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04.07.2019
Entrevista - Quilombolas do Semiárido: Luta e Resistência Negra no Campo

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Por Verônica Pragana com colaboração de Clarice Brasil, da Asacom

Mazer, presidente da Comunidade Feijão e Posse, de Mirandiba, no sertão de Pernambuco. | Foto: Rosa Sampaio / Arquivo Asacom

Vindas de comunidades rurais quilombolas de Pernambuco, uma da Região Metropolitana e outra do Sertão, Fátima da Silva Barros e Maria José de Sousa Silva, conhecida como Mazer, são convidadas especiais da oficina Quilombolas do Semiárido: Luta e Resistência Negra no Campo, promovida pela ASA para planejar as ações das organizações que vão executar as novas etapas dos programas Um Milhão de Cisternas e Cisternas nas Escolas. O encontro é realizado até amanhã (5), em Camaragibe, na Região Metropolitana do Recife.

Entre uma plenária e outra, conversamos com as duas lideranças que fazem parte da direção da Federação das Comunidades Quilombolas e Populações Tradicionais de Pernambuco sobre a vida e a luta das comunidades quilombolas para existir, principalmente, neste contexto de desconstrução das políticas públicas que vinham reconhecendo e respondendo às necessidades mais básicas deste povo.

Asacom - Com a fala, as mulheres quilombolas:

"Meu nome é Maria José de Fátima da Silva Barros, sou presidente da Comunidade Quilombola Onze Negras, do Cabo de Santo Agostinho e sou vice-presidente da Federação de Quilombo do Estado de Pernambuco e também tô na Coordenação de Quilombo do Estado de Pernambuco."

"Eu sou Maria José de Sousa Silva, eu sou e moro na comunidade quilombola de Feijão e Posse, cidade de Mirandiba, em Pernambuco. E eu sou professora já há 28 anos, fiz faculdade de pedagogia, faço parte do grupo de mulheres. Também faço parte de uma Associação de Apicultores como secretária. No momento, sou secretária da associação local e sindicalista. Faço parte da direção do Sindicato dos Servidores Municipais de Mirandiba e sou militante de vários outros movimentos. Sou feminista, enfim."

Asacom - Fátima, me conta um pouquinho da realidade das comunidades quilombolas tanto em Pernambuco quanto no Brasil, ou pelo menos no Nordeste.

Fátima: Eu vou falar um pouco da comunidade daqui de Pernambuco onde a gente tem acesso a todas as comunidades daqui de Pernambuco, daqui do nosso estado. A dificuldade, desafio é a questão da saúde. As comunidades quilombolas, a maioria não tem posto médico, tem que se deslocar para o centro da cidade e tem uma dificuldade na questão de pegar uma ficha pra o especialista, chegar lá e não tem mais médico, não tem especialista.

Então nossa luta é que cada comunidade quilombola, a depender da quantidade da população que é habitante, a gente tinha que ter um posto em cada comunidade porque também é a questão da saúde diferenciada que a gente tem, a questão da anemia falciforme, a questão de pressão alta que a maioria da comunidade quilombola tem, que a gente sabe que é uma doença mais forte na parte dos negros. A questão do mioma que afeta muito nós mulheres negras. A questão de parir que eles dizem que mulher negra aguenta dor, tem que ter o menino normal e às vezes acontece de ter hemorragia. Eu digo isso porque já aconteceu com uma pessoa que eu tava lá e na hora de ter neném: “Dr. faça uma cirurgia, dr. Faça alguma coisa”, “Não, ela é mulher, ela é negra, ela aguenta dor”, e quando a menina teve a criança rasgou ela toda, ela perdeu muito sangue, eu ainda entrei na justiça com um processo.

Então assim, a dificuldade de nós da comunidade quilombola não é diferente uma da outra não. Se você for nas comunidades quilombolas a dificuldade, é igual. A questão da educação, a gente tá lutando por uma educação diferenciada que veja os meninos da comunidade, que veja a gente como elemento de igualdade, não veja a gente na questão de porque é negro não tem direito, porque é negro não pode ter.

A gente formou a Federação pra buscar essas comunidades que estavam ausentes dos seus direitos pra trazer pra dentro da Federação e a gente ajudar essa comunidade a ter conhecimento e ter acesso à educação, de ter acesso à saúde, de ter acesso à uma água de qualidade porque a gente bebe uma água que a gente cava poço, cava cacimba à mão, não é água tratada. Então a luta da gente, a gente quer um direito igual. Eu digo isso como uma negra, como uma quilombola.

Asacom - Mazer, como é ser de uma comunidade quilombola na zona rural de um município do Sertão de Pernambuco?

Mazer: Ser quilombola em um município que está distante da capital e de um município também que tem uma renda per capita baixa é ter resistência. Então é como se diz, é aprender a conviver com as diferenças, a aprender a conviver com o lugar que você vive, porque a todo momento a gente tá inventando, a gente tá criando situações de sobrevivência, buscando essas oportunidades. Porque muitas vezes a gente não tem um transporte pra se locomover, muitas vezes você não tem como se comunicar, muitas vezes o município não oferece condições de você desenvolver um trabalho ou pode até ter condição, mas isso não chega até você. Então ser quilombola num espaço desse, é ter um espaço de muita luta.

A gente tem que sair da sua comunidade, a gente tem que buscar essas informações nesse espaço, mas nem por isso faz com que a gente desista, né? De buscar o desenvolvimento local das comunidades em prol de uma vida melhor da população. Então, é uma vida sofrida, mas nós temos uma vida feliz porque nós decidimos o que deve ser feito e de como a gente se organiza dentro dessas comunidades.

A gente sofre muito com a incidência política partidária dentro das comunidades na questão de querer implementar uma coisa e você ficar devendo favores pro resto da vida e isso não deve ser uma política que deve ser aplicada dessa forma. O município tem essa obrigação de fazer o desenvolvimento da comunidade e reconhecer essa parceria e não como uma forma de escravizar a mente das pessoas e deixar com que elas fiquem devendo esses favores até porque a gente paga impostos, né? Da mesma forma ou até mais.

Então é uma luta diária, é uma resistência diária de nós quilombolas que vivem num espaço desse com 'enes' dificuldades na saúde, na educação, no desenvolvimento social, no acesso as políticas públicas, no acesso à saúde, enfim, mas nós estamos ai na luta, buscando e abrindo esses espaços e levando conhecimento pra nossas comunidades.

Asacom - Você falou das necessidades, das dificuldades, dos desafios e ai eu queria te perguntar hoje quais são as principais lutas do movimento negro, do movimento quilombola, olhando pro movimento quilombola aqui no estado, olhando pra essa realidade do Sertão, do Semiárido.

Mazer: Uma das principais lutas nossas é a conquista do território. Uma bem maior que perpassa por essa questão do território é a questão do decreto 4.887 [de 2003 que regulamenta regulamentar a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelas comunidades remanescentes de quilombo] que nós quilombolas conseguimos aprovar, no Senado. Isso hoje é lei.

Depois disso, a gente tem a questão da demarcação dos territórios que é um gargalo que o governo ainda tem essa dificuldade de nos reconhecer, que a gente tem o direito, é uma dívida histórica do Brasil com a população negra. E uma outra questão também é que algumas bancadas querem nos invisibilizar.

Então essa falta de reconhecimento do estado, essa falta de aproximação e de nos reconhecer enquanto um povo, também é uma das questões que a gente precisa dar esse olhar diferenciado.

Uma outra questão também é o acesso à água, o acesso à saúde, que muitas vezes as comunidades têm um poço, mas não utiliza corretamente porque não têm como instalar. A falta da água de beber que muitas vezes são águas de má qualidade, águas insalubres.
Como essas políticas também chegam na comunidade? Quem está na ponta pra que viabilize essa política até a comunidade quilombola?

Uma outra dificuldade também que a gente encontra é do olhar de algumas representações de movimentos em dizer que a gente tem prioridades demais, mas não entende porque existe essa prioridade, esse recorte.

A gente tem contato diretamente com o Governo Federal, mas nesse contexto a gente percebe que o Governo Federal hoje ataca e atacou gradativamente, drasticamente, a maioria das políticas que o movimento quilombola e também os trabalhadores rurais conquistaram ao longo dos anos. Então, conquistas que vieram a partir de 10, 15, 20 anos, o governo por questões políticas acha que é privilégio demais e termina acabando com a nossa luta, tentando fragilizar a nossa luta.

Asacom - E qual a avaliação que o movimento quilombola faz destes primeiros seis meses do governo Bolsonaro?

Mazer: Então, o que nós da comunidade quilombola avaliamos é que não nos representa. Por que não nos representa? Por a questão de ser homofóbico, de ser racista, de tirar, retirar, esses direitos que conseguimos com muita luta. E a gente não percebe nesses seis meses nenhuma abertura desse governo para o diálogo, nenhuma ação voltada pra esse povo quilombola e até mesmo pras outras populações.

É um governo que está apenas pensando na elite e que a agricultura e o povo quilombola e indígena são invisíveis aos seus olhos. A gente vê que esse governo não é um governo do povo, é um governo da elite, é um governo dos banqueiros, é um governo que reprime, que oprime, que retira os direitos, que violenta as mulheres, que violenta os negros. 

Como essa violência acontece? Quando ele acaba com as secretarias, quando ele diminui os recursos, quando ele corta recurso pra que uma família de baixa renda não tenha uma moradia digna. Quando ele retira a oportunidade desse povo se manter no espaço onde estão inseridos fazendo com que essas famílias fiquem cada vez mais pobres.

Então a gente vê que não tem ação nenhuma de desenvolvimento para o país, incluindo para o povo quilombola específico. Então essa avaliação pra mim é nota zero, porque os outros programas que já estão em andamento é porque tinham recursos assegurados e não tem conversa com esse governo, não tem abertura pra conversa.

Então isso nos deixa um pouco preocupados e preocupadas porque a gente não sabe onde esse governo quer chegar. A gente sabe onde ele quer chegar: é provocar uma guerra civil no Brasil, é deixar o Brasil no ranking da fome, é voltar novamente à questão do Brasil-colônia. E isso a gente não quer porque é uma regressão de toda luta, dos movimentos sociais e dos povos indígenas e quilombolas que fazem parte desse país e que foram os principais na construção das riquezas desse país e que não é reconhecido pelo governo federal. Ou seja, a maior parte do Brasil que são os negros e a população mais pobre não tem direito dentro do seu Brasil, onde nasceram, onde geraram riqueza e que não são reconhecidos por uma minoria. É lamentável esse governo que está ai que não nos representa.

Asacom - Fátima, você tá participando desse encontro desde ontem, o que você destaca desse momento, desse encontro, dessa troca que tá acontecendo aqui?

Fátima: Eu quero agradecer a ASA através da minha amiga quilombola Marizé (Maria José) que foi ela que foi a pessoa que falou sobre a federação e quando a ASA convidou ela a participar, ela pediu que desse vaga a outra companheira e ela entrou em contato com a federação e dentro do grupo eu fiz minha fala e eles abriram espaço pra “mim vir acompanhar a companheira Marizé. Essa instituição a ASA - inclusive eu acho o nome dela até bonito, “a ASA” já tá dizendo que tem asa pra voar, pra chegar em todo espaço onde ele tiver a vontade de chegar - e a gente quer agradecer porque o encontro tá maravilhoso, a provocação tá maravilhosa, as pessoas que estão dentro do grupo são pessoas que tão entendendo a nossa fala, tá entendendo o nosso objetivo. Então assim, eu quero dar parabéns a essa instituição com o nome da ASA, quero parabenizar ao responsável. Tem uma pessoa também do Ministério da Cidadania lá de Brasília, tá aqui acompanhando o Encontro. A gente fica feliz porque ela tá anotando as demandas, pra junto com a ASA vai fazer com que esse projeto de cisterna, de cavação de poço, as coisas ai que cheguem nas comunidades quilombolas, principalmente que não vá só pra uma comunidade, que vá pra todas comunidades, principalmente aquela que ainda não teve acesso a esse projeto

Asacom - Qual a principal mensagem ou as principais mensagens que você gostaria que tocasse nos corações das pessoas aqui?

Fátima: A mensagem que eu quero que toque no coração de cada um, que aqueles que tiver racismo, aqueles que tiverem um preconceito com as comunidades quilombolas ou com aquele negro, que quando for sair de casa, deixe esse racismo atrás da porta. Vá, deixe com o que o racismo saia de dentro de si. Porque pra sociedade sentir que o racismo não tá existindo, cada um vai combatendo dentro de si próprio. E a gente sabe que o racismo não vai acabar, mas a gente sabe que pode chegar um tempo que eu não alcance, mas talvez meus netos alcancem e vão olhar ele por igual, não vão olhar diferenciado. E o que eu espero desse encontro hoje é que saia alguma coisa, que saia não, vai sair, um elemento positivo pras comunidades quilombolas. Os profissionais que tão aqui, eu tenho certeza que vão trabalhar com amor, vai valorizar sua profissão e vai chegar na comunidade com outro olhar porque a partir desse seminário que teve a minha presença e de Marizé, que a gente tá lá na base, a gente sabe o que é quilombola, a gente nasceu num quilombo, não é história, é realidade. Então eu tenho certeza que essas pessoas que tão nesse encontro vão sair com outra mente, com outro pensamento, com outro olhar.

Asacom - Mazer, qual a sua leitura sobre esse seminário, sobre esse encontro que tá acontecendo aqui?

Mazer: A minha leitura é uma leitura muito positiva porque a ASA hoje representa um papel gigantesco na vida de muitos agricultores de comunidades. E o que a gente vê que hoje a ASA está abrindo esse espaço pra trabalhar o recorte do racismo, o recorte do feminismo porque eu tenho certeza que não vai ser só o recorte da negritude dentro da ASA, como também vai surgir outros recortes do feminismo, como a questão do gênero.

Então é uma oportunidade também pra ASA quebrar alguns paradigmas na visão de vários gestores, na visão de vários funcionários pra que eles possam ter uma visão mais ampla de um significado de um povo.

As comunidades quilombolas e comunidades indígenas estão de portas abertas pra sentar com a ASA porque é uma entidade confiável. As comunidades vêm acompanhando o trabalho da ASA seja através da parceria direta com a ASA ou a parceria através de outras ONGs que são parceiros da ASA.