Entrevista
13.12.2018
“A esperança, que parece subjetividade, também edifica a caminhada de resistência”

Voltar


Por Fernanda Cruz, Asacom*

Alexandre Pires (de barba) e agricultor/as de Cumaru/PE: É no Semiárido que o povo resiste | Foto: Verônica Pragana/Arquivo Asacom

“É preciso reconhecer as dificuldades. E, na tomada de consciência sobre elas, olhar para o que melhorou na vida e não queremos perder. E, ao enxergar aquilo que desejamos fazer, essa semente de esperança germinará na forma de coragem, indignação, perseverança, coletividade e ternura. Essa é uma receita infalível para enfrentar o autoritarismo e as injustiças. E triunfar o bem viver”, profetiza Alexandre Pires, um dos coordenadores da ASA Brasil.
Inspirado pelo verbo esperançar, Pires concedeu uma entrevista que mistura o gosto amargo das perdas acumuladas nos últimos anos, acentuado pela certeza de que esse cenário não se encerra em 2018, com o sabor luminoso da resistência, que faz parte do DNA dos movimentos e organizações sociais.
As palavras dele são alinhavadas pelos fios da esperança. Fios pautados em uma trajetória de luta que construiu, passo a passo, a realidade da convivência com o Semiárido que milhares de famílias testemunham no Nordeste e parte de Minas Gerais.
Pires defende que a convivência com o Semiárido, alicerçado em programas que promovem o estoque de água e sementes no Semiárido, tem muito a dizer ao mundo sobre a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas para as famílias agricultoras e sobre a reversão de processos fortes de migração de grandes contingentes de pessoas.
Boa leitura!

Asacom - A perda de direitos têm sido uma constante desde o golpe, agravando-se cada vez mais. É possível pensar positivamente no futuro que se aproxima? O que a sociedade civil organizada no Semiárido vem refletindo?

Alexandre Pires - Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Bolsa Família, Programa Cisternas, Prouni [Programa Universidade para Todos], Pronera {Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária], Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), Brasil Sem Fronteiras, Bolsas de Pesquisa, esses são apenas alguns dos programas e políticas públicas federais que sofreram cortes drásticos no orçamento público desde 2016.
Se pararmos um pouco para analisar, quem é que acessa essas políticas? Quem se beneficia com essas políticas? Rapidamente entenderemos que são os trabalhadores e trabalhadoras de baixa renda. São pessoas que dependem da ação do Estado brasileiro para garantir um mínimo de dignidade para suas vidas e de suas famílias e sem essas políticas e programas a população está em um rápido processo de empobrecimento.
Ainda assim, temos que destacar que a aprovação da Lei da Terceirização do Trabalho e a Reforma Trabalhista entram no grupo de medidas contra os trabalhadores/as, porque abrem brechas para precarização das relações trabalhistas, onde quem ganha são somente os empregadores.
A aprovação de mudanças na EC 95 [Emenda Constitucional], que congela os investimentos sociais em Saúde, Educação e Assistência Social por 20 anos, vai agravar mais ainda o contexto de pobreza e miséria.
A Reforma da Previdência é mais uma iniciativa que se for consumada, rapidamente gerará uma mudança extremamente negativa para a população de baixa renda.
É difícil ter ânimo e pensar positivamente diante de tal cenário em curso. Mas é preciso esperançar e a esperança é edificante. É preciso reconhecer as dificuldades e, na tomada de consciência sobre elas, olhar para o que melhorou na vida e não queremos perder. E ao enxergar aquilo que desejamos fazer, essa semente de esperança germinará na forma de coragem, indignação, perseverança, coletividade e ternura. Essa é uma receita infalível para enfrentar o autoritarismo e as injustiças, e triunfar o bem viver.

Asacom - Diante de um executivo nacional de ultradireita e um Congresso Federal ainda mais conservador, quais os caminhos para a sociedade civil seguir cumprindo sua missão de acompanhar o Estado na construção de políticas públicas?

Alexandre - A defesa incondicional pela democracia e pela garantia de direitos deve ser nosso caminho, o rio a ser navegado pela sociedade civil. Nunca houve tranquilidade ou facilidade para a classe trabalhadora na conquista de seus direitos. Podemos falar de conjunturas mais favoráveis e outras nem tanto.
Considerando a conjuntura que se instala no Brasil, precisamos olhar um pouco mais além para perceber que a crise política instalada desde as eleições presidenciais de 2014 é muito semelhante. Ou poderíamos dizer que faz parte de um movimento internacional de aumento do conservadorismo político.
O que não podemos abrir mão é dos avanços que tivemos ao longo da história de lutas, nem permitir o retrocesso nos direitos conquistados. Mas, para construir a resistência às investidas conservadoras é preciso construir uma comunicação e diálogo com a classe trabalhadora. Os trabalhadores e

trabalhadoras do Brasil precisam saber que as conquistas que melhoraram um pouquinho suas vidas é porque passaram a estar no orçamento público. Garantir a democratização do orçamento é imperioso.

 

Asacom - 2018 foi um ano de bastante projeção internacional das ações de convivência com o Semiárido, inclusive com trocas entre agricultores e agricultoras do Brasil, América Central e África. Que avaliação a asa faz desse processo e o que esperar para 2019?

Alexandre - A ASA tem se desafiado a uma jornada transfronteiriça para compartilhar seus aprendizados, não só de implementação técnica das tecnologias sociais de captação e armazenamento de água das chuvas, mas também os aprendizados construídos no diálogo com o Estado brasileiro para elaboração, gestão e implementação de políticas públicas.
A parceria com a FAO [Organização da Nações Unidas para Alimentação e Agricultura] tem oportunizado chegarmos ao Corredor Seco da América Central e ao Sahel, na África, e oportunizado que os próprios agricultores/as do Semiárido brasileiro troquem e compartilhem seus aprendizados.
Uma das expectativas é que esse riquíssimo processo de intercâmbios e diálogos também com gestores públicos de outros países possa gerar esperança edificante para a vida das pessoas em outros Semiáridos.
E a ASA tem se colocado para as organizações internacionais e multilaterais, como a FAO, como colaboradora nessa agenda de cooperação Sul-Sul.
Podemos dizer que esse é um navegar da resistência. Espalhar pelo mundo essa experiência que a ASA construiu no Semiárido brasileiro, nesses quase 20 anos, é como semear a esperança.
Esperança, que se lança ao vento e que parece subjetividade, também se mostra edificante da caminhada de resistência. E é isso que a ASA faz quando compartilha seus processos e aprendizados, compartilha esperança.

Asacom - Enquanto o mundo se volta para refletir quais as soluções diante dos impactos das mudanças climáticas, a postura do futuro governo, até então, aponta um caminho inverso, ao não assumir compromissos nos acordos internacionais sobre o tema. Qual a sua leitura sobre isso e como o povo semiárido tem lidado com essa questão dos impactos?

Alexandre - Um aprendizado importante e que precisa ser estudado com densidade é o impacto dos programas de cisternas e o Sementes do Semiárido como estratégias de mitigação dos efeitos climáticos. Um estudo arrojado pode nos dar uma aproximada dimensão do quanto eles contribuem para reduzir os impactos das mudanças no clima.
Precisamos ver o que, de fato, vai acontecer sobre a posição do Brasil em relação ao acordo de Paris. O que é lamentável, e podemos até dizer uma tremenda ignorância, é qualquer governo querer se isolar de um acordo internacional e que tem grandes implicações também nas relações comerciais.
Isso porque entendo que assim como os programas Cisternas e Sementes do Semiárido, existem centenas de experiências exitosas no Brasil que têm contribuído para o país melhorar seus índices no que tange às emissões de carbono e de melhoria da gestão de suas águas, solos e biodiversidade.
E uma postura inteligente e moderna seria apoiar essas iniciativas em escala, construindo um lugar de destaque e referência global para o tema.
E não dá para falar de pacto sobre mudanças climáticas sem falar do Pacto Global pela Imigração, porque as imigrações estão em grande parte associadas aos distúrbios climáticos.
E sobre isso o povo do Semiárido conhece bem, porque foram milhares e milhares de sertanejos e sertanejas que migraram em função da ausência de políticas para o enfrentamento às grandes secas.
Então qualquer posição extremista do futuro governo nesse contexto tende a isolar o país, inclusive nas relações comerciais. Esse é um rio a se navegar dando visibilidade às boas e valorosas experiências.

* Com colaboração de Verônica Pragana, da Asacom