Feminismo
18.10.2018
“Sem feminismo não vamos construir convivência”

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Por Elka Macedo - ASACom

O evento contou com a presença de mulheres dos 10 Estados do Semiárido | Foto: Nivia Martins

A poesia que embala a vida das mulheres fala de amor e sororidade, de companheirismo e acalento. Ela diz: “fiquem juntas!”. E quando se repete que é preciso ficar juntas é pra reforçar o que dona Margarida Oliveira, agricultora do Semiárido piauiense, sintetiza quando diz que: “nós mulheres temos que fortalecer umas às outras”.  Falar sobre união entre as mulheres é falar sobre feminismo e sobre uma trajetória de luta que perpassa gerações, por igualdade de direitos e respeito, e que inspira histórias de várias mulheres de todo o Semiárido.

“A gente vê que nós unidas, nós consegue os nossos objetivos. A gente está lutando por um objetivo que não é só de uma, e sim de todas as mulheres. E eu me sinto mais fortalecida porque desde os 15 anos de idade que eu ingressei nesta luta e permaneço nela até hoje. E já sofri muitas violências e consegui superar porque eu não estava sozinha, e contava com o apoio das minhas companheiras. É dando as mãos que a gente consegue chegar lá”, relata Maria de Fátima, conhecida como Fafá, agricultora do semiárido cearense.      

O tema que tem contribuído para a libertação e empoderamento de muitas mulheres do Campo e da Cidade é pauta desafiadora para as organizações que compõem a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e pensando nisso, a Articulação realizou de 16 a 18 de outubro, a Oficina “A Convivência com o Semiárido e as Mulheres: Nossa Luta, Nossa Voz, Nossa Construção”. O evento reuniu cerca de 60 mulheres dos 10 Estados que compõe a região semiárida, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife (PE).  

“Somos todas nós quem temos que transformar a ASA em todas as suas dimensões. Nosso feminismo já existe e já é real quando uma mulher se reconhece e se diz feminista. Ele [o feminismo] já é como a gente é: diverso, plural, do campo e da cidade... popular! Nós mulheres da ASA carregamos uma história guerreira que encarna a história das que vieram antes de nós, que encarna a história do nosso país”, salienta a coordenadora executiva da ASA pelo Estado de Minas Gerais, Valquíria Lima, ao falar do lugar do feminismo na Rede ASA.

Sua afirmação é validada pela coordenadora da ASA pelo estado da Paraíba, Glória Araújo, quando reforça que “se a gente quer construir o feminismo na ASA, a gente tem que se enxergar como mulheres da ASA e construir um feminismo no lugar onde estamos e atuamos. A ASA não está fora de nós e sem feminismo não vamos construir convivência”. As falas sobre o desafio de incorporar o feminismo nas ações dos programas da Articulação permearam os três dias de encontro, que trouxe à memória os nomes de várias mulheres que contribuíram para a transformação da vida das famílias agricultoras do Semiárido ao longo da trajetória da rede.

Feminismo, empoderamento e violência domestica foram temas refletidos no evento| Foto: Gleiceani Nogueira

Como rios que cortam caminhos pedregosos, pontes e montanhas, mas não mudam o curso do seu objetivo, são as mulheres que cotidianamente se desafiam e travam lutas contra os diversos obstáculos impostos pela cultura machista e o patriarcado para que de fato todas sejam livres. Nesta perspectiva, durante o evento, elas foram de forma lúdica e fluida construindo a linha de tempo com fatos e ações que marcaram a influência das mulheres na trajetória da ASA. A cada década retratada, os fatos confluíam ano a ano com as conquistas e processo de crescimento e organização das camponesas. Nos anos 90, quando a seca castigava mais pela falta de políticas públicas do que propriamente pela falta de chuva, as mulheres que tiveram que assumir as responsabilidades da casa, do roçado e da criação dos filhos sozinhas, enquanto seus companheiros seguiam os fluxos de migração para o Sul do país (as viúvas da seca), eram elas que ensinavam como gerir alimentos e água e com isso conviver com a seca.

Nos anos 2000, quando a ASA se consolida e surgem os programas Um Milhão de Cisternas (P1MC) e Uma Terra e Duas Águas (P1+2), são as mesmas mulheres que legitimam as tecnologias como formas eficazes e estratégicas para melhoria de vida das famílias camponesas do Semiárido. É inspirando-se nas experiências delas de produzir nos terreiros de casa porque é lá no cuidado das plantas medicinais e das galinhas; das hortaliças e das fruteiras, que elas se dividem nas atividades domésticas e na produção, no gerenciamento da casa e dos alimentos – que a Articulação valida a construção das tecnologias de armazenamento de água da chuva no arredor da casa.

“Os quintais são a capacidade que as mulheres têm de resiliência. Pelo fato da divisão sexual do trabalho e a responsabilidade pelo trabalho doméstico, para que elas construam a sua produção é necessário que elas tenham uma produção perto de casa para que fiquem oscilando entre a casa e o quintal. Até a auto-organização social das mulheres passa pelo quintal”, enfatiza a coordenadora do Centro Feminista 08 de Março (CF8), organização que integra à ASA, Conceição Dantas.

A partir de 2010, a chegada dos Programas Sementes do Semiárido e Cisternas nas Escolas revelam outras potencialidades das camponesas em outros espaços de atuação. Agora são as educadoras, cozinheiras, zeladoras e guardiãs de sementes que contribuem para que além das tecnologias sociais, se resguarde e fortaleça a educação contextualizada para a convivência com o Semiárido e a preservação do patrimônio genético das famílias agricultoras, que são as sementes.

Embora estejam na base da construção e protagonizem a transformação social, as Margaridas, Marias, Marielles, Aparecidas, Fátimas e Danielas ainda são invisibilizadas. “A ASA enquanto articulação vem de uma matriz extremamente patriarcal, onde o masculino é o centro e a família pensada a partir de um chefe. Uma coisa que chama atenção quando a gente olha pra nossa trajetória é que a gente precisa ampliar a nossa participação política. Não tem mudança sem conflito. Discutir feminismo é discutir relação de poder. A gente precisa se fortalecer e ter uma relação mais próxima com os movimentos feministas. A gente precisa enfrentar o machismo institucional nas nossas organizações, e entender que o que a gente vive no dia a dia é opressão”, destaca a coordenadora executiva da ASA pelo estado de Pernambuco e coordenadora da Casa da Mulher do Nordeste, Graciete Santos.

A jovem atriz e camponesa, Marcela Soares protagonizou o espetáculo "As Margaridas" | Foto: Elka Macedo

Para além da ASA, a presença das mulheres em espaços de liderança e de decisão ainda é uma lacuna em diversos espaços de discussão e de execução de políticas públicas. E quando elas conquistam e ocupam espaços importantes muitas vezes são oprimidas e julgadas, a exemplo da Presidência da República, referindo-se ao caso da ex-presidenta Dilma Roussef. “A gente ainda se pauta no jeito que o homem faz as coisas. Nós mulheres temos um outro jeito de fazer as coisas”, afirma a assessora técnica do Programa Cisternas nas Escolas, Aparecida Oliveira.

A oficina foi permeada pelas falas emocionantes, relatos inspiradores, e a manifestação de sentimentos e de bandeiras de luta em forma de poesia e teatro, nos momentos de plenária e de apresentação de experiências. Nestes espaços, sentimentos se misturaram e a única certeza é de que juntas sempre é mais fácil enfrentar os problemas. Nos depoimentos, a certeza da afirmação que “se a nossa agroecologia está banhada de suor e sangue das mulheres, não é agroecologia” – frase que vem sendo destacada pelas militantes nos mais diversos espaços de debate e reforça o grito que diz: “Sem Feminismo, Não Há Agroecologia”.

Nesta perspectiva, o espetáculo “As Margaridas”, encenada por duas jovens que participaram do encontro e que integram o grupo de teatro sergipano Raízes Nordestinas trouxe à lembrança as várias conquistas das mulheres, desde o direito de usar calças até o direito ao voto, mas lembrou também que há muito pra se avançar. Dentre os obstáculos que se enfrenta nos dias atuais, o grupo destacou a recente mobilização de mulheres no “Ele Não”, o maior movimento de resistência ao projeto autoritário defendido pelo presidenciável Jair Bosonaro (PSL), que faz declarações machistas, homofóbicas e racistas. 

O evento pioneiro da ASA propiciou o debate político e inclusivo de mulheres que ocupam funções em diversos espaços da Articulação, como agricultoras, animadoras assistentes administrativo-financeira, técnicas, comunicadoras, assessoras e coordenadoras. Ao final, firmou-se o compromisso com as pautas e propostas elaboradas pelo grupo nas áreas de formação, auto-organização e empoderamento feminino e o pacto de que todas permanecerão com a missão de fortalecer a luta das mulheres nos locais em que atua. Como diz a poetiza Cidinha Oliveira, em seu poema Esperançar: “nenhuma de nós vai aguentar sozinha. Precisamos mais do que nunca ter sempre uma mulher por perto”.