Racismo
09.05.2019
Por que precisamos falar sobre Racismo?

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Por Fernanda Cruz - Asacom

Foto: arquivo pessoal
O dia 13 de maio é considerado o Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo. Embora essa seja a mesma data da abolição da escravatura, não há o que comemorar, mas sim denunciar sobre como podemos acabar com esse preconceito tão presente no Brasil e no mundo. Para nos ajudar nessa reflexão convidamos a mulher, negra e advogada Juliane Lima. Ela é presidenta da Comissão de Igualdade Racial da Organização dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE) e coordenadora de Direitos Humanos da Escola Superior de Advocacia de Pernambuco (ESAP).
 
Por que precisamos falar sobre racismo?
Juliane: Porque eu acho que nenhum tema hoje, nenhuma temática em relação ao estado, à politica, ela pode estar separada do racismo, porque o racismo é um mecanismo que opera desigualdade, então quando a gente fala de desigualdade, a gente não pode deixar de falar do racismo porque ele foi um mecanismo. Ele é um mecanismo criado pelo Estado pra manutenção do poder e pra manutenção do status quo. E ai a gente fala tanto do poder político quanto do poder econômico. Então, grande parte dos problemas sociais estão sim relacionados ao racismo e às questões de gênero também, né? Então, se a gente for analisar a conjuntura do ponto de vista da Teoria Social e da Teoria do Estado, a gente vai perceber que o racismo está presente em todas as estruturas sociais. Tá presente na política, no direito, na economia, e tá presente na própria ideologia, é por isso que a gente precisa falar sobre racismo porque a maioria dos assuntos que se relacionam a questões do Estado, eles estão ligados ao racismo.
 
O racismo é diverso. Existem formas de caracterização dos diversos tipos de racismo?
A gente conseguiu avançar tanto nesses estudos em relação a várias áreas da educação. Se pesquisa muito sobre o racismo, no direito, na sociologia... então a gente consegue identificar vários tipos de racismo sim. Como o racismo religioso, que é principalmente contra as religiões de origem africana. O racismo recreativo, que é aquele que todo mundo fala “ah, eu tava só brincando, eu não tava falando sério” e ai você faz piada com relação à população negra, ao homem negro, ao corpo negro. Tem o racismo institucional que está presente nas instituições públicas e privadas e ai é muito relacionado ao mercado de trabalho, e o racismo ambiental, que existe porque há o racismo  institucional,  porque as políticas que são feitas pro ambiente, pros espaços públicos, pras  populações, vêm das instituições, dos órgãos públicos, dos órgãos privados e interferem no meio ambiente, tanto no natural quanto no espaço público, na zona rural, na zona urbana. Então o racismo ambiental vem do racismo institucional ou institucionalizado.
 
Sabemos que o racismo atinge homens e mulheres de formas diferentes. Porque isso acontece?
Devido à formação dos valores que estruturam a sociedade da gente. Primeiro você separa a sociedade por gênero, porque ai você precisa acumular poder em algum grupo, esse grupo precisa mandar, tem necessidade de ter poder, então por conta de um processo histórico de várias fases que foram inclusive criadas na Europa (você tem o Iluminismo), você tem todo uma conjuntura que faz com que o homem branco, ou seja, o europeu, ele seja o ideal, ele seja o perfil ideal do ser humano. Então tudo que tá fora daquele padrão social que é o homem branco, hétero, ele vai ser discriminado da sociedade, vai ficar em segundo plano. Nesse contexto a mulher vai ser discriminada e a população negra também, a população indígena, todo mundo que não vai ter aquele perfil. E ai nesse sentido as mulheres negras sofrem três vezes mais. Sofrem por serem mulheres, por serem negras e a maioria das vezes sofrem por serem pobres, por conta dessa estrutura social que separa as pessoas por classe, por raça, por gênero. Termina que a mulher negra  vai ficando na base da pirâmide e ai ela vai sofrer todos os racismos, e ai no Brasil você tem um processo de escravidão da população negra, de escravização dessa população. Todo mundo já sabe que o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão e isso trouxe consequências seríssimas pro país. A gente sabe hoje que as relações sociais no Brasil não são amigáveis, não foram saudáveis. Toda essa mistura étnica foi fruto de muita violência sexual principalmente sofrida pelas índias e pelas mulheres negras, que nunca ficaram nos espaços de poder, nos patamares mais importantes (...) Então, a imagem em si da mulher negra é sempre associada aos empregos que exigem menos formação por conta do machismo, principalmente, e por conta do racismo. Você não consegue associar a imagem de uma mulher negra à uma presidenta, ou a uma chefe de estado ou à uma governadora, uma secretária de governo. Então todos esses lugares que necessitam que você tenha uma aparência normativa, são dificilmente ocupados por mulheres negras, porque a associação é sempre com uma dona de casa, uma empregada domestica, uma faxineira. Nunca associam uma mulher negra a uma diplomata, por exemplo.
 
Quando olhamos para o meio rural, vemos a desvalorização e ausência de políticas públicas para os povos quilombolas. Isso tem a ver com racismo?
As populações quilombolas sofrem um impacto muito forte do racismo ambiental. O conceito de racismo ambiental vem dos Estados Unidos, da luta por direitos civis. Muitas populações negras estavam mais expostas a riscos ambientais e etc, falta de estrutura, como saneamento, e estavam muito expostas ao lixo tóxico. Quando criou-se esse termo e ai esse termo chegou no Brasil, ele chegou primeiramente pra conceituar e denominar que tipo de problema as comunidades quilombolas estavam sofrendo no seu dia a dia. Mas tem mais a ver, na verdade, com a questão da manutenção e da exploração do homem pelo próprio homem porque esses territórios quilombolas têm muito a ver com a disputa de terra, disputas territoriais, disputa por espaços que é pra manter o poder econômico. Os fazendeiros, que geralmente têm mais poder econômico, mais poder político, eles conseguem se sobrepor a essas comunidades que não têm poder político. Além disso, têm poucas leis que favorecem esses povos e as poucas leis que existem não são respeitadas, então você tem um parlamento que não contribui para que esse povo tenha seus direitos garantidos e a lei seja realmente cumprida. Então elas [as populações quilombolas] vão sofrer sim e muito mais ou de forma igual à população que vive na área urbana, sem ter onde morar, sem acesso ao saneamento que são as questões que envolvem a falta de estrutura, a infraestrutura que é acesso à água, acesso ao saneamento, à educação de qualidade, à saúde. Essa comunidade é geralmente esquecida e é colocada à míngua mesmo, marginalizada pra que ela venha a não existir no futuro. A ideia é de realmente exterminar essa população [negra].
 
Essa afirmação é bem forte. Porque você diz isso?
Isso é uma teoria da Necropolítica. É um conceito criado por Achille Mbembe que é um filósofo camaronês que fala da morte dessa população, do extermínio da população negra pelo Estado, legitimado pelo Estado. Tem a ver com o excedente, com as pessoas que não contribuem pro capital, são as pessoas que não trabalham, que não geram lucro pro capital. A ideia do neoliberalismo é não compartilhar a estrutura do Estado com toda essa população, então essa população vai ficar a míngua, porque ela não participa, ela não colabora com o capital, ela só faz demandar do Estado. Então, se ela não contribui pro fortalecimento do capital, ela deve ser exterminada. Por isso que a gente fala que o racismo é um mecanismo que opera divisões, que é uma ferramenta de poder pra exterminar justamente a população. E antes de Achille Mbembe, Foucault falou sobre isso. Ele tem uma teoria chamada a Teoria do Biopoder, em que o Estado faz viver quem interessa pra ele e deixa morrer quem não interessa, que é o excedente, que são as pessoas que não têm acesso à educação, que não tem condições de estudar, que não têm condições de cuidar da sua própria saúde, que não têm essas condições favoráveis pra conseguir sobreviver de forma decente com qualidade de vida.
 
Como nós, mulheres e homens, brancos e negros, podemos contribuir com a mudança dessa realidade?
É importante que as pessoas se mobilizem, que as pessoas percebam e se sensibilizem com essa questão. E como é que a gente faz pra se sensibilizar? Primeiro a gente tem que se colocar, ver o lugar do privilégio. Só o fato de você não ser negro, de você ser uma pessoa branca, de classe média, que teve acesso a tudo isso que a população negra não teve por conta desse processo de exclusão, de marginalização após o processo de abolição, a gente tem que se ver como um privilegiado. As pessoas precisam se ver como privilegiados, sabe? “Eu não sofri por isso”, “eu não levo baculejo”, “eu não sou o perfil que não é bem atendido no shopping”, então tem a ver com tudo isso.
 
De forma pessoal é isso, é você fazer uma auto-observação, uma autocrítica e ver essa questão do privilégio, isso é a primeira coisa, e se colocando no lugar do outro. Outra coisa é dar oportunidades, não cobrar tanto. É muito diferente o tratamento de uma pessoa branca e de uma pessoa negra no espaço de trabalho. Primeiro que é sempre importante a gente sempre fazer o teste do pescoço. Onde você estiver é sempre importante observar quantas pessoas negras têm ali e porque que elas não tão naquele espaço, entende? Então é uma roda que precisa ser aberta, é um círculo que precisa que alguém solte a mão e pegue na mão do outro e traga ele pra perto que é pra poder a gente ter as mesmas.
 
Então começa também dentro das próprias organizações, dentro da gente, começa dentro da gente e passa pras organizações e posteriormente pro Estado, porque como o Estado é realmente o responsável, praticamente o maior responsável pelas desigualdades e pelo racismo, também tem que partir das instituições. E quem faz as instituições, quem compõe as instituições? Somos nós. Então a gente precisa mudar isso, as instituições precisam fazer uma autoavaliação e investir em políticas públicas e ações afirmativas. É necessário investir, a gente não pode parar de investir em ações afirmativas pra população negra, colocando cotas, fazendo projetos, direcionados à população negra e dando oportunidades pra essa população no mercado de trabalho, isso é essencial. O mercado de trabalho é essencial pra redução das desigualdades, as pessoas precisam trabalhar, precisam de um espaço, precisam de educação, não só de educação, mas também de trabalho porque tem muita gente formada que não tem espaço no mercado de trabalho por causa do racismo. Você tem a mesma formação que o branco, mas o branco que vai ocupar aquele espaço. A mulher branca é que vai ocupar aquele espaço, então é importante a gente fazer sim esse recorte de raças, a gente implementar políticas, ações afirmativas, a gente colocar cotas porque a população precisa, além de trabalho, de representatividade, isso é importante pra gente impulsionar as pessoas, as crianças e a juventude pra que elas queiram ocupar esses espaços.
 
Não ache que é impossível chegar lá porque da forma que tá colocado, de fato, é impossível chegar. Só força de vontade não adianta, não existe meritocracia na atual conjuntura política, não existe. Isso é uma falácia, é uma enganação. Não existe meritocracia. A gente não cresce só por esforço próprio, precisa sim de políticas e ações afirmativas que possam viabilizar a entrada dessa população, viabilizar a equidade populacional.