Sementes da Resistência
26.09.2019 PE
Bancos de Sementes nascem e permanecem como parte importante da resistência da agricultura familiar pela agrobiodiversidade
“O trabalho de resistência no campo das sementes é algo maior do que conjunturas pontuais. É um trabalho de resistência diante de uma conjuntura histórica”, afirma o extensionista rural Pedro Henrique de Medeiros Balensifer, em entrevista.

Voltar


Por Hugo de Lima - Asacom

Sementes armazenadas pelas famílias do Semiárido. Foto: Hugo de Lima / Asacom
Ao longo dos anos, as famílias agricultoras do Semiárido brasileiro conduziram uma cultura de estoque para que pudessem estar resguardadas nos tempos de estiagem. É por essa tradição que, através de gerações, variedades imensas de sementes adaptadas às características locais e territoriais chegaram aos dias atuais. No entanto, durante o século XX, a chamada Revolução Verde se constituiu numa mudança drástica na agricultura mundial para regular a produção e a comercialização das sementes, trocando o alicerce da diversidade pelo discurso da eficiência na produção de alimentos padronizados, cada vez mais concentrados nas mãos de latifundiários e empresas com respaldo nas legislações de muitos países. As sementes das agricultoras e agricultores familiares, nessa trajetória, passam a ser marginalizadas e tratadas como grãos.
 
Pedro Henrique de Medeiros Balensifer. Foto: Arquivo Pessoal
É na percepção desse contexto desfavorável para as famílias que surgem os movimentos de resistência ao agronegócio industrial. Em entrevista à assessoria de comunicação da ASA, o extensionista rural Pedro Henrique de Medeiros Balensifer fala que o sentimento de perda “é muito claro em reuniões com agricultores quando você coloca [pergunta] pra eles ‘o que seus pais e avós plantavam de sementes que você não vê mais hoje?’. E eles colocam os nomes de muitas variedades que já não são mais encontradas em suas comunidades. Então isso gera um processo de resistência porque é muito forte o peso da tradição no meio dos agricultores familiares e camponeses. Eles trazem a memória familiar e afetiva muito grande com relação às sementes. Isso os motiva a preservá-las.” Esse processo de resistência reverberou, nas últimas duas décadas, no fortalecimento da guarda e do uso comunitário das sementes crioulas, na formação de redes territoriais e estaduais de sementes, na prática agroecológica, nas novas maneiras de fazer serviços de assistência técnica e extensão rural (Ater), nos novos marcos legais que valorizaram as sementes e na ação da sociedade civil em parceria com governos através da execução de políticas públicas.
 
O texto “Redes Territoriais de sementes crioulas: um novo olhar dos serviços de assistência técnica e extensão rural (Ater) em Pernambuco”, do qual Pedro é coautor, publicado no periódico especializado digital Brazilian Journal of Agroecology and Sustainability, narra esse contexto trazendo a mudança de metodologia e abordagem que os serviços de Ater refletiram a partir desse movimento de resistência e de articulação campesina.
 
Pedro Balensifer é Mestre em Extensão Rural e Desenvolvimento Local pela UFRPE e extensionista rural do Instituto Agronômico de Pernambuco - IPA. É membro do Grupo de Estudos, Sistematização e Metodologia em Agroecologia do IPA - GEMA/IPA e da Rede de Sementes Crioulas do Agreste Meridional de Pernambuco - Rede SEMEAM. Confira a entrevista:
 
Asacom - Durante o texto, vocês traçam uma linha do tempo em sua pesquisa que narra a mudança de atitude de organismos internacionais, como a FAO, nas políticas relacionadas às sementes. Você pode trazer mais elementos dessa nova postura?

Pedro - Nós temos observado que na década passada, nos anos 2000, e também na década atual, houve mudanças na percepção de várias instituições, tanto brasileiras, quanto internacionais. O governo brasileiro, nesse período, compreendeu, de forma diferente, essa questão das sementes locais, de sementes tradicionais e crioulas. Tanto é que a Lei de Sementes e Mudas [№ 10.711/2003], foi a terceira lei de sementes do Brasil, mas pela primeira vez houve o reconhecimento de sementes crioulas como sementes. Inclusive há alguns desdobramentos disso, como a possibilidade de que programas públicos de distribuição de sementes incorporassem as sementes crioulas, de que os programas de crédito rural, de crédito agrícola dos bancos governamentais, dentro do Pronaf, pudessem financiar lavouras também com sementes crioulas, não só com sementes comerciais. E aí, houve essas aberturas. E as instituições reconheceram essa parte da importância do trabalho de resgate, conservação e uso das sementes crioulas.  A própria FAO, um organismo ligado à ONU, que vem há alguns anos dando um enfoque muito grande sobre a importância da agricultura familiar, da agricultura camponesa e da agroecologia. A agroecologia como uma ciência que se ampara também na prática e no movimento e essas formas de agricultura como de grande importância para essa questão das sementes como alimento, como forma de contribuir para a diminuição da fome no mundo. Saindo justamente do discurso que sempre foi adotado que era o de que o aumento da produtividade da agricultura poderia acabar com a fome no mundo. A FAO, que se amparou no passado nesse discurso da Revolução Verde, vem mostrando um novo olhar, uma nova abordagem. E instituições no Brasil também tiveram uma mudança de concepção em relação às sementes.
 
Outra percepção é que a própria criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, focado para agricultura familiar durante os governos de Lula e Dilma, durante tanto tempo, promoveu avanços significativos no Brasil. A gente teve um ministério que olhava para esse segmento produtivo e que direcionava políticas públicas para isso. Então, a própria política Nacional de Ater, de 2004, que foi um documento muito importante, que incorporou a concepção da agroecologia dentro do serviço de extensão rural. Até então, o serviço de extensão rural, principalmente de instituições governamentais, se ampara num modelo de difusão tecnológica. A Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural - Pnater, de 2004, foi um marco pois ela introduziu uma nova forma de fazer a extensão rural, introduzindo mudanças na metodologia e incorpora os princípios da agroecologia na prática da prestação do serviço.
 
Asacom - O Brasil avançou nas últimas décadas, juridicamente, no reconhecimento das sementes crioulas, da agroecologia, da agricultura familiar e da extensão rural. Mas os últimos 3 anos de ações federais são de retrocesso na aplicação desse reconhecimento. Em algumas situações, essas ações são de inversão. Já é possível traçar algum impacto disso para o Ater sobre a produção rural, olhando inclusive para um cenário de futuro?

Pedro - Apesar dos avanços, pois a partir dos anos 2000 (2002, 2003…), a gente teve uma mudança na conjuntura política com os governos progressistas, houve vários processos em que outras forças políticas entraram no circuito e se apoderaram do poder no Brasil e isso automaticamente mudou as prioridades. A gente que antes tinha esse olhar sobre investimento em políticas públicas e ações para a agricultura familiar, perdemos enormemente isso. E a Ater, que é um serviço no âmbito, relacionado à agricultura familiar, perdeu bastante. A gente tem visto uma drástica redução de recursos para as entidades inclusive governamentais, mas também para as Ongs de agricultura familiar e agroecologia, que executam políticas públicas. Temos observado uma grande dificuldade na captação de recursos para projetos nessa finalidade. Então, os impactos já são visíveis. Infelizmente temos observado esse cenário. Cabe a cada um de nós resistir e, da maneira que for, não deixar de trabalhar, de se movimentar, não deixar de buscar a maneira de continuar, pois muito do nosso trabalho profissional também é um trabalho político, de militância, um trabalho de envolvimento com esses agricultores. É notório o desmantelamento dos serviços de Ater, dos recursos e dos programas para a agricultura familiar no Brasil.
 
Asacom - No texto, em cima da análise da experiência de Pernambuco, vocês fazem considerações sobre como o Ater passou de uma característica “individual familiar” para “coletiva e territorial”. Você poderia fazer um destaque sobre essa mudança? 
 
Pedro - Especificamente, o trabalho de sementes em Pernambuco tem adotado uma maneira diferente de Ater que é uma maneira mais coletiva. A gente tem a extensão clássica e que foca muito na família, para desenvolver aquela unidade familiar. Isso tem suas vantagens, mas também desvantagens. [Por exemplo] você acaba ressoando pouco o resultado do trabalho se você só foca numa família. Eu acredito que o trabalho de sementes das próprias redes que têm tentado se articular em Pernambuco tem feito um Ater coletivo e territorial. É interessante que os participantes dos bancos de sementes que foram criados acabam se conhecendo em municípios diferentes através dos seus intercâmbios, das suas feiras de trocas de sementes, de seus seminários… isso gera um movimento territorial no trabalho de sementes. Então, isso causa uma ressonância, um impacto, um resultado muito interessante, ao contrário do foco individual na família.
 
Asacom - Você poderia trazer algum exemplo do peso do lobby das grandes indústrias de sementes, tanto no mercado quanto na Academia, no atual momento político brasileiro? 

Pedro - Para responder, é preciso olhar de algumas décadas até agora. O peso da indústria de sementes não é somente no atual período político brasileiro. Ela já vem pelo menos da década de 1970 pra cá. A indústria de sementes se beneficiou das leis de sementes. Foram leis nacionais, não só no Brasil, mas em muitos países, para se criar um sistema formal de sementes. Toda a ideia da modernização da agricultura passou pela semente no sentido de gerar sementes comerciais, que eram tidas como as certificadas, as sementes que tinham a inspeção, o controle, que eram melhoradas… Então isso promoveu um processo de marginalização histórico das sementes dos agricultores. E quem se beneficiou com o sistema formal de sementes, amparado em leis nacionais, foram as empresas sementeiras, muitas delas europeias, americanas… Beneficiaram-se pois os países criaram um sistema jurídico, regulamentado, de como fazer a produção e a comercialização de sementes. Isso acabou por reconhecer apenas as sementes comerciais como sementes. As sementes dos agricultores eram tratadas como grãos.
 
A Lei de Sementes e Mudas de 2003 reconheceu a semente crioula no Brasil. Até então, esse reconhecimento não existia. O peso dessas empresas se tornou tão grande no sentido de legalizar o comércio formal para as sementes comerciais que isso fez com que, até hoje, as sementes crioulas, mesmo com os avanços [legais], sofram restrições de comercialização no Brasil. Por exemplo, uma cooperativa não pode produzir semente crioula e vender no mercado sem restrições. Isso não é permitido no Brasil. Existem brechas, existem caminhos, como os mercados governamentais, como as compras do PAA, mas é uma produção para programas públicos.
 
Asacom - Vocês resgataram no texto o contexto de resistência no qual os bancos de sementes nasceram, frente à dinâmica consequente da Revolução Verde. Em seguida, eles florescem em uma escala nunca antes vista junto com o Programa Sementes do Semiárido. Mas com a redução de investimentos e a visível perda de interesse federal no diálogo com a sociedade civil e suas experiências, quais as perspectivas de resistência no campo das sementes?

Pedro - O trabalho de resistência no campo das sementes é algo maior do que conjunturas pontuais. É um trabalho de resistência diante de uma conjuntura histórica. A gente percebe claramente os efeitos da Revolução Verde e aí por isso que falo histórico, porque foi um evento histórico, foi uma mudança histórica na agricultura mundial. Um dos grandes problemas que a Revolução Verde trouxe foi a erosão genética das variedades agrícolas. Esse é um dos pontos que a gente se detém mais porque há tanto relatórios da FAO quanto de estudiosos e pesquisadores que mostram que foram perdidas, no mundo, durante o século XX, cerca de 75% a 95% das variedades agrícolas. Então, a gente ainda tem as culturas agrícolas, mas o número de variedades, da diversidade que já existiu no planeta, era muito maior.
 
Esse evento causa um processo de resistência. As comunidades têm percebido essa mudança. E as próprias assessorias técnicas têm levado essa compreensão aos agricultores, mostrando o que tem sido perdido. Isso é muito claro em reuniões com agricultores quando você coloca [pergunta] pra eles “o que seus pais e avós plantavam de sementes que você não vê mais hoje?”. E eles colocam os nomes de muitas variedades que já não são mais encontradas em suas comunidades. Então isso gera um processo de resistência porque é muito forte o peso da tradição no meio dos agricultores familiares e camponeses. Eles trazem a memória familiar e afetiva muito grande com relação às sementes. Isso os motiva a preservá-las, buscar novamente e multiplicar as variedades, entrando nesse movimento das sementes crioulas e dos bancos de sementes, independente se vai existir recursos ou não para esse programas. A perspectiva de resistência é grande! É um trabalho crescente e altamente necessário, não só no Brasil, mas no mundo todo, que é o de preservar as variedades locais e crioulas.
 
Asacom - Podemos afirmar que as casas e os bancos comunitários, tão como as redes que se formaram nesse meio, são as trincheiras de resistência para a agrobiodiversidade nos próximos anos? Você vê força também, nesse sentido, na Academia?

Pedro - Sim! Acredito que a existência das casas e bancos de sementes e das redes territoriais e estaduais de sementes são algo fundamental para conseguir a manutenção da agrobiodiversidade. Eu vejo como estratégias de aglutinação de agricultores e espaços de formação. Não são só espaços de multiplicação de sementes em si, mas de formação cidadã num momento em que esses agricultores são inseridos na reflexão de que estilo de agricultura nós queremos no mundo. Nós queremos uma agricultura empobrecida, com poucas variedades, manejada quimicamente em todos os seus processos? Ou nós queremos uma agricultura biodiversa, com consórcios policultivos, fazendo alimentos saudáveis?
 
E a Academia, a universidade pública, ela também é uma trincheira de resistência. É um dos poucos locais que temos na sociedade em que há produção de conhecimento e que há problematização das coisas, há uma análise mais crítica. São espaços de formação crítica. As universidades têm se mostrado nesta conjuntura como um espaço de resistência, inclusive para o campo, para a agroecologia, para a agricultura familiar… Temos o exemplo da Universidade Federal Rural de Pernambuco que tem diversos trabalhos voltados para as comunidades rurais do estado; trabalhos de extensão e de apoio com agroecologia aos agricultores. Precisamos continuar lutando para que esse patrimônio que é a universidade pública no Brasil possa continuar existindo e fazendo esse trabalho, sendo uma universidade referendada socialmente.