mulheres que são guerreiras, que tão ali nos seus locais tentando a sobrevivência sua e de suas famílias e além de suas famílias, de todo o seu entorno.
A campanha foi criada em diálogo com essas mulheres. Observando essa realidade, a gente resolveu realmente chegar perto para que elas possam ter um mínimo neste momento, que é material de higiene, de limpeza e itens de alimentação básica.
A gente também tá num esforço grande de tentar, lá no Pajeú, fazer com que essas cestas também contenham produtos das mulheres. Os ovos, alguns doces, galinha, a medida que a gente tem flexibilidade com esse recurso vai nos dando condição da gente poder fazer esse tipo de compra. Por isso precisamos de apoio a essa campanha.
Essas cestas são entregues nas comunidades, ficarão sob a responsabilidade das lideranças e a gente tá tendo todo cuidado para que [as entregas] não ponham em risco a comunidade. Então, tem dias alternados para entrega, ou seja, a garantia de um distanciamento para que não haja aglomeração e não ponha em risco as pessoas que estão ajudando nessa distribuição.
No Pajeú, a gente finalmente conseguiu também garantir a entrega nos municípios. A gente tá em diálogo com alguns sindicatos para que essas cestas fiquem nos sindicatos e em algumas associações também de algumas comunidades. A gente vai, também, socializar as fotos, a prestação de notas de compras pra que a gente possa garantir essa transparência do retorno do quanto essa campanha está chegando as mulheres e está ajudando elas nesse momento.


Asacom - Esta semana será lançada a Campanha Pela Divisão Justa do Trabalho Doméstico. Quais as novidades desta nova edição?

Graciete - Numa reunião da Rede Feminismo e Agroecologia do NE vimos a importância de trazer esse debate da sobrecarga do trabalho das mulheres, ampliando o olhar, mostrando que a divisão injusta do trabalho doméstico é também uma forma de violência. Embora tenhamos dificuldade de notificar os dados, sabemos que a violência contra as mulheres aumentou nesse período, então é uma forma de cuidar dessa questão. Outra novidade é que a campanha antes centrada nas pessoas que vivem no meio rural, agora foi repaginada e pretende chegar também às áreas urbanas. Sugiro que as pessoas acessem a página da campanha no Facebook https://www.facebook.com/peladivisaojustadotrabalhodomestico e se engajem replicando as peças, que serão lançadas após a Live.