Nenhum Direito A Menos
14.09.2016
Cores vibrantes e diversas não desejam ser o velho preto e branco
Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e trangêneros não aceitam menos direitos sociais diante de congressistas conservadores e um governo de retrocessos.

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Por Hugo de Lima - ASACom

Usada como símbolo do movimento LGBT, a bandeira arco-íris está presente em manifestações pela Diversidade desde os anos 1970. | Foto: Hugo de Lima
#NenhumDireitoAMenos

SÉRIE NENHUM DIREITO A MENOS | Existem muitas expressões de afetividade entre as pessoas que levam a uma diversidade de desenhos de famílias. Formar família é um direito humano fundamental, embora ainda cercado de tabus que legitimam socialmente apenas aquelas uniões entre homens e mulheres heterossexuais. Os estatutos morais das várias regiões do Brasil, incluindo o do Semiárido, que são regras sociais não escritas e baseadas em aspectos culturais e religiosos, não reconhecem de forma ampla as outras formas de famílias que incluem esse diverso conjunto de uniões. Essa marginalização é conhecida como heteronormatividade e é o princípio motriz de violências como a homofobia, a lesbofobia, a bifobia e as transfobias.

Nacionalmente, as políticas públicas que garantem direitos a esse público são bastante frágeis. E, neste atual cenário, com o Congresso mais conservador já eleito desde o golpe militar de 1964, a previsão é de mais exclusão ao desconsiderar a realidade e situar à margem da legalidade milhares de famílias constituídas por uniões e casamentos entre lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e trangêneros. O Projeto de Lei (PL) 6583, em tramitação no Congresso desde 2013, de autoria do deputado federal pernambucano Anderson Ferreira (PR/PE), é defendido por correntes evangélicas para legitimar a heteronormatividade na lei, discriminando as várias outras formas de famílias. Nomeado ironicamente como “Estatuto da Família”, a proposta serve unicamente para constranger ainda mais essas pessoas.

“Do ponto de vista do direito, volta aquele medo de que, numa família não reconhecida legalmente, a gente tenha que passar por questões como, num caso de falecimento, nem a dor da perda a gente possa viver, porque não seríamos nada... Desse ponto de vista, é um retrocesso.” A fala da cearense Daniela Bento, de 45 anos, moradora de Poço Redondo, no Semiárido sergipano, resgata situações que já haviam sido legalmente superadas. “De modo geral, nessa questão das famílias quando invisibilizadas, a gente vê vários casais não se autodeclararem família. Eles se apresentam como amigos, como amigas, e não têm coragem de expor isso à sociedade, já que há um preço muito alto a se pagar.”

Iva Melo (à direita) e Daniela Bento. | Foto: arquivo pessoal

Daniela é especialista em Políticas Públicas e sua companheira, Iva Melo, formada em Pedagogia. Elas estão casadas há 10 anos e comemoram a conversão da união estável em casamento civil ocorrida no dia 1º de setembro deste ano. “A gente tem uma aceitação grande das nossas famílias e isso nos fortalece para declarar essa afetividade.” Ela fala que, apesar da aceitação, ainda há uma limitação na compreensão de que as duas são também uma família. “Por exemplo, em datas comemorativas, como Natal e Ano Novo, que são datas familiares, algumas pessoas de nossas famílias acham que não tem problema o casal se separar. Nós também somos uma! E o olhar sobre isso ainda é limitado.”

O IBGE tem divulgado números referentes aos casamentos realizados entre pessoas do mesmo sexo desde 2013, quando o Conselho Nacional de Justiça determinou que cartórios não poderiam mais se recusar a celebrar casamentos civis de casais do mesmo sexo ou deixar de converter em casamento a união estável homoafetiva, através da Resolução n. 175. Já naquele ano, foram 3,7 mil famílias que se casaram. Em 2014, mais de 4,8 mil. Os dados de 2015 serão divulgados até o final deste ano. Essa resolução teve base na histórica decisão unânime do Supremo Tribunal Federal, de maio de 2011, que reconheceu a equiparação da união homossexual à heterossexual, consolidando direitos como maternidade, paternidade, partilha de bens, pensão e estado civil. Segundo a International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association (ILGA), além do Brasil, países como Argentina, Uruguai, Colômbia, Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia, África do Sul e diversos outros na Europa possuem leis que permitem o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Brasil teve milhares de casamentos e conversões de união estável em casamento desde a decisão do STF, em 2011. | Foto: Paulo Pinto / Fotos Públicas

A história de Berta Rodrigues (nome fictício), engenheira agrônoma filha de agricultores e moradora da zona rural de Afogados da Ingazeira, no Semiárido pernambucano, traz nas nuances o receio à exposição, embora tenha uma vida com sua esposa cheia de conquistas. “Depois que comecei a trabalhar em uma organização social, encontrei a pessoa que me trouxe um relacionamento seguro e que construiu comigo uma vida juntas. Nós conquistamos na sociedade um respeito pelo nosso relacionamento. As pessoas da família sabem que nós somos um casal e a aceitação vem muito a partir do que você se propõe”. Para Berta, a construção da família é algo fundamental. “A gente não casa com o sexo, a gente casa com pessoas. O casamento é muito no sentido do compartilhar, do companheirismo, de você estar junto nos momentos difíceis. É também uma questão de seguridade [o casamento civil], diante da vida que construímos juntas, diante das coisas que temos juntas.”

O professor de Direito Daniel Borrillo, em seu livro "Homofobia - História e crítica de um preconceito" conceitua o preconceito e o não reconhecimento das diferenças como manifestação arbitrária “que consiste em designar o outro como contrário, inferior ou anormal; por sua diferença irredutível, ele é posicionado a distância, fora do universo comum dos humanos”. Falar em pessoas e situações comuns ou normais é dizer justamente que existem pessoas e situações não comuns e não normais. Aqui, o mínimo é dispensar alteridade e insistir em violência. E a violência é típica, já que "nas sociedades marcadas pela dominação masculina, a homofobia organiza uma espécie de vigilância do gênero. A virilidade deve se estruturar em dois aspectos: negação do feminino e rejeição da homossexualidade", afirma Borrillo.

Os meios urbano e rural são construídos, neste sentido, pelo machismo. A ideia envolve como base dessas violências o sexismo atrelado às figurações pejorativas que homens gays são submetidos. Como o termo “bicha”, em alusão a um homem afeminado, portanto “inferior” nessa lógica. A homofobia, inclusive, não está sozinha. Esse conjunto de violências aos homossexuais se estende a tipologias como lesbofobia ou lesbifobia, aversão às pessoas lésbicas, bifobia, às pessoas bissexuais, e transfobia, em relação às pessoas travestis, transexuais e transgêneros.

Violência e políticas públicas - A Ouvidoria Nacional e o Disque Diretos Humanos (Disque 100) recebem denúncias, todos os dias, de casos envolvendo homofobia, lesbofobia e/ou transfobia. O número de denúncias de violação de direitos humanos contra a população LGBT aumentou 94% em 2015 em relação ao ano anterior. Em outro recorte, entre 2011 a 2014, foram registradas 7.649 denúncias. A discriminação e a violência psicológica congregam a grande maioria dos casos em 2014, com 85% e 77%, respectivamente. Dos estados que estão no Semiárido, Bahia, Ceará e Pernambuco foram o que registraram os maiores números de casos entre 2011 e 2012, no campo e na cidade. E Sergipe é o estado com o maior crescimento de registros, com cerca de 343% apenas em 2012.

Com 546 casos de assassinatos, entre 2011 e 2015, o Brasil recebeu o vergonhoso título de país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo a ONG Transgender Europe. Em outros dados, obtidos no último relatório publicado pelo extinto Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos referente ao ano de 2013, a distribuição de homicídios LGBT por estado, com base na veiculação de notícias acerca desses crimes, colocam Pernambuco (8,4%), Minas Gerais (8,4%), Bahia (8%) e Paraíba (6,8%) entre os cinco locais mais recorrentes.

Paradas LGBT são realizadas no país há vários anos e em diversas cidades. Além de grandes festas, vão às ruas pela visibilidade, pela diminuição das violências e por mais políticas públicas. | Foto: Elza Fiuza / Agência Brasil

Esses números refletem a falta de uma política pública forte no combate às violências contra LGBT. Planos que vão além do âmbito da saúde, mas que garantam acesso à informação, fortalecimento de uma educação que reconheça a diversidade e justiça social. Nos estados nos quais se encontra o Semiárido brasileiro, há um conjunto de leis, decretos e resoluções que garantem algumas conquistas em níveis estaduais e municipais. No Maranhão, desde 2006, uma lei já dispõe sobre penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em virtude de orientação sexual. Em Minas Gerais, a legislação determina a inclusão de conteúdo e atividades voltadas para a orientação sexual no currículo do ensino fundamental. Em Alagoas, o nome social das pessoas travestis e transexuais, maiores de 18 anos, deve ser incluído nos documentos escolares internos das escolas do Sistema Estadual de Ensino. Há dez anos, o estado também organiza o Dia Estadual de Combate à Homofobia, no simbólico 17 de maio – dia em que a Assembleia-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1990, reconheceu que a homossexualidade não é uma doença mental.

Embora esse cenário, no geral, a execução de políticas públicas voltadas às LGBT nos estados do Nordeste é pequena e se concentra principalmente nos grandes centros urbanos. O campo, infelizmente, é um lugar de poucos investimentos e atenção para as necessidades específicas dessa população.

No âmbito da saúde pública, Fátima Silva, que é representante do Grupo Mulher Maravilha, organização que trabalha com prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) com atuação no Sertão do Pajeú, no Semiárido pernambucano, traz que a atenção às lésbicas é mínima nas regiões em que o Grupo atua. “O público alvo se concentra na mulher. Não interessa se ela é lésbica ou não e isso deveria ser considerado, por exemplo, nas consultas de prevenção. Não há políticas específicas para as lésbicas.” Sobre a falta de políticas efetivas e em execução, Fátima avalia como muito ruim. “A gente sabe que essas pessoas existem – elas estão aí. E elas deveriam ser tratadas com mais respeito. Respeito a cada um desses públicos. E da mesma forma que tratamentos de saúde para a mulher, os homens também deveriam ter políticas voltadas para eles, de forma explícita, sem preconceitos. A omissão disso, às vezes, parte das pessoas que vão atender, por puro preconceito e isso é muito ruim.”

O Grupo Mulher Maravilha, junto a outras organizações, participa e organiza o Fórum de Mulheres do Pajeú. Fátima situa como positiva a presença das discussões específicas do público LGBT no fórum. “É um tema que está sempre entrelaçado com outros temas e que é pautado nas discussões. E o nosso trabalho é de fortalecer isso, trazendo pessoas que podem apoiar esse debate, sempre ampliando.”

Retrato de discriminação de gênero e raça, posse dos ministros do governo Michel Temer tornou primeiro escalão formado apenas por homens brancos. | Foto: Lula Marques / Agência PT

O golpe e a "mordaça de gênero” - Na contramão do anseio por uma ampliação das políticas públicas LGBT, está a nova gestão federal. No dia 12 de maio deste ano, o então presidente interino Michel Temer, após o afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, decretou a submissão de uma das pastas mais importantes no combate à homofobia que era o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos para uma Secretaria, numa atitude política que tornaram as pautas ainda menos visíveis. Nada mais que o reflexo de seu governo no que diz respeito aos direitos sociais.

Segundo Roberto Efrem Filho, professor de Direito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), houve uma preparação para o impeachment de Dilma Rousseff e do projeto que seu governo representa com o fato das bancadas evangélicas terem articulado nos âmbitos legislativos municipais, estaduais e nacional projetos de leis de “mordaça de gênero”, ou que ficou disseminado por essas bancadas como “ideologia de gênero”, para impossibilitar que profissionais de educação pudessem tratar sobre sexualidade. “É como se houvesse a preparação de uma ascensão conservadora com redução de direitos em muitos níveis para possibilitar o golpe. O caldo moral e político que oportuniza o desenlace do golpe foi forjado em gênero e sexualidade.”

Para o professor, “de modo muito flagrante, a gente percebe que a maioria significativa da bancada evangélica votou favoravelmente ao golpe. Quando a gente observa as justificativas para o ‘sim’ naquele cenário, eram justificativas que reivindicavam noções de família. Os deputados estavam pouco preocupados com a existência ou não de crimes de responsabilidade ou de um lastro democrático sustentado em 54 milhões de votos naquela mulher presidenta da República. Eles estavam muito mais preocupados em homenagear a mãe, o pai, a filha, a avó... Os votos eram em homenagem aos filhos, à família e à terra natal. Essas referências que seriam de um modelo concebido como tradicional não são ocasionais, assim como o fato da maioria da bancada evangélica ter votado a favor do golpe não é ocasional.”

Manifestantes LGBT durante Marcha do Dia do Trabalhador, em maio deste ano. | Foto: Hugo de Lima / Arquivo ASACom

Militante também do Comitê LGBT da Frente Brasil Popular de Pernambuco, Efrem Filho diz que “a compreensão do movimento LGBT acerca do cenário político atual é de que os limites da democracia, que estão sendo colocados em xeque por este golpe, são cobrados nos corpos e nas vidas de mulheres e de LGBT”. Nos últimos meses, as bandeiras de luta das tradicionais mobilizações pelo Orgulho foram fortalecidas pela presença dos movimentos sociais LGBT nas manifestações contra o golpe e a favor da democracia. A bandeira do arco-íris, símbolo da Diversidade, seguiu em várias mobilizações. A razão é simples: foi com o período democrático do país que diversas conquistas foram possíveis e estar diante de um governo que retrocede justamente nas políticas de direitos humanos, junto com um Congresso que pauta a marginalização, não reflete nenhum anseio popular.

Paradas do Orgulho LGBT - Há no Brasil, hoje, várias mobilizações de afirmação política organizadas por fóruns e grupos que visibilizam as lutas por vida digna e políticas públicas para as pessoas de diversas afetividades. Nos estados do Semiárido, essas paradas estão concentradas nas capitais, mas cidades como Feira de Santana e Ipirá, no Semiárido baiano, já realizam eventos há alguns anos. No dia 25 de setembro, sairá às ruas a 15ª Parada LGBT de Feira de Santana com o tema: “Sou cidadã, sou cidadão... Somos LGBT”. No próximo domingo (18), a 6ª Parada do Orgulho LGBT de Ipirá terá com o tema: "Chega de preconceito. A vida é uma só". E desde o início do mês, Pernambuco realiza o Setembro da Diversidade, com palestras, eventos de saúde pública e a 15ª Parada da Diversidade LGBT de Recife, também no dia 18.