Direito à Comunicação
05.07.2021
Comunicação popular: ativismo que transforma a realidade da juventude rural
No Vale do Salitre (BA) e no Quilombo Mimbó (PI) ações protagonizadas por jovens são só uma prova do que acontece no Brasil rural

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Por Érica Daiane Costa | ASACom

Foto: Acervo Carrapicho Virtual

Ao iniciar uma entrevista por telefone eu ouvia o entrevistado contar que nasceu numa comunidade rural, aliás, no hospital da cidade, dizia ele, mas considera mesmo sua origem no Quilombo Mimbó, interior de Amarante, município que fica a 170 km de Teresina (PI). De imediato me enxerguei ali, pois sempre conto assim quando perguntam minha origem: nasci e me criei no Salitre, quer dizer, nasci na maternidade, na sede de Juazeiro, mas só fiz nascer mesmo, minha identidade é rural, sempre afirmo. O Vale do Salitre faz parte do município de Juazeiro, no sertão da Bahia.

A conversa seguiu e Ramon Paixão, que no registro é Diego Ramon Paixão da Silva, começou a contar sua trajetória, que segue “desde 1993 em construção”, conforme ele informa atualmente em sua conta do WhatsApp, no espaço destinado a recado. Eu cá com meus 34 anos, fui indagando o garoto para entender como ele se aproximou da comunicação popular, assunto que fez nos conhecermos há alguns meses, quando o mesmo se dispôs a integrar a Rede de Comunicadores/as da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).

Esta Rede eu conheci quando tinha 23 anos e passei a fazer parte da equipe de Comunicação do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), organização que integra a ASA. Cheguei ao Irpaa porque, assim como Ramon, me aproximei da Comunicação Popular como militante, como defensora de uma comunicação que ajude a promover outros direitos, a diversidade cultural, a luta popular. A comunicação é algo que já vinha na minha bagagem desde a adolescência mas incorporei na minha vida pra valer durante o curso de Comunicação Social da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), concluído em 2010.

Nessa época, Ramon estava prestes a concluir o ensino médio e seus planos eram viajar e assim fez. Andou por São Paulo, Minas Gerais e Goiás, trabalhando na indústria, até retornar depois para o Mimbó e fortalecer suas raízes, regando-as com as águas do Rio Canindé, que fornece água e alimento para muitas famílias do Quilombo, assim como acontece na Tapera, minha comunidade de origem, às margens do Rio Salitre.

Na entrevista, Ramon foi falando e me fazendo rememorar a infância estudando na comunidade em escola multisseriada, depois as aventuras no transporte escolar precário ao nos deslocarmos para estudar o ensino fundamental II e médio. Quando ele falou que por volta dos 15 anos a comunidade recebeu um Telecentro, onde ele fez um curso de Informática, pensei: caramba, quanta conexão! Meu primeiro contato com a informática foi também a partir de um curso de Informática na Associação de uma comunidade vizinha, também com esta idade. No meu caso, teve até formatura, era um programa de Informática Comunitária de um governo petista na Prefeitura de Juazeiro. Já no Mimbó, o curso foi financiado pelo Banco do Brasil e o menino Ramon teve um desempenho tão bom que foi escolhido como coordenador do Telecentro, cargo que exerceu por dois anos, chegando a ministrar cursos para a comunidade. Tudo isso antes de chegar à maioridade.

Érica Daiane registrando manifestação na Ponte sobre o Rio São Francisco (entre Juazeiro/BA e Petrolina/PE) alguns anos atrás. | Foto: Acervo Pessoal

Eu também assumi cedo alguns cargos de coordenação, desde o grupo de teatro com jovens da comunidade, diretorias na Associação, no Movimento Estudantil e depois nos espaços de trabalho. Hoje sou professora do Ensino Superior e integro a equipe de Comunicação da ASA, a ASACom, e cheguei até Ramon Paixão a partir da página do Quilombo Mimbó no Facebook durante a produção de uma matéria sobre construção de cisternas na comunidade. Gostei muito das postagens da página, as quais são feitas por Ramon, do engajamento visível e, ao conversar com o jovem comunicador quilombola, vi ali elementos da educomunicação, área que tenho pesquisado e desenvolvido ações como profissional e como ativista social.

Ramon me contou que criou a página em 2012, mas que não esperava que se tornaria referência para as pessoas. Como na época o acesso à internet na comunidade ainda era bastante limitado, “chamou mais atenção de fora”, relata, a exemplo dos governos, sites de notícias, pesquisadores/as. “Ai meu Deus, vou ter de ter uma responsabilidade maior”, lembrou ele achando graça da sua iniciativa despretensiosa. Ele diz que passou a se preocupar mais com o conteúdo, que varia desde eventos, projetos, denúncias e potencialidades da comunidade, como o Festival da Cultura Negra, realizado em novembro e constante atividades políticas.

Uma denúncia em 2017 colocou a rede social do Mimbó em evidência: a gestora da escola da comunidade queimou livros que contavam a história do povo negro, os quais tinham sido doados pelo Iphan - (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Após a repercussão na internet, a Secretaria de Educação afastou a educadora da escola e outra conquista do Quilombo foi contar apenas com pessoas da comunidade contratadas para trabalhar na referida escola.

Foi provocando o poder público, falando dos problemas sociais e das riquezas culturais do Salitre, que a página Carrapicho Virtual também tornou conhecida uma experiência de educomunicação que iniciei em 2016 com jovens salitreiros/as. A iniciativa teve início com a produção coletiva de um informativo impresso como produto do meu Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo, e, seis anos depois, migrou para a rede mundial de computadores. O grupo virou Coletivo e o Carrapicho Virtual tornou-se referência em educomunicação no Sertão do São Francisco.

Divulgação de sessão do Cinema Popular em comunidade do Salitre | Imagem disponível no Facebook Carrapicho Virtual

Uma das ações do Carrapicho é o “Cinema Popular”, que consiste na exibição de filmes brasileiros ao ar livre em noites de sábados, de forma rotativa nas comunidades, atividade suspensa desde março de 2020 devido à pandemia da Covid-19, pois chegava a reunir aproximadamente 100 pessoas.

Divulgação do Cineminha no Quilombo | Imagem disponível Instagram Quilombo Mimbó

No Mimbó, Ramon idealizou o “Cineminha no Quilombo”, que tem como público-alvo crianças e adolescentes, mas que adultos acabam participando também. Pantera Negra foi o primeiro filme exibido, sendo sempre precedido de uma boa resenha para instigar o público.

Com a prática da produção de notícias com uso do celular, participação em oficinas, cursos, eventos, diversos jovens do Carrapicho desenvolveram ainda mais interesse por estudar. Alguns/as ingressaram na Universidade e Cursos Técnicos e se dividem entre a vida urbana – já que os centros de estudos ficam todos na cidade – e a comunidade, onde vive a família. Esta foi também a minha rotina durante toda a graduação e é a mesma de Ramon, que, em 2019, foi aprovado no curso de Ciências da Natureza/Educação do Campo na Universidade Federal do Piauí – Campus Teresina. Ele estuda no modelo de Pedagogia da Alternância, onde permanece 45 dias no tempo universidade e 45 dias no tempo comunidade.

Enquanto o jovem comunicador popular e futuro educador por formação está a 187 km de distância do quilombo, sua prima Marta e seu primo Rodrigo são uma espécie de correspondentes populares. Para manter as redes sociais do Mimbó atualizadas, Ramon recebe o conteúdo enviado pela dupla e organiza para postar. Isso já acontecia no sertão da Bahia antes da gente nascer, no início da década de 1980. Um bispo chamado Dom José Rodrigues começou esse trabalho na região da Diocese de Juazeiro, mostrando que o povo precisava fazer sua voz ser ouvida, formando jovens para produzirem informações, ao tempo em que sabiam receber os conteúdos midiáticos de forma crítica. O Carrapicho Virtual, sem dúvida, nasceu com base nessa experiência, que conheci ao ingressar na universidade e ao ser voluntária da Pastoral da Mulher Marginalizada, em 2006.

Ramon Paixão com familiares durante subida nos Cânions do Rio Canindé

Na região do Médio Parnaíba, Ramon também acredita no potencial da comunicação popular, seja para produzir sujeitos receptores/as ou produtores/as de informação. “Na minha comunidade, por exemplo, muitos problemas foram resolvidos através de manifestações nas redes sociais (…). Antes o que ficava dentro da comunidade, que ninguém saberia, hoje a gente já expõe, e quando expõe, os responsáveis ficam preocupados com a imagem e buscam resolver”, deixa a dica.

Pois é, de 1980 a 2021 lá se vão passando mais de 40 anos. Saímos do Boletim “Caminhar Juntos” idealizado pelo Bispo dos pobres e oprimidos, como era conhecido Dom José, para as mídias sociais. Não estamos mais tão presentes no rádio, onde se formaram muitos/as comunicadores populares do Sedica (Setor de Comunicação da Diocese) mas estamos ousando produzir podcast’s e ocupar o Instagram e o Youtube, além de potencializar o WhatsApp como espaço de discussão e encaminhamentos de pautas. 

Além dessas duas experiências compartilhadas, Brasil afora e adentro, da floresta Amazônica aos Pampas, passando pelo Cerrado, pelas Caatingas e por todos os biomas, a comunicação popular é uma estratégia concreta de libertação. São Coletivos, ONG’s, escolas, rádios comunitárias, projetos, políticas, etc, que envolvem diferentes faixas etárias e resultados diversos. 

As referências teóricas estudadas na academia já são muitas, mas as/os mestres populares compõem uma lista bem maior. Paulo Freire segue sendo inspiração, inclusive porque para ser uma comunicação emancipadora não se pode perder de vista a educação como prática da liberdade.

No mundo cada dia mais virtual, não deixa de ser real a canção dos Titãs, quando diz que “a gente quer comida, diversão e arte; a gente não quer só comida; a gente quer saída para qualquer parte”. No Salitre ou no Mimbó, o povo quer se ver representado nas mídias e como não pode (ainda) derrubar o monopólio da comunicação no Brasil, constrói a própria mídia, pois quer ouvir geral, mas quer ouvir também o eco da própria voz.