Zumbi vive!
21.11.2019
As comunidades remanescentes de quilombos e seus tesouros invisibilizados pelo racismo
A ASA vem reforçando a luta deste povo rico em bens imateriais, mas excluído historicamente do acesso ao Estado brasileiro

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Por Verônica Pragana - Asacom

Crianças e adolescentes da comunidade quilombola Chã e Aracati, no sertão paraibano, desenvolvendo habilidades com a fotografia | Foto: Palloma Pires

Você conhece os vários significados da palavra 'quilombo'? No Brasil, o dicionário Aurélio define como 'localidade povoada por negros que haviam fugido do cativeiro'. Um ponto de vista escravista. Na África, no norte de Angola, o termo equivalente a quilombo designa 'acampamento de guerreiros'.

Da perspectiva das pessoas escravizadas no Brasil colônia, os quilombos representavam um lugar para viver longe dos açoites, da tortura, do tronco. Um lugar de liberdade. Nos quilombos espalhados por todo o Brasil e por todo o continente americano de norte a sul, seus moradores e moradoras desenvolviam conhecimentos e técnicas trazidos da África, berço da civilização, como o trabalho coletivo na agricultura e a organização social.

Na série Mojubá, um dos 12 episódios trata justamente dos quilombos. "O quilombo não era um ajuntamento de negros fugidos, é a criação modo de vida alternativo ao Brasil colônia, à sociedade escravista. Se trata de outro tipo de organização, outra maneira de produzir, outra forma do exercício do poder político, outra cultura, língua", afirma o escritor Joel Rufino no documentário realizado pelo projeto A cor da África, que produziu, a partir do ano 2004, muitas ações culturais afirmativas sobre a importância e legado do povo negro no Brasil.

Interessante conhecer a história a partir do ponto de vista daqueles que não escreveram a história. "Em todo território da América onde existiu escravidão, existiu quilombo. A história da escravidão é inseparável da luta contra a escravidão. Não há escravidão pacífica", destaca Joel Rufino.

No Brasil, havia quilombos em todo o território nacional. O mais conhecido pela dimensão e capacidade de resistência à força armada do Brasil colônia foi o Quilombo dos Palmares. O dia da morte do seu líder mais conhecido, o Zumbi, é lembrado a cada dia 20 de novembro, estipulado Dia Nacional da Consciência Negra. Há 325 anos, tiraram a vida de Zumbi. Há séculos, ele segue vivo no sangue que corre nas veias de todos os descendentes de quilombolas em todos os cantos do país.

"A nossa história de luta, resistência, sobrevivência e de destruição de barreiras, lutas vencidas é tudo pra nós desses quilombos de Aracati e Chã", assegura Leandra Marques, filha de Esmeralda e Elivan, do Quilombo Chã e Aracati, na zona rural de Cacimbas, município no Médio Sertão da Paraíba.

No Nordeste do Brasil, existem 63% dos quilombos contabilizados em todo o país. São 1.920 dos 3.045 comunidades remanescentes segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de 2018. No Vale do Jequitinhonha,que corresponde a uma parte do semiárido mineiro, são mais de 50 quilombos.

O espaço rural do Semiárido é cravado por histórias de resistência e construção de modos alternativos de vida em sociedade. São histórias que resistem às garras afiadas do racismo e do preconceito, que ferem gerações de afrodescendentes. As comunidades remanescentes de quilombos são espaços onde a garantia dos direitos humanos passam a léguas de distância.

"Você sabe como é a vida de uma família do campo ainda mais pobre e negra", diz Vanusa Oliveira Souza ao relembrar os esforços hercúleos que fazia para estudar quando menina: "Fui estudar em Chapada (Riachão) durante três anos a pé. Saía de casa todo dia antes das seis [horas] pra chegar na Chapada que é a sete quilômetros de Maracujá e, às vezes, nem tomava café. Às vezes não tinha nem dinheiro pra lanchar". Vanusa é uma das lideranças do quilombo Maracujá, em Conceição do Coité, na região sisaleira da Bahia, próximo a Feira de Santana.

"Este país é dividido em camadas. Dentro da camada dos miseráveis, estão os negros. Somos a grande parte do povo que sofre o abandono, a miséria e é marginalizado", pontua outro líder quilombola Francisco Carlos, do Maranhão, na série Mojubá.

Mas, olhar para os quilombos e só ver pobreza é não conseguir enxergar as comunidades tradicionais quilombolas em toda as suas nuances e grandezas. Se, por conta de processos injustos e desiguais de formação da sociedade brasileira, a pobreza material se faz presente entre os negros e negras, em contraposição, a vida nas comunidades quilombolas é rica de bens imaterais: o canto, a dança, as histórias orais da tradição africana, a religiosidade, o artesanato, a culinária, além de outras habilidades, conhecimentos e formas de se relacionar.

"O sagrado pra nós é essa convivência que temos. Tipo assim, não são muito unidos, mas na hora da precisão todos chegam. A compaixão que tem na comunidade. A comunidade nunca abandona o outro, por mais que o outro erre, falhe, apedreje, mas na hora da necessidade a comunidade tá rente. É coisa da comunidade proteger um ao outro. Conheço comunidades que tudo tem que ir pra justiça. Maracujá não. Maracujá passa a mão na cabeça do outro e o outro abraça, pede desculpa, pede perdão. Isso é sagrado. E também os nossos costumes. Isso também é nosso costume, é o hábito de proteger o outro, de não querer ver o outro machucado, de não querer ver a família chorando", conta Vanusa.

Ao microfone, Leandra Marques: jovem, mulher, afrodescendente, liderança comunitária, comunicadora popular e conselheira tutelar da criança e do adolescentes do município de Cacimbas | Foto: Palloma Pires

"Viver no quilombo é viver em paz e em harmonia com a natureza", define a jovem Leandra, que vive numa comunidade com 101 famílias.

Leandra e Vanusa são mulheres negras, líderes natas de gerações distintas que sonham com o progresso das suas comunidades Chã e Maracujá, respectivamente.

Desde menina, Vanusa tinha um sonho, que ainda a acompanha: "Restaurar a comunidade, ver ela mudar, não digo nem mudar, revolucionar assim em projetos, não, em plantas, tipo um posto de saúde, mas sim ela se revolucionar nela mesmo, ela se levantar, a juventude se levantar e dar seu próprio grito, não ficar sentado, não ficar esperando os outros contar a sua própria história, não esperar os outros bater seu próprio mingau pra eles comerem e sim buscar a sua direção, a sua própria meta, ver qual é o seu perfil, os seus desejos e entender que não é o outro que tem que buscar para ela - esse é o meu maior desejo - o outro pode te ajudar, mas é você que tem que ter seu impulso, sua força de vontade, o seu querer, o seu desejo, fazer o seu sonho virar realidade."

A comunidade de Maracujá recebeu a titulação de remanescente de quilombo há apenas 5 anos, em 2014. "Mas te digo que do 14 até o 19, muita coisa - tem uma retrospectiva assim dentro de mim - muita coisa que eu não sabia, aprendi, que eu não vivia, vivi, e que eu não aceitava, eu passei a aceitar ou estou vivendo, aceitando, aprendendo. É um processo lento porque a gente veve o tradicional e não vai em um, dois, três, quatro anos que a gente vai ter essa mudança radical. Então, o que trouxe de oportunidades é que a gente eu mesma nunca pensei em administrar uma comunidade quilombolas".

E emenda: "Hoje, estou como liderança e participando dos movimentos sociais. Antes, já participava mas não atuava como estou atuando hoje. A gente vai descobrindo que tudo tem valor dentro da sua comunidade. Aquilo que estava lá rejeitado, aquilo que a gente jogava fora, que jogava no lixo, que tinha medo de falar, que tinha medo de expor, na verdade, tudo isto tem valor. Por exemplo: um diálogo com o idoso. Eu nunca tive essa importância de estar dialogando com um idoso sobre a comunidade, sobre os antepassados, sobre as histórias antigas. Hoje, às vezes, paro e vou na casa dos idosos para ouvir. Idosas que já faleceram eu já ouvi e até me arrependo de não ter gravado essas falas. Aquilo me tocava muito porque era algo que a gente não valorizava. Eu mesma não valorizava. E a gente percebe que são coisas que têm muito valor, as tradições dos antepassados, um ensinamento antigo mais que vale muita coisa e a gente achava que aquilo ali era só conversa de velho", testemunha Vanusa sobre o seu próprio processo de transformação enquanto líder de uma comunidade quilombola.

Do sertão paraibano, Leandra, que foi eleita recentemente conselheira tutelar da criança e do adolescente de Cacimbas, mais uma conquista das comunidades quilombolas do município, conta cheia de orgulho duas vitórias da comunidade diante do poder público local: "A partir do momento que a gente sabe que tem alguns direitos e vendo a dificuldade que a gente tem aqui na questão da educação, a gente tem aqui uma escola que é desativada dentro da comunidade. A partir de algumas denúncias e encontros com o Ministério Público da Paraíba, nós conseguimos que a escola seja reformada. Agora, neste momento, está acontecendo a reforma desta escola para que, a partir de 2020, as crianças que são de Aracati e Chã já estudem aqui dentro da comunidade. Isso, pra mim, foi uma das minhas maiores conquistas. A escola estava fechada há mais de 15 anos."

A outra conquista dos quilombos Chã e Aracati foi a ordem, por parte do Ministério Público, de fechamento de um lixão que a prefeitura tinha feito dentro da comunidade. Eles reivindicaram e os promotores públicos acataram. "Pedimos porque o lixo é jogado em um terreno. Eles deviam ter cavado um buraco profundo e ir jogando o lixo lá e aterrando. Mas isso não aconteceu, está prejudicando a natureza, com sua vegetação e animais prejudicados pelo fogo que é colocado todos os dias. E, quando chove, leva as impurezas pros açudes e barragens que ligam os quilombos às cidades de Cacimba de Areia e Patos.

Além das lutas e descobertas das duas comunidades quilombolas, elas têm mais outra façanha em comum: fazem parte das etapas dos programas Um Milhão de Cisternas (P1MC) e Cisternas nas Escolas, da ASA, executadas no período de junho de 2019 a março de 2020. Ao todo, foram implementadas 1.546 cisternas de 16 mil litros em 24 municípios de seis estados do Semiárido - Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Bahia e Minas Gerais. Todas as cisternas em comunidades quilombolas. O mesmo número de famílias quilombolas foram capacitadas em gestão e manejo da água armazenada nas cisternas. Já as cisternas escolares de 52 mil litros foram construídas em 184 comunidades quilombolas da Bahia, Minas Gerais, Paraíba e Piauí.

Oficina de produtos radiofônicos realizada em Maracujá com alunos da escola da comunidade no ano passado | Foto: Comunicação da ASA Bahia

Em Maracujá, a escola Maria Rita Marcelina Silva, a única da comunidade, recebeu uma cisterna grande. Antes deste equipamento, era comum ter aula só em dois ou três na semana por falta da água. "Com a cisterna na escola, não se falou que não teve mais aula, nem na creche. Tudo funciona, a água não faltou mais. E a cisterna que fez é muito grande e sempre está com água da chuva e o [carro] pipa que também coloca água. Com estas cisternas a comunidade se libertou. Não totalmente porque a libertação dela vem quando vier a água encanada. Mas, vamos supor que para 80% da comunidade o sofrimento acabou. Digo sofrimento porque, no tempo das chuvas, a comunidade não tinha um reservatório de água. Toda água ia embora pro lugar dela. Hoje tem pessoas que têm uma cisterna e tem pessoas que têm duas. Tem pessoas que não precisa nem desses pontos de água [instalados pela prefeitura de Conceição do Coité/BA], tem pessoas que quando acaba a água já sabem onde pegar, naquela água da cisterna da escola, que está quase cheia, que está meia. Temos ainda uma lista de umas 10 pessoas me pedindo para colocar o nome para fazer cisternas. Tem casas novas sem cisternas e pessoas que ainda sofrem porque não têm as cisternas e não têm condições de fazer".

Na Paraíba, a comunidade Chã e Aracati recebeu seis cisternas de 16 mil litros. São as tecnologias construídas ao lado das casas e acumulam água da chuva para consumo de uma família. Segundo Leandra que também é comunicadora popular, das 101 famílias das comunidades, apenas uma hoje não tem cisterna de água para beber e cozinhar, chamada de cisterna de primeira água. E 31 famílias têm as cisternas que guardam a chuva para cultivar os alimentos e matar a sede dos animais. O acesso à água ainda não está 100% resolvido nestas comunidades, mas a realidade mudou muito desde que as cisternas começaram a ser construídas por lá.

"A comunidade tinha um açude que foi construído em 1983, que era pra suprir a necessidade das comunidades ao nosso redor, sendo uma água imprópria pra consumo. Daí então apareceram as cisternas aqui no município de Cacimbas. De início, algumas famílias participavam das reuniões em outra comunidade pra receber uma cisterna, então construímos três cisternas. Daí então, ao vermos a grande necessidade que as famílias tinham em ter uma água de qualidade e assim diminuir o grande número de diarreia que era epidêmica no município, criamos a nossa associação comunitária em 2004", explica a jovem.

De acordo com Rafael Neves, coordenador dos programas de primeira água da ASA, o P1MC e o Cisternas nas Escolas, "a ASA aprendeu com o Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], órgão que foi importante como orientador de políticas públicas no país e, infelizmente, não está sendo reconhecido pelo atual governo, que historicamente as populações tradicionais foram excluídas e seguem sendo as mais excluídas do acesso ao Estado. Elas representam a margem da margem da sociedade. Se por um lado conseguem acessar políticas de reconhecimento de territórios, por outro, elas não conseguem acessar as políticas sociais que dependem de cadastro feito pelas prefeituras e pelo governo do estado e que alimentam o Cadastro Único". O Cad Único é o sistema que congrega informações das famílias em situação de pobreza e miséria para serem atendidas pelos programas sociais.

Rafael destaca que nas comunidades quilombolas, a exemplo de todo Semiárido, ainda há muita demanda no sentido da promoção da segurança hídrica. E ressalta a necessidade de garantir recursos para as políticas de acesso à água para todos os povos do Semiárido, sem perder de vista a necessidade de priorizar povos tradicionais, quilombolas e indígenas.

E o que esta ação junto às comunidades quilombolas provocou dentro da ASA, esta articulação formada por mais de três mil organizações da sociedade civil que atuam no Semiárido? "Vamos pensar que esta ação proporciona a nossa Articulação uma maior aproximação de movimentos de comunidades quilombolas e assim das temáticas e pautas dessa categoria. Vendo os processos de exclusão contra os quais têm de lutar e assim, nos colocando como parceiros em tal enfrentamento. Tem sido muito importante nos aproximarmos dessa luta com nossas estratégias de mobilização e formação", sustenta Rafael.

Para Alexandre Pires, da coordenação executiva da ASA Brasil, a ASA precisa dar uma maior atenção aos povos indígenas e às comunidades quilombolas do Semiárido, dando maior voz a esses povos. "Principalmente porque, dentro das desconstruções políticas que a gente vive, esses povos - junto às mulheres - têm uma maior vulnerabilidade dentro da diversidade dos povos do Semiárido".