Caravana
01.08.2018
Série Relatos da Fome: Me toca a fome e a sede!

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Por Elka Macedo - Asacom

Maria Francisca não quer reviver os tempos de fome | Foto: Elka Macedo

Maria Francisca de Alcântara é uma Severina, como muitas outras severinas do Semiárido. Quando criança, no sertão alagoano, testemunhou o retrato da fome na comunidade, Sítio Poço Doce 2, na cidade de Piranhas. Ela viu crianças perecerem por tomar a água barrenta, que no tempo da seca era a única que tinha para matar a sede do povo que vivia na região. Era preciso trabalhar em troca de comida, era preciso resistir e tentar sobreviver com as migalhas que eram ofertadas em troca do trabalho duro nas frentes de emergência. Foi um tempo de dor e sofrimento, como Francisca diz emocionada:


“As minhas condições eram muito ruins, eu não tinha água, passava sede. Ia buscar água no poço, ou então em carro-pipa. Era uma fila muito grande e era na briga pra ver se conquistava uma lata d’agua, porque não tinha pra todo mundo. Era muito triste! Não tinha estas políticas. A alimentação era muito difícil, pra gente comer alguma coisa meu pai ia cortar cana no sul [do país]. A gente não comia frutas. Eu lembro que meu pai quando veio do sul comprou bananas e a gente comeu a casca pra depois comer a banana. Isso quando eu me lembro fico emocionada, ou então a gente tinha que comer uma caça do mato, quando tinha. Colocava a caça na panela e fazia um pirão. Eram quinze pessoas em casa e a realidade era muito difícil. A gente trabalhava nas frentes de serviço, cavando açude. Era humilhação porque o dinheiro era pouco e não tinha pra todo mundo. Eu lembro que meu pai trazia feijão pra casa. Era um feijão preto, muito duro. Às vezes eles [meus pais] comiam o caroço e nós bebia o caldo, outras vezes misturava com farinha e fazia o lanche pra gente”, recorda.


Hoje, ela se orgulha em falar do outro Semiárido que floresceu por meio das conquistas das políticas públicas e sociais que deram condição para que os povos pudessem trabalhar, produzir e se manter em seu território com dignidade. Francisca é agricultora experimentadora, guardiã de sementes crioulas da resistência, benzedeira e curandeira e fala com orgulho de como o acesso à água, a terra e à renda fez uma revolução na sua vida e de outras famílias agricultoras.


“Quando começou a aparecer política pública, começou a melhorar. A gente já viu barriga cheia, a gente já viu as famílias começando a trabalhar empregado. Aí teve o acesso à água, que foi a cisterna, que foi o melhor projeto do mundo. Eu como agricultora experimentadora digo que foi o melhor projeto porque tirou a sede e a fome também. Principalmente para as mães que ficavam em casa e aí melhorou porque as pessoas têm a cisterna e seus canteiros perto de casa. A gente já pôde criar uma cabra, uma ovelha, a vida começou a melhorar. A gente trabalhava em terreno dos outros e passamos a trabalhar no nosso próprio terreno”, afirma.


Quando questionada sobre o que dói ao rememorar os tempos difíceis, ela taxativa diz: “Me toca a fome e a sede!” E complementa: “na minha comunidade morreu 30 crianças. E foi a sede! A água que a gente tomava era da barragem e todas as crianças tiveram diarreia, e foi uma tristeza porque era eu que enterrava as crianças. Na época só quem escapou foi meu irmão”.


Francisca é uma das agricultoras que estão na Caravana Semiárido contra a Fome, e que empunha a bandeira do não aos retrocessos! Ela teme que aquele passado volte a fazer parte da rotina das famílias do Semiárido. “Hoje vejo que já recomeçou a mortalidade e a fome tá reinando. Eu não via mais ninguém pedindo comida na rua e agora já estou vendo. Principalmente este ano, vi muitas mães com cuia na mão pedindo com seus filhos. Pra mim foi a dor maior do mundo! A gente não queria passar por isso mais, mas com a falta das políticas a realidade está começando a mudar e é por isso que a gente tá mobilizado em sindicato, associação por essa grande luta pra gente conquistar a alimentação. Nós tivemos sete anos de seca verde e estamos vendo que vai ter mais dificuldade para as famílias e para os animais”, alerta.


Para ela, a seca maior que o povo enfrenta é a falta de políticas. “Está ficando tudo dificultado para o pequeno agricultor. A realidade está muito difícil. Como agricultora, estou preocupada com a fome das pessoas e dos animais. A minha esperança é política pública! Fé, força e coragem nós temos que ter e levar na nossa grande bagagem porque somos espelho dos outros agricultores que ficaram e estou na Caravana para representar os agricultores que estão na base”.