ASA
11.11.2019
Terra, Água e Resistência
Conferência aponta caminhos e desafios dos povos do Semiárido, Cerrado e Amazônia na garantia desses direitos.

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Por Fernanda Cruz - ASACOM

Foto: Fernanda Cruz/ Arquivo ASACOM

O artigo 216 da Constituição Federal afirma: ‘Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (i) as formas de expressão; (ii) os modos de criar, fazer e viver;’, (...).

Foi com base nessa referência que Alfredo Wagner, antropólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), provocou os participantes da conferência conjunta Usos da Terra e da Água: desafios e estratégias de resiliência, na tarde do dia 6 de novembro, durante o XI Congresso Brasileiro de Agroecologia. “A roça é um jeito de viver e existir. E nós estamos assistindo a destruição de paisagens, bens e elementos naturais sem a mobilização necessária para enfrentar o problema. (…) Não podemos ser apenas registradores dos episódios, mas mobilizadores”, provoca.

Através da cartografia, Alfredo tem evidenciado os graves crimes ambientais e as disputas de terra na Amazônia. Segundo ele, o ‘dia do fogo’, como passou a ser conhecida essa última queimada ocorrida na região dos Tapajós, demonstra que a depender da área a ser explorada, há uma coalizão de interesses entre garimpeiros, representantes do agronegócio e comerciantes locais. Um outro fato preocupante apontado por ele é que essa região concentra metade dos requerimentos minerários do País.

Embora sejam biomas distintos, Amazônia, Cerrado e Caatinga tem ameaças comuns e importantes focos de resistência. O Semiárido é um exemplo disso. Numa apresentação baseada no histórico das secas, mas sobretudo na luta dos povos da região e o resultado disso, Antônio Barbosa, da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), refletiu sobre o que leva tantas pessoas a querer permanecer numa região que parecia não ser favorável a vida e esquecida pelo poder público. Vale salientar que o Semiárido brasileiro é o mais populoso do mundo, com cerca de 24 milhões de habitantes. “Nosso povo é inteligente, sabe manejar o solo, a água e os demais bens da natureza. Elas entendem o ciclo das chuvas, o momento certo para plantio. Elas vivem a agroecologia no seu dia a dia”, explicou.

Segundo Barbosa, a terra é um elemento de luxo no Semiárido. Dados de 2010 apontam que, naquele período, apenas 3 estados da região (SE, AL, PE) tem a maioria das terras destinadas à agricultura familiar. Os demais seguem o padrão dominante, em que a terra está concentrada nas mãos dos latifundiários. Ele também destaca que embora as mudanças ao longo dos anos sejam profundas e impactantes na vida das famílias, sobretudo, a partir da democratização da água através das cisternas e outras tecnologias de captação de água de chuva, o povo Semiárido vive sob constante ameaça dos grandes projetos. “As comunidades correm um risco constante de ver uma ferrovia ou uma estrada passar por dentro das suas terras, por exemplo”, e destaca a expansão do eucalipto, a mineração, os parques eólicos, a transposição do rio São Francisco, a transnordestina e a possibilidade de se construir uma usina nuclear na região, como ameaças presentes no cotidiano dos povos do Semiárido.

Embora a realidade do Semiárido que conhecemos seja diferente do passado de fome e miséria no qual levou mais de milhão de pessoas a morte, Antônio Barbosa, ainda destaca que é preciso chegar a mais famílias da região e apresenta uma demanda de 350 mil famílias que ainda precisam de água de qualidade para beber; 797 mil famílias ainda não possuem uma tecnologia social para produção de alimentos; e o Semiárido ainda tem um potencial para criação de mais 3 mil casas ou bancos de sementes crioulas.

Assim como os povos da Caatinga e da Amazônia lutam para permanecer nos seus territórios, o Cerrado – berço das águas – vem se sustentando na resistência dos seus povos. De acordo com Leonel Loufar, da Fase, no Mato Grosso, “a estratégia tem sido visibilizar as práticas e a luta das quebradeiras, raizeiros e tantos outros povos que vivem na região, articulando essas experiências e colocando o que produzem no mercado”.

O Cerrado brasileiro não só é importante por abrigar os três maiores aquíferos do país, mas essa região concentra também 5% da biodiversidade do planeta, sendo a Savana mais diversa do mundo. Segundo Loufar, pode-se dizer que o Cerrado está presente em cerca de 36% do país, embora mais da metade tenha sido desmatada em função do agro e hidronegócio. É nesse contexto que surge a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado – Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida (https://semcerrado.org.br/), uma importante articulação em defesa da região.

Infelizmente, os focos de resistência ainda não são suficientes para barrar o avanço no Matopiba, por exemplo - embora essa não seja a única ameaça na região de fronteira entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Para Leonel Loufar, “precisamos olhar o Cerrado de uma forma diferente, a partir das relações humanas, a relação com o ambiente e a cultura alimentar das populações tradicionais”.

A colocação dele tem tudo a ver com o que fala o artigo 216, destacado no início desse texto. Mas o que fazer quando nem mesmo a Constituição Federal é capaz de fazer valer algo que não deveria ser um desejo, mas sim uma garantia legal dos povos? Segundo Alfredo Wagner, vivemos um tempo que exige uma outra modalidade de percepção das coisas, dos objetos. E nos provoca: “a ruptura exige uma leitura crítica. Precisamos fugir dos automatismos de linguagem e de outras ações mobilizadoras”.