Mudanças Climáticas
21.12.2018
Comitiva africana atesta que nem só de tecnologias se faz a convivência com o Semiárido
O processo que estimula a participação e a autonomia das famílias na construção de soluções para as mudanças climáticas desperta interesse dos representantes de quatro países do Sahel africano

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Agricultora Niedja apresentou seu quintal agroecológico | Foto: Gleiceani Nogueira

A proposta de convivência com o Semiárido brasileiro motivou diversos representantes do governo e da sociedade civil de quatro países africanos: Burkina Faso, Níger, Senegal e Chade, a atravessarem o oceano Atlântico para conhecer de perto o trabalho desenvolvido pela Articulação Semiárido (ASA). A grande expectativa dos visitantes era conhecer as estratégias de armazenamento de água, em especial as cisternas, tecnologia que também está sendo implantada nos seus países através da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Durante uma semana, de 10 a 14 de dezembro, a comitiva percorreu mais de mil quilômetros pelo Semiárido cearense. 

“Eu aprendi uma coisa muito importante que é possível manejar a água e conviver numa zona semiárida. E vi que o manejo [da água] é em nível de cada família. E outro aspecto que vi é que a comunicação tem um papel fundamental no trabalho. Como nós recebemos as sistematizações, com imagens das famílias, isso serve para difundir e para convencer as outras famílias. E o que vi também é que tem vontade política. Isso quer dizer que não podemos simplesmente copiar a experiência [brasileira] porque as realidades socioeconômicas, de sistema de governo, são diferentes. Isso quer dizer que tem que adaptar a nossa realidade”, avalia Albachar Algoni Soumaine,
Presidente do Conselho Consultivo Nacional dos Produtores Rurais do Chade (CNCPRT).

Os quatro países visitantes participam da etapa piloto do Programa Um Milhão de Cisternas para o Sahel, que é inspirado no Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) do Brasil. O Sahel é uma região com clima parecido com a do Semiárido brasileiro. Mas a precipitação pluviométrica é bem abaixo. Varia de 150 a 300 milímetros por ano. Enquanto no semiárido do Brasil, a quantidade de chuvas varia de 400 a 800 milímetros.

Ahmeth Ka, da comunidade de Tiamène Pass, região de Louga, no Noroeste do Senegal, participou da missão no Brasil.“A experiência que mais aprendi foi a do Quilombo Veiga, da cisterna enxurrada. Fiquei muito impressionado com o manejo da água onde nada se perde. E o que impressionou também foi que as comunidades se alimentam do que produzem então o quilombo abastece o quilombo e a comunidade abastece a comunidade”, disse. Ele é casado com a mulher que foi a primeira a ser contemplada com a cisterna de água para consumo humano no Senegal.

Outro tipo de tecnologia que o grupo conheceu foi a cisterna-calçadão, destinada à produção de alimentos. A agricultora Niedja Barbosa, da comunidade Cristais, no município de Ocara, apresentou o reservatório. Achim Djoumbe, do Ministério da Produção, Irrigação e Equipamentos Agrícolas do Chade, disse que a cisterna-calçadão é a mais adequada ao seu país porque lá o relevo é mais plano. Além disso, ele destaca a vantagem de o calçadão também servir para secagem de sementes. Youssoupha Gueye, do Ministério da Agricultura de Senegal, também ressaltou a viabilidade dessa tecnologia no seu país e diz que lá eles vão pensar uma forma de aproveitar a água que se perde pelo “ladrão”, quando a cisterna esborra.

Ela também foi a primeira agricultora do Ceará contemplada pelo projeto de reuso de águas do Governo do Estado, através de uma parceria entre a Secretaria do Desenvolvimento Agrário (SDA), em parceria com o Fórum Cearense pela Vida no Semiárido. “Para nós foi um sonho ter essa cisterna porque a dificuldade era grande. Aqui é muito seco. Melhorou a questão da água e também a nossa alimentação. A economia [de água] também porque a gente estava desperdiçando a água, que contaminava o solo, e hoje a gente reutiliza”, disse.

Bastante empoderada, Niedja apresentou todo seu sistema produtivo e explicou o passo a passo do sistema de reuso. Sobre o minhocário, onde acontece uma das etapas de filtragem da água que será reutilizada, ela explicou que é sempre importante “tá molhando a terra porque as minhocas gostam de umidade”. A agricultora chega a produzir mais de 100 kg de húmus no período de três meses. Ele utiliza o material pra adubar suas plantações e também vende o excedente. Com esse conjunto de tecnologias, atuando de forma integrada, ela mantem um quintal produtivo com diversos produtos como berinjela, pimentão, pinha, tomate, cebolinha, cenoura, couve e abacaxi.

Representantes dos 4 países do Sahel africano que participaram do Intercâmbio no Brasil | Foto: Gleiceani Nogueira

Modelo participativo – Além das tecnologias, a comitiva apontou, como pontos fortes da experiência brasileira, o envolvimento e a participação das agricultoras e dos agricultores na implementação dos projetos. “O que me impressionou mais foi a participação e a responsabilidade que os produtores tomam. Não é uma coisa que vem de cima. Isso leva as pessoas a se apropriem da tecnologia e mantê-las em funcionamento”, destacou Moussa Bruno Kafando, secretário geral da Câmara Nacional da Agricultura do Burkina Faso, uma entidade da sociedade civil.

“Para nós não se vê apenas a tecnologia, mas a organização que está por trás da tecnologia”, destacou Idrissa Younoussa, do Ministério da Agricultura e Pecuária de Níger, referindo-se ao conjunto de organizações ligadas ao Fórum Cearense, que representa a ASA no Ceará e prestam assessoria às comunidades visitadas.

“Vimos diferentes tecnologias, captação de água pra beber, pequena irrigação nos quintais, o manejo e autonomia em sementes. A gestão das casas de sementes, que é baseada na confiança mútua entre os membros das associações. Todas são boas práticas de resiliência das comunidades no contexto ecoclimático do Nordeste. Essas experiências também são adaptadas à organização das comunidades e são técnicas desenvolvidas localmente. Isso faz com que elas sejam mais sustentáveis”, complementou Idrissa.

Ao final de uma semana conhecendo diversas experiências, o sentimento tanto dos visitantes como das famílias é de muito aprendizado, satisfação e alegria. O agricultor Francisco Linhares, da comunidade Muxinató, traduz bem esse sentimento: “Eu fico até sem argumentos de falar desse intercâmbio. A gente vê as nossas tecnologias ultrapassarem fronteiras. A gente fica feliz também de compartilhar essas políticas de convivência e receber os irmãos africanos nos deixa muito felizes. A gente poder compartilhar sementes com eles, compartilhar conhecimentos e ver essas experiências sendo levadas para outros países”.

Histórico - Em novembro passado, uma delegação composta de 18 brasileiros, a maior parte agricultores e agricultoras, participou do primeiro intercâmbio entre as áreas semiáridas do Brasil e continente africano. As visitas aconteceram no Senegal. Foi um momento rico de troca de experiências e cultura. Saiba mais

Programa Um Milhão de Cisternas para o Sahel - O objetivo do Programa é permitir que milhões de pessoas tenham acesso à água potável, melhorem a segurança alimentar e nutricional e fortaleçam o poder de resiliência das comunidades. A iniciativa é promovida pela FAO, que tem facilitado o diálogo entre os representantes do continente africano e a sociedade civil do Semiárido brasileiro, através da ASA. Para o triênio 2019-2021 serão construídas 300 cisternas no Senegal, entre cisternas de primeira e segunda água. Essa etapa contará com recursos da cooperação italiana e atenderá 10 mil mulheres. Em Níger e Burkina Faso, a FAO vai apoiar, com recursos próprios, a construção de 150 cisternas em cada país, nos próximos dois anos.