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25.02.2017
'Estamos cavando a nossa sepultura'
Jornal - Diário de Pernambuco
Professor emérito da UFPE enfatiza que criamos hábitos e estilo de vida incompatíveis com a segurança alimentar

Por Alice de Souza

A ideia de fome como decorrência da estrutura social e econômica, publicizada há mais de 70 anos por meio do livro Geografia da Fome, chegou às leituras de Malaquias Batista Filho ainda no quarto ano do curso de medicina. A análise do pernambucano Josué de Castro foi como uma convocação, um norte de toda a trajetória profissional do hoje professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), docente e pesquisador do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip) e integrante do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Ao longo dos mais de 50 anos dedicados ao estudo da nutrição em saúde pública, o paraibano radicado no Recife viu o Brasil sair do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) e atingir um dos objetivos do milênio, depois de reduzir em 82% o número de habitantes em situação de subalimentação. Acompanha e estuda também a ascendência do sobrepeso e das doenças crônicas associadas em todo o mundo. Em decorrência das cinco décadas de produção científica focada na desnutrição infantil, Malaquias foi um dos agraciados, em outubro passado, com o Prêmio Anísio Teixeira, concedido a cada cinco anos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Aos 82 anos e prestes a concluir a 4ª Pesquisa Estadual de Saúde e Nutrição, Malaquias não hesita em dizer que a humanidade precisa refletir sobre o futuro em construção se quiser continuar existindo.

O que podemos entender por segurança alimentar?
Seria uma espécie de carta de cidadania. Ela é definida e hoje representa a segurança de uma série de direitos, ou seja, não é um processo solitário. É um processo histórico que envolve o desenvolvimento humano como um todo. A segurança alimentar é uma condição em que todas as pessoas, em todos os lugares, deverão ter acesso a todo um conjunto de alimentos básicos, definidos por sua cultura, capaz de satisfazer suas necessidades nutricionais de forma plena. E ao mesmo tempo com a segurança de que outras necessidades humanas básicas sejam respeitadas, como a necessidade de educação, habitação, saúde, trabalho digno e meio ambiente. Uma das questões intrínsecas à segurança alimentar é a sustentabilidade. Ainda que tenhamos alimento para todas as pessoas, isso não vai para o futuro. É praticamente um programa político e de governo mundial. No dia em que houver, a segurança alimentar será universal, participativa, ética e sustentável.

E como se pode garantir a segurança alimentar?
Nós teríamos que trabalhar para reduzir as desigualdades econômicas. Hoje alguns países ricos têm renda per capita de 40 a 50 mil dólares. Enquanto outros pobres têm renda de 400 dólares. Não dá para imaginar o futuro mantendo esse diferencial. Sob o ponto de vista econômico, é um grande desafio a ser cumprido. Sob o ponto de vista social (facilmente o econômico descamba para o social), havendo desemprego, sem participação, violando o meio ambiente, violando a ética, desrespeitando o conceito ideal, esse provavelmente será um conceito construído daqui a duas gerações. As pessoas que estudam esse problema imaginam que em 2050 possamos estar com essa equação relativamente solucionada. Mas é um esforço que envolve interesse de países, interesses econômicos, implica coparticipação e nem todos estão dispostos a aceitar. Implica numa reformulação ética das nossas práticas culturais e políticas. E num cenário que nunca foi seriamente cogitado, o da ecologia. Os solos da agricultura e pecuária no mundo estão desaparecendo. Em cerca de 50, 60 anos, os solos perderam 60 centímetros de profundidade. A construção da terra é um processo lento, precisamos de 800 anos para formar um centímetro de terra. Estamos indo de encontro ao meio ambiente.

Então os desenvolvimentos econômico e humano são incompatíveis?
Nós durante muito tempo pensamos que o progresso seria ilimitado e essa é provavelmente uma das grandes ilusões da humanidade. O atual presidente dos Estados Unidos provavelmente pensa assim, que não há limite para o progresso. Se nós fóssemos aplicar o padrão de vida americano ou japonês a todos os povos da Terra, precisaríamos de três planetas para manter a demanda de recursos naturais. E isso não existe. A gente imagina o futuro, um conjunto de medidas que temos que tomar para viabilizá-lo, ele tende a desaparecer.

Josué de Castro entendia a fome como um problema político e econômico. Em todo o mundo, fala-se em um retorno ao conservadorismo. No Brasil vive-se uma crise nesses dois pilares. O atual momento pode repercutir na cooperação para garantir no futuro a segurança alimentar?
Imagino que em algum determinado momento, sendo um pouco otimista, as lideranças mundais, a opinião pública mundial, seja capaz de dar um basta ao que está se fazendo e comece a agir de forma diferente. Tenho uma neta que reclama quando vê outra criança arrancando uma flor na praça. É interessante que uma pessoa de 8 anos comece a ter essa consciência. É isso que parece ensinado na escola que está na minha cabeça, de um velho de 82 anos, para ser uma prática comum. Nos Estados Unidos está havendo reação. Na Europa, provavelmente terá reação. Acredito que está se fazendo uma corrente que está atenta para esse risco do futuro.

Por que a fome ainda existe no mundo?
No momento em que conversamos aqui, possivelmente muitos homens e mulheres estão passando fome. E estão passando fome por conta de uma estratificação social e de funções sociais que não acolhem o interesse de todos. A segurança alimentar foi vista no passado como instrumento de guerra. Foi verificado na primeira guerra que uma questão fundamental para vencer era ter alimentos. Em outro momento, a segurança passou a ser uma questão de paz. A paz da paz, como chamava Josué, não uma paz como trégua. Hoje você tem 2 bilhões de pessoas com anemia. Problemas que tinham desaparecido no passado, como a deficiência de iodo na Europa, o raquitismo, estão reaparecendo. Existe a expectativa, os estudos ainda não são suficientemente claros para descrever com segurança, mas é possível que metade das mulheres do mundo esteja com deficiência de Vitamina D. O beribéri reapareceu no centro do Brasil. Estamos no limiar de um período em que começam a aparecer de uma forma bem clara epidemiologicamente problemas de insegurança do passado. Além dos problemas de insegurança do presente.

Quais são os problemas de insegurança do presente?
A obesidade é um deles. Nós vivemos uma situação muito restrita no passado e hoje 70% a 80% da população têm sobrepeso e obesidade, mesmo as pessoas pobres. Se nós tivéssemos uma condição de segurança alimentar, nós teríamos saúde nutricional, não teríamos doenças agudas, infecciosas e crônicas como existe no presente. A trilogia obesidade, sobrepeso e hipertensão está levando à morte quase 70% as pessoas. Em duas décadas, praticamente generalizou-se a epodemia da diabetes. E ainda temos a desnutrição em diferentes espaços do mundo. São dois problemas coexistindo. Criamos hábitos, estilos de vida, incompatíveis com a segurança alimentar.

Como é possível reverter nossos hábitos?
Gostaria de ter essa resposta na ponta da língua. De certa maneira, é fácil. Nós teríamos que consumir alimentos de forma adequada, fazer atividade física, ter estilo de vida saudável. A receita é simples, agora como fazer isso considerando processos de vida coletiva, de governo, de hábitos de pessoas generalizados… Nós apanhamos um prato não apenas pelas nossas necessidades fisiológicas, mas consumimos um prato que em grande parte os meios de comunicação, a economia, os estilos de vida exigem. Nós estamos atuando dentro do esquema que os mercados globalizados, visando sobretudo o lucro, nos levaram a viver. A correção disso é difícil. Teríamos praticamente que construir uma nova civilização, o que é possível. Agora até que isso aconteça, é necessário um trabalho de convencimento coletivo. São praticamente oito passos para a gente chegar ao desenvolvimento humano. Corrigir a economia, as desigualdades, respeitar o meio ambiente, implantar princípios éticos (assumindo a ética como um elemento de ligação das ideias humanas).

A fome é então também decorrente da ausência da ética?
A ética ficou em Aristóteles. Esquecemos a ética, levamos para a técnica e hoje estamos vendo que tem que abrir espaço ético para a conduta humana. A ética tecnológica, a política, a coparticipativa, a da subjetividade e até a da espiritualidade. Não sou espiritualista, mas você tem que imaginar, grande parte das pessoas acredita em outros tipos de valores e essas pessoas são gente. E são mais da metade da população humana. A própria cidadania tem que respeitar a questão da espiritualidade. Muitos acreditam, no último seminário que participei, que somos uma espécie condenada à extinção, como espécies que passaram 60, 70 milhões de anos, para serem destruídas. A nossa espécie tem 12 mil anos, somos recém-aceitos dentro do ciclo dos seres vivos e praticamente estamos cavando a nossa sepultura.

O senhor compactua dessa ideia?
Eu luto contra isso, preciso não acreditar, mas é um risco concreto que existe.

As chamadas “políticas assistencialistas” são o caminho para reduzir as desigualdades e evitar esse prognóstico de alguns especialistas sobre a espécie humana? 
Tem medidas assistencialistas que necessariamente precisam ser aplicadas. Se tem alguém passando fome, é difícil esperar que arranje emprego, que o mercado alimentar reduza seus preços. Um dos papeis da FAO é exatamente assegurar que exista disponibilidade de alimentos em vários países do mundo. Agora, o grande problema é que a curto prazo há as medidas assintecialistas e a longo prazo é preciso medidas que corrijam as distorções do processo econômico e social, para tornar desnecessárias as medidas de caráter assistencialista. Atualmente, no Brasil, isso se tornaria desnecessário se não tivesse aumentando o desemprego. À medida em que aumenta o desemprego, mais haverá necessidade de gente que vai precisar receber cesta básica de alimento.

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